terça-feira, 20 de julho de 2021

Carlos Alves e o pastor de tarro e manta


Pastor de tarro e manta (2021). Carlos Alves (1958-  ).

 AO BARRISTA CARLOS ALVES:

O modelar um pastor
bem requer ocasião.
É criado com rigor
mais amor no coração.

LER AINDA:


Ex-libris do Alentejo
O Alentejo de hoje não é o mesmo que nos foi legado pelos nossos avós. Desde então que ocorreram transformações profundas no meio ambiente, na paisagem, nos meios de produção, nas relações de trabalho, no tecido social e em muitos outros aspectos.
As fainas agro-pastoris processam-se hoje de modo diferente e os actores já não são os mesmos. Uns desapareceram, outros descaracterizaram-se e deixam atrás de si, pegadas etnográficas diferentes daquelas que deixavam até cerca de meados do séc. XX. Todavia, os registos etnográficos desses actores de antanho permanecem vivos na memória de muitos de nós. E é assim, que o pastor de ovelhas com todos os seus atributos, continua a ser utilizado como ex-libris do Alentejo. Trata-se de um personagem com forte presença nas letras e nas artes, perpetuado em fotografias, pinturas e esculturas em pedra, madeira ou barro. Escusado será dizer que continua a ser também objecto de representação pelos barristas de Estremoz. É o que se passa em particular com o chamado “pastor de tarro e manta”, cujos atributos usados na representação são: pelico (ou samarra) e safões, botas, chapéu aguadeiro, cajado, tarro e manta. Desses atributos nos fala o cancioneiro popular alentejano:

"Tod’a vida gardê gado,
E sempre fui ganadêro,
Uso cêfoes e cajado,
E pelico e caldêra.” [2]

“Toda a vida guardei gado,
Toda a vida fui pastor,
Deixei botins e cajado
Por via do meu amor.” [2]

“Debaixo das azinheiras
Encostado ao teu cajado,
Com o chapéu de abas largas
Vejo-te guardando o gado.” [1]

“Neste tarro de cortiça
oferta do meu amor,
até o pão com chouriça
às vezes sabe melhor.” [3]

Memórias guardadas
Coleccionador de memórias, já perdi o conto aos exemplares de pastores que povoam a minha colecção, começando no séc. XVIII e acabando, por enquanto, nos dias de hoje. O exemplar mais recente é da autoria de Carlos Alves, barrista que aposta numa modelação fortemente naturalista que procura representar as coisas tal como elas são, para o que recorre á representação de texturas. No presente caso, texturizou a pele dos safões, a cortiça do tarro e o cabelo do pastor. O cromatismo da figura segue igualmente a filosofia usada na modelação: procura colorir as coisas com as cores naturais que elas têm.
A modelação e o cromatismo da figura aqui patentes são notáveis. O cromatismo é assaz suave e harmonioso, uma vez que é dominante uma tricromia em que o verde (cor fria) é acompanhado de duas cores neutras: o preto e o castanho em diversas modalidades.
O pendor fortemente naturalista da modelação e do cromatismo de Carlos Alves, parecem-me ser as marcas identitárias mais fortes do barrista, as quais aqui registo e aplaudo:

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980
[2] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[3] – SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano – Poesia Popular, Livraria Portugal, Lisboa, 1959.

sábado, 17 de julho de 2021

A República é uma bebedeira


Bêbado sentado numa pipa, com um odre de vinho nas mãos.
Oficinas de Estremoz dos finais do séc. XIX.


Adquiri recentemente um belo e curioso exemplar de barrística popular produzido numa das Oficinas de Estremoz dos finais do séc. XIX, tematicamente situado no domínio satírico, o que me é particularmente grato.
Representa um homem trajando à moda da época, sentado numa pipa, com um odre de vinho nas mãos. As notórias rosetas que ostenta nas faces, indiciam tratar-se de um bêbado. Este, apresenta a cabeça coberta por um barrete frígio vermelho, símbolo da Revolução Francesa (1789) e desde então adoptado como inequívoco símbolo do regime republicano, que em 1910 seria implantado em Portugal.
O Partido Republicano Português foi fundado em 1876, iria crescer e a propaganda republicana iria suscitar adesão popular às suas propostas, que abalavam fortemente a monarquia no poder desde o início do reinado de D. Afonso Henriques (1143).
Naturalmente que a batalha ideológica entre monárquicos e republicanos seria intensa e cada um dos lados tinha os seus apoiantes e os seus detractores. Essa batalha ideológica teria repercussões em vários domínios: na literatura, na imprensa, na ilustração e é claro na arte popular, acabando os autores por serem partidários duma facção ou da outra.
A meu ver, o presente exemplar de barrística popular estremocense é uma sátira monárquica à República, já que o bêbado usa barrete frígio vermelho. A mensagem anti-republicana implícita parece ser evidente: “A República é uma bebedeira”.
De salientar a decoração da base octogonal (quadrangular com as pontas cortadas em bisel), sarapintada com manchas brancas, verdes e pretas, que configuram um tecido camuflado.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Barristas de Estremoz do passado

 



ANA DAS PELES (1869-1945)
75 anos da morte de Ana das Peles
MARIANO DA CONCEIÇÃO (1903-1959)
FRANCISCA VIEIRA DE BARROS (1874-1957)
ACLÉNIA PEREIRA  (1927-2012)
ARMANDO ALVES (1935 -  )
SABINA SANTOS (1921-2005)
LIBERDADE DA CONCEIÇÃO (1913-1990)
JOSÉ MARCELINO MOREIRA (1926-1991)
ISABEL CARONA BENTO
ANTÓNIO LINO DE SOUSA (1918-1982)
QUIRINA ALICE MARMELO (1922-2009) 
MÁRIO LAGARTINHO (1935-2016)
IRMÃOS GINJA (1938,1949 - )
MARIA LUÍSA DA CONCEIÇÃO (1934-2015)
PAULO CARDOSO (1968 -   )
RUI BARRADAS (1953 - )
JOÃO FORTIO (1951 -  )
GUILHERMINA MALDONADO (1937-2019)
FÁTIMA LOPES (1974)

Hernâni Matos

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Barristas de Estremoz do presente





ANA CATARINA GRILO (1974- )- 
Carlos Alberto Alves na 45ª Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde
INOCÊNCIA LOPES (1973-   )
CURIOSIDADES - Figurado de Estremoz de Inocência Lopes
Bonecos de Estremoz de Inocência Lopes
IRMÃOS GINJA (1938- , 1949- )
IRMÃS FLORES (1957, 1958- )
NATIVIDADE - uma tipologia de cantarinha enfeitada, criada pelas Irmãs Flores 
EXPOSIÇÃO "IRMÃS FLORES, 50 ANOS EM 50 BONECOS" 
Exposição "Irmãs Flores, 50 anos em 50 Bonecos" 
Figurado de Estremoz em selo
JOANA OLIVEIRA (1978-   )
Joana Santos e o “Ti Manel do tarro”
O Carlos e a Joana: Olha que dois!
A Boniqueira Joana
JORGE CARRAPIÇO (1968 -  )  
Bonecos de Estremoz: Jorge Carrapiço
JORGE DA CONCEIÇÃO (1963- ) 
JOSÉ CARLOS RODRIGUES (1970-  )
MADALENA BILRO (1959-  )
MANUEL J. BROA (  -  )
MARIA ISABEL CATARRILHAS PIRES (1955-  )
Um singular berço das pombinhas de Ricardo Fonseca
Contributo para uma Simbólica das Figuras de Presépio
SARA SAPATEIRO  (1995-  )
Sara Sapateiro e o aristocrata rural
VERA MAGALHÃES (1966- ) 
TRADIÇÃO E CULTURA - Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães
Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães
Seis esculturas em alto relevo
Vera Magalhães e a escultura em alto-relevo
As Manas Perliquitetes de Vera Magalhães
Auto das damas dos girassóis
Vera Magalhães no Reino de Liliput
A Dama dos Girassóis de Vera Magalhães


sexta-feira, 2 de julho de 2021

Estilos diferentes em Mariano da Conceição e Sabina Santos

 

"Senhora de pezinhos" de Mariano da Conceição (à esq.ª) e de Sabina Santos (à dir.ª).

Na página do Facebook “Bonecos de Estremoz”, afirmei ontem que Sabina Santos (1921-2005) tomou a atitude corajosa de prosseguir com estilo muito próprio, a manufactura dos Bonecos de Estremoz, depois da morte de seu irmão Mariano da Conceição (1903-1959). Por outras palavras e sem desprimor nenhum, afirmei que o estilo de Sabina era diferente do de Mariano, o que alguém contradisse, sem, contudo, apresentar nenhum argumento que servisse de suporte à sua afirmação.
Impõe-se, pois, um esclarecimento aos meus leitores. A afirmação que fiz não foi gratuita, nem por ter lido nalgum lado, nem tão pouco por ter ouvido dizer. Tratou-se de uma afirmação baseada na observação de mais de uma centena de Bonecos de Sabina que tenho na minha colecção, bem como na observação de uma vintena de Bonecos de Mariano que também possuo. A juntar a isso, as dezenas de imagens de Bonecos daqueles barristas, que tenho no meu arquivo de imagens de Barrística de Estremoz.
Para não haver dúvidas que o estilo de Sabina é diferente do de Mariano, socorri-me das imagens da chamada “Senhora de Pezinhos”. A de Mariano é da colecção do Museu Rural de Estremoz e a de Sabina é da minha própria colecção. Da comparação das imagens é possível concluir que:
1- O conceito de proporção de cada um dos barristas é diferente. As figuras de Mariano são mais encorpadas que as de Sabina. As de Sabina são mais esguias e no caso das figuras femininas, a cintura é notoriamente mais fina, constituindo aquilo que se se chama “cintura de vespa”.
2 – A representação do olhar por Mariano e por Sabina são diferentes. Mariano representa o olhar com pestana e sobrancelha, com esta última tangente à menina do olho. Por sua vez, Sabina representa o olhar com a sobrancelha e a pestana, ambas afastadas da menina do olho.
Por outro lado, a análise do conjunto dos Bonecos da minha colecção, permitem-me concluir que:
3 – O cromatismo das figuras apresenta diferenças. As figuras de Sabina apresentam na generalidade, cores mais vivas e garridas que as de Mariano, que em geral são mais sóbrias.
4 – A decoração dos Bonecos de Sabina e de Mariano também é distinta. Sabina utiliza com mais frequência, padrão na representação de algum vestuário feminino, que aquela que Mariano utiliza.
Concluindo: os Bonecos de Mariano e de Sabina apresentam pelo menos 3 características diferentes aqui identificadas. Em Arte, seja ela popular ou erudita, as diferentes características das representações, traduzem a existência de estilos diferentes, já que um estilo é caracterizado por ter determinado tipo de características.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Homenageando o Professor Hernâni Matos

 

Fernando Máximo. Funcionário Público.

HOMENAGEANDO O PROFESSOR HERNÂNI MATOS


Professor Hernâni Matos
Junta a teoria aos factos
Com muita desenvoltura;
P’lo muito que tem feito
Merece o nosso respeito
Por ser homem da cultura!

Dos vultos mais competentes
Em áreas tão diferentes
Numa muito longa lista:
É um insigne escritor
Etnógrafo, professor,
E Mestre filatelista

É expositor e jurado,
“Expert” do figurado
Essa arte, (que tão nobre,)
Património Imaterial
Deste nosso Portugal
Que tanto orgulho nos cobre!

É firme nas convicções
E em certas reflexões
Que por vezes o consomem...
É excelente escritor
Um “Franco-atirador”
Mas mais que tudo é um HOMEM!

Quem o conhece de perto
Reconhece-lhe por certo
Virtudes que são verdades...
Admirá-lo é um direito
Prestando assim o seu preito
A quem só tem qualidades...

Professor, meu grande amigo,
Em boa hora lhe digo:
Pelo crer que a si se pôs,
Ganha, pois, o meu louvor
Por ser um grande SENHOR
Desta cidade Estremoz

Fernando Máximo
Avis, 02 de Abril de 2021

domingo, 20 de junho de 2021

Pode alguém ser quem não é? / A propósito de Hernâni Matos


Álvaro Borralho. Sociólogo. Professor Universitário. 

Os nossos caminhos cruzaram-se quando eu era estudante da Escola Secundária de Estremoz – é assim que gosto de recordar a minha velha Escola –, aí por volta do 8.º ano, e num anfiteatro de físico-química. Não por ter sido seu aluno, que nunca fui – embora tivesse gostado de ser, pois gostava muito de física –, mas por breve tempo ter aderido a um clube de filatelia que o Prof. Hernâni estava a criar na Escola. Éramos poucos, mas ele animava estas sessões com especial entusiasmo, de tal modo, que me mantive. Todavia, o final do ano lectivo levou algum do entusiasmo e não logrei ser o filatelista que verdadeiramente nunca quis ser. Ela já o era, há muito, reconhecidamente, e foi sempre com grande deleite que assisti a algumas das suas exposições. Recordo uma, em especial, de Maximafilia no Salão Nobre dos Paços do Concelho, assim como as realizadas no espaço exíguo da Associação num espaço existente no início da Rua Narciso Ribeiro. Ir a uma das suas exposições tinha, além do mais, o atractivo de o poder ouvir nas suas detalhadas explicações e compreender um pouco melhor o mundo fascinante dos selos. Embora tenha perdido o breve encantamento da filatelia, lia sempre a sua coluna no Brados do Alentejo.
E foi no jornal que nos voltámos a encontrar mais assiduamente, que cimentámos a nossa amizade a que não é estranho termos sido colaboradores pela mesma altura. O Brados foi, e é, um local de encontro, juntando várias gerações, permitindo o convívio, a entreajuda e o interconhecimento. Dali sempre se saiu mais rico.
Mais tarde, havia de o procurar para me ajudar a desvelar alguns aspectos do processo político estremocense, de 1974 a 1976, quando realizei uma dissertação académica sobre o assunto. E foi com inegável prazer que o entrevistei umas boas horas sobre as suas memórias, a sua participação, sobre factos e acontecimentos. Passadas mais de duas décadas sobre esse encontro, ainda recordo algumas das leituras que me proporcionou. Só não lhe perdoar que tenha deitado ao lixo algum tempo antes, segundo me confessou, uma colecção de comunicados de todos os partidos políticos distribuídos em Estremoz. Conhecendo o seu pendor detalhista e a sua capacidade de perseguir, e de reunir o perseguido, imagino que seria uma excelente base documental. Guardo a leve esperança que alguém tenha guardado aquelas pastas, mas sem grande alento. Perdoei-lhe, mas tive um grande desgosto em não ter deitado mão àqueles preciosos documentos.
Se conto este episódio é para reforçar o quão importante é encontrar e conhecer alguém como o Hernâni Matos. A nossa memória colectiva vive destes sequazes guardadores de memórias, que, com espírito abnegado, guardam o espólio sobre o qual se há-de construir, e reconstruir, esta nossa memória. Preservando-a, dão um contributo inestimável ao seu estudo, e, assim, a tentar interpretar e a entender os vários sentidos que cada um – pessoas, partidos, grupos, etc. – concederam aos acontecimentos. Quer dizer, ajudam a fazer a história, no meu caso, a sociologia, de tempos vividos, mas não presenciados com a mesma intensidade ou proximidade.
O seu recente livro sobre os bonecos de Estremoz aí está a comprovar o que antes afirmei: o desejo de recolher, reunir, coleccionar, dispor organizadamente o material e, por fim, dá-lo a conhecer a quem tenha essa curiosidade. Nunca é um esforço vão, é sempre um contributo para a procura de mais e melhores significados.
Termino com a mesma interrogação com que se iniciou este breve depoimento: pode alguém ser quem não é? Como se sabe, é o título de uma magnífica canção do Sérgio Godinho que serve perfeitamente para dar o tom a este escrito. E que o Hernâni continue a ser quem é e nos dê a satisfação de o encontrar e de o ler por onde decidir andar.

Álvaro Borralho
Ponta Delgada, 19 de Abril de 2021