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quarta-feira, 24 de abril de 2024

POESIA E ARTE NEO-REALISTA / A luta contra o regime


Gadanheiro. Júlio Pomar (1926-2018). Óleo sobre aglomerado de madeira. 122 × 83 cm.
 Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.

Foi em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do Movimento das Forças Armadas – MFA, que foi conseguido o derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime totalitário e fascista de Salazar e de Caetano.

O 25 de Abril foi antecedido de muitas lutas contra o regime por parte de múltiplos sectores da sociedade portuguesa. Entre eles a frente cultural de escritores e artistas plásticos, descontentes com a política cultural do regime e que integrou o chamado “Movimento Neo-realista Português”. Este surge em finais dos anos 30 e identifica-se com a oposição ao regime, afirmando-se como representante e porta-voz dos anseios das classes trabalhadoras, retratando a realidade social e económica do país e empenhando-se na transformação das condições sociais do mesmo. Nesse sentido, foca-se no homem comum, procurando saber como vivem operários e camponeses. Aborda e aprofunda temas como as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Escrutina as injustiças e analisa o modelo social vigente. Pugna pela elevação moral dos oprimidos e deposita esperança no futuro do Homem.

Na passagem dos 50 anos do 25 de Abril de 74, tomei a liberdade, de fazer uma selecção de poemas e obras plásticas de autores neo-realistas, para divulgara aqui nas páginas do jornal E. Tal é possível, porque Abril nos restituiu a liberdade e este jornal é assumidamente um espaço de liberdade.

É a maneira encontrada de reconhecer e louvar o papel daqueles que na frente cultural antifascista lutarem e bem, com as armas que tinham na mão: as canetas e os pinceis.

Bem hajam, companheiros de estrada.

25 DE ABRIL, SEMPRE! FASCISMO NUNCA MAIS!

Hernâni Matos

Publicado no jornal E, nº 333, de 26 de Abril de 2024

 

Sem título. Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957). Litografia sobre papel. 1948.

Plantadoras de arroz. Cipriano Dourado (1921-1981). Serigrafia sobre papel. s/d.

Vendedeiras de Lisboa. Alice Jorge (1924-2008). Xilogravura sobre papel não numerada.
 52,5 x 41 cm. 1957. Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Família. Rogério Ribeiro (1930-2008). Óleo sobre cartão. 70 x 89,5 cm. 1951.
Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Apanha da azeitona. Espiga Pinto (1940-2014). Aguarela sobre papel. 41 x 26 cm.
1962. Colecção particular.

Poesia portuguesa - 127

 


 

Poema Único
Para a C...[i]

Soeiro Pereira Gomes (1909 – 1949)


Menina dos olhos grandes,
Tão grandes que neles vejo
A minha imagem e o mundo
Com que sonho e que porfio...

Menina do riso ingénuo
À porta dos lábios mudos
Como fio de água fresca
Entre o musgo duma rocha...

Menina de tez morena
Que o sol beija e mais ninguém
E de corpo tamanino
E de rosto tão bonito...

- Porque usas carrapito?
P'ra realçar teus encantos
Que são tantos, tantos, tantos
Como estrelas há no céu?...

Menina do meu enleio
Menina doutras meninas
Que tenho nos olhos tristes:
- Solta as tranças, vai cortar
(Não dói nada... e é mais bonito)
Vai cortar o carrapito!

Soeiro Pereira Gomes (1909 – 1949)

Hernâni Matos



[i] Poema datado de 20/07/1949, dedicado a Cândida Ventura (1918 – 2015), que então usava o pseudónimo “Carlota”.


terça-feira, 23 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 126

 



Ser
Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Vir à luz em partos duros
- ser erva rasgando a pele
granítica dos muros

Viver em grades desterros
e ser um raio de sol
por entre os ferros

E quando tudo se for
morrer pela madrugada
com a raiz de uma flor
na mão cerrada

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Poesia Portuguesa - 125

 




Cigarra
Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Esta não é a filha do sol
com pernas e pés de marinheiros
subindo às árvores das herdades.
Esta é preciso ouvi-la dias inteiros
aquém das grades.

Esta
não chama para os campos doirados
onde o canto é livre e aquece, morno.
Mas para silêncios hirtos e cerrados
com fardas e armas em torno.

Desde o sinal das auroras
até à noite que plange
amortalhando as horas,
seu canto não canta, range…

Ó cigarra das torvas claridades!

Seus cantos só pode cantá-los
a boca de pedra e dentes ralos
do ferro nas grades.

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Poesia portuguesa - 124


 

Vestidos de pedra
Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Saber que estão vestidos de pedra
botões de ferro casas de sombra
áspero forro do silêncio

Não basta saber que estão encerrados
num punho de pedra esmagando o sol

Não basta saber É preciso ver
aquém dos olhos adentro da voz
e retratá-lo no sangue
– entre a manhã e a janela
              o pão e a boca
              a parede e a rua
              a mão e a ferramenta

Retratá-los no sangue
é despir-lhes a roupa de pedra
é desabotoá-los da sombra

e livres e verdadeiros
respirá-los no ar nos rios
e tê-los por companheiros

(Não basta saber que estão encerrados
num punho de pedra esmagando o sol)

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Poesia Portuguesa - 123

 




A uma bicicleta desenhada na cela

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Nesta parede que me veste
Da cabeça aos pés, inteira,
Bem hajas, companheira,
As viagens que me deste.

Aqui,
Onde o dia é mal nascido,
Jamais me cansou
O rumo que deixou
O lápis proibido…
Bem-haja a mão que te criou!
Olhos montados no selim
Pedalei, atravessei
E viajei
Para além de mim.

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Poesia Portuguesa - 122

 


Sentinela
Luís Veiga Leitão (1912-1987)


Com trezentas noites de cela
e dias brancos de cem anos
quero ver-te sentinela,
ver-te com os olhos humanos.

Olho as tuas mãos enclavinhadas
e pergunto: aonde estão?
Serão de outro corpo e plasmadas
no mesmo barro que vem do chão?

E nunca meus olhos viram tanto!

Olho os teus olhos despertos
e pergunto: aonde estão?
Serão de fendas, de poços abertos
ou de que raio são?

E nunca meus olhos viram tanto!

Olho a tua boca cerrada
e pergunto: aonde o seu nome?
Será gume de faca ou de espada
que a ferrugem come?

E nunca meus olhos viram tanto!

Essa arma (que as manhãs amaldiçoam)
esconde os teus olhos, teu rosto, a tua mão,
enquanto os botões de metal abotoam
teu próprio coração.


Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Hernâni Matos

Poesia portuguesa - 121

 


Passei o Tejo à noitinha
Antunes da Silva (1921-1997)


Passei o Tejo à noitinha
e vi o Tejo calado,
trago um barco de papel
pró deitar no mar salgado.
Quando o barco se romper
deito no Tejo uma estrela
e a estrela branca lá fica
e nunca mais torno a vê-la...
Dizem os homens e mulheres
que nas águas deste Tejo
barra fora lá seguiram
camponeses do Alentejo
que nesse tempo sentiram
o que era a triste vida
feita de nada de nada
e por demais permitida...

Falam os homens mais velhos
que neste rio -ó desgraça! -
partiu barco e partiu povo
rumo a Timor e Mombaça
passando pelo mar alto
pró Bié e Tarrafal,
gente de boa presença
que nunca a ninguém fez mal!

Diziam os homens mais velhos
com espanto e em segredo,
que nas águas do rio Tejo
partiu gente pro degredo:
Timor, Bié, Tarrafal,
no tempo do Salazar
as barcas seguiam cheias
a navegar, a navegar,
com homens em cativeiro,
Timor, Bié, Tarrafal,
e regressavam com ferro,
coco, amendoim e sisal...

Passo o Tejo à noitinha
e já ninguém me faz mal!

Antunes da Silva (1921-1997)

Hernâni Matos

Poesia portuguesa - 120

 




Senhor vento
Antunes da Silva (1921-1997)


Senhor Vento, ó Senhor Vento,
já não me posso conter,
veio a seca, tanto sol,
que anda por aqui a fazer?

Vá-se embora Senhor Vento,
não são horas daqui estar,
não há trevo nem há água
para o gado apascentar.

Tudo seco, Senhor Vento,
ai que morte, que morrer,
não há suco nem há seiva,
cinco meses sem chover...

Se cá ficar, Senhor Vento,
não tempera, só destapa
os horizontes de nuvens,
não há chuva neste mapa.

Tape a chaga, Senhor Vento,
siga siga para o mar,
já lhe disse, vá-se embora,
não são horas daqui estar!

Dou-lhe um tiro, Senhor Vento,
se andar aqui mais um dia,
gira gira, fora fora,
mande a chuva, não se ria.

Obrigado, Senhor Vento,
Empurre a nuvens, agora,
isso mesmo, traga as águas!
De contente, a terra chora.

Antunes da Silva (1921-1997)

Poesia Portuguesa - 119

 



Quem vem lá?
Antunes da Silva (1921-1997)

Quem vem lá
que me chama?

O velho bufão
com faces de lama,
ou maltês perdido
sem casa nem cama?

- Quem vem lá
que me grita?

O ronco do grifo
que assusta e crocita,
ou a terra que geme,
minha irmã aflita?

- Quem vem lá
que me espanta?

A noite a nascer
que já se levanta,
ou eco de búzio
na minha garganta?

- Quem vem lá
que se esconde?

Larápio de jóias
disfarçado em conde,
ou rancho coral
ouvindo-se aonde?

- Quem vem lá
que me chama?

O velho bufão
com faces de lama,
ou maltês perdido
sem casa nem cama?

- Quem vem lá
que me grita?

O ronco do grifo
que assusta e crocita,
ou a terra que geme,
minha irmã aflita?

- Quem vem lá
que me espanta?

A noite a nascer
que já se levanta,
ou eco de búzio
na minha garganta?

- Quem vem lá
que se esconde?

Larápio de jóias
disfarçado em conde,
ou rancho coral
ouvindo-se aonde?

Antunes da Silva (1921-1997)

Poesia Portuguesa - 118

 



Juro nunca me render
Armindo Rodrigues (1904-1993)

Pela minha terra clara
e o povo que nela habita
e fala a língua que eu falo,
juro nunca me render.

Pelo menino que fui
e o sossego que desejo
para o velho que serei,
juro nunca me render.

Pelas árvores fecundas
que nos dão frutos gostosos
e as aves que nelas cantam,
juro nunca me render.

Pelo céu que não tem margens
e as suas nuvens boiando
sem remorso nem receio,
juro nunca me render.

Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.

Pelo sol e pela chuva
e pelo vento disperso
e pela plácida lua,
juro nunca me render

Pelas flores delicadas
e as borboletas irmãs
que nos livros espalmei,
juro nunca me render.

Pelo riso que me alegra,
com a sua nitidez
de guizos e de alvorada,
juro nunca me render.

Pela verdade que afirmo,
dos que a verdade demandam
até à contradição,
juro nunca me render.

Pela exaltação que estua
nos protestos que não escondo
e a justiça que os provoca,
juro nunca me render.

Pelas lágrimas dos pobres
e o pão escasso que comem
e o vinho rude que bebem,
juro nunca me render.

Pelas prisões em que estive
e os gritos que lá esmaguei
contra as mãos enclavinhadas,
juro nunca me render.

Pelos meus pais e meus avós
e os avós dos avós deles,
com o seu suor antigo,
juro nunca me render.

Pelas balas que vararam
tantos peitos de homens justos,
por amarem muito a vida,
juro nunca me render.

Pelas esperanças que tenho,
pelas certezas que traço,
pelos caminhos que piso,
juro nunca me render.

Pelos amigos queridos
e os companheiros de ideias,
que são amigos também,
juro nunca me render.

Pela mulher a quem amo,
pelo amor que me tem,
pela filha que é dos dois,
juro nunca me render.

E até pelos inimigos,
que odeiam a liberdade,
e por isso não são livres,
juro nunca me render.

Armindo Rodrigues (1904-1993)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 117

 



Firmeza
João José Cochofel (1919-1982)


Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.

Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.

João José Cochofel (1919-1982)

Poesia Portuguesa - 116

 



Canção do mestiço
Francisco José Tenreiro (1921-1963)

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro (1921-1963)

Poesia Portuguesa - 115

 




Poema da voz que escuta
Políbio Gomes dos Santos (1911-1939)

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Políbio Gomes dos Santos (1911-1939)

Poesia Portuguesa - 114

 




Notícias do Bloqueio
Egito Gonçalves (1911- 1969)


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval,
a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos…
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseia
aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.

Egito Gonçalves (1911- 1969)

Poesia portuguesa - 113

 




Queres viajar, Maria Flor?
Alves Redol (1911- 1969)

Viajar é correr mundo,
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da Terra
ou as ondas do Mar Alto…
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios,
e ribeiros
e pessoas
e lugares…
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros

Alves Redol (1911- 1969)

Poesia Portuguesa - 112

 



Menina fútil
Sídónio Muralha (1920-1982)


A menina fútil deu um bodo aos pobres;
pela primeira vez pôs avental…
Falou do gesto e seus intuitos nobres,
com palavrinhas brandas, o jornal…

– Os pobres ficaram pobres
e a menina fútil nunca mais pôs avental…

A menina fútil tem um cão de raça
que nunca saiu do quintal
e nunca viu uma cadela …
– Para a menina fútil, o seu cão de raça
deixou de ser um animal
e é um cãozinho de flanela …

… e a menina fútil tem um namorado
e atira-lhe promessas da janela …
Promessas … porque o resto era pecado
e pecar não é com ela …
(Fica sempre na rua, o namorado,
e é tão distante a janela…)

Mas a menina fútil tem um namorado;
tem um cão como feito de flanela;
e anda feliz por dar um bodo aos pobres
e ter descido a pôr um avental…
Lê e relê os seus intuitos nobres;
recorta o seu retrato do jornal;
– e os pobres continuam pobres,
e a menina fútil nunca mais põe avental…


Sídónio Muralha (1920-1982)

Hernâni Matos

Poesia Portuguesa - 111

 




Terra – 24
Fernando Namora (1919-1989)

António, é preciso partir!
o moleiro não fia,
a terra é estéril,
a arca vazia,
o gado minga e se fina!
António, é preciso partir!
A enxada sem uso,
o arado enferruja,
o menino quere o pão; a tua casa é fria!
É preciso emigrar!
O vento anda como doido – levará o azeite;
a chuva desaba noite e dia – inundará tudo;
e o lar vazio,
o gado definhando sem pasto,
a morte e o frio por todo o lado,
só a morte, a fome e o frio por todo o lado, António!
É preciso embarcar!
Badalão! Badalão! – o sino
já entoa a despedida.
Os juros crescem;
o dinheiro e o rico não têm coração.
E as décimas, António?
Ninguém perdoa – que mais para vender?
Foi-se o cordão,
foram-se os brincos,
foi-se tudo!
A fome espia o teu lar.
Para quê lutar com a secura da terra,
com a indiferença do céu,
com tudo, com a morte, com a fome, coma a terra,
com tudo!
Árida, árida a vida!
António, é preciso partir!
António partiu.
E em casa, ficou tudo medonho, desamparado, vazio.

Fernando Namora (1919-1989)

Poesia portuguesa - 110




Mãe Pobre
Carlos de Oliveira (1921-1981)


Terra Pátria serás nossa,
Mais este sol que te cobre,
Serás nossa,
Mãe pobre de gente pobre.

O vento da nossa fúria
Queime as searas roubadas;
E na noite dos ladrões
Haja frio, morte e espadas.

Terra Pátria serás nossa
Mais os vinhedos e os milhos,
Serás nossa,
Mãe que não esquece os filhos.

Com morte, espadas e frio,
Se a vida te não remir,
Faremos da nossa carne
As searas do porvir.

Terra Pátria serás nossa,
Livre e descoberta enfim,
Serás nossa,
Ou este sangue o teu fim.

E se a loucura da sorte
assim nos quiser perder,
Abre os teus braços de morte
E deixa-nos aquecer.

Carlos de Oliveira (1921-1981)


Poesia Portuguesa - 109



 

Ritmo eterno?
Álvaro Feijó (1916-1941)


A enxada tomba… Cavador não sentes,
com ritmo igual, por esse mundo, a rodos,
dezenas delas a bater, também?
………………………………………………………
Para que veio Cristo ao mundo e às gentes,
se aquilo que pregou veneram todos
- fingidamente - e nunca o fez ninguém?!
Espera cavador! O Sol que dorme,
agora, amanhã há-de voltar…
E, do negrume dessa noite enorme
que parece jamais querer cessar,
de tuas mãos, com teu esforço enorme,
- Um Novo Mundo há-de surgir, brilhar…

Álvaro Feijó (1916-1941)