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sábado, 4 de outubro de 2025

Arte pastoril perde um dos seus maiores


Mestre José Joaquim Vinagre (1930-2025).

Texto de JOÃO JALECA,
publicado no nº 1108 (03-10-2025)
do jornal BRADOS DO ALENTEJO, 
de onde foi transcrito com a devida vénia
e autorização do autor.

A alcunha de Zé Santinhas pouco ou nada dirá à maioria dos nossos leitores. Já na comunidade veirense, em particular entre os de mais idade, tal anexim soará de imediato com um misto de pertença e (já) de saudade, pois que se refere a um dos mais hábeis e minuciosos artesãos do concelho de Estremoz nado e criado na freguesia de Veiros: Mestre Vinagre o 'mago' da navalha e do canivete com que, desde os 12 anos, produzia das mais genuinas peças de arte pastoril em cortiça, e que no passado sábado, 20, nos deixou aos 95 anos de idade.
À minúcia com que aprimorava as suas peças não escapava o mais ínfimo pormenor, quer fosse nos carros ou carroças e respectivos animais do mundo rural e agrícola do Alentejo de tempos idos, quer em outros conjuntos com cenas da vida e da labuta daquela mesma época. Ele eram os varais,os taipais, a rabiça, a manivela para travão, o grampo na ponta do eixo para que a roda não se escapasse daquele, ou as cangalhas para cântaros e, ainda, os aprestos nas alimárias que iam das cabeçadas aos burnis, das cangas às arreatas e a sei lá o que mais.
No dia 26 de novembro de 1929, uma terça-feira, nascia na freguesia de Veiros, uma criança do sexo masculino a quem foi dado o nome de José Joaquim Vinagre, mas que mais tarde, na comunidade viria a ser mais conhecido pelo apodo de Zé Santinhas.
Com cerca de 12-13 anos, mourejando o 'pão e o conduto' como ajuda de pastor, apanhou, junto a um sobreiro, um bocado de cortiça em bruto e deu-lhe para começar a esculpir o mesmo com a navalha. Obra pronta: Uma figura antropofórmica a que chamou de boneco. Foi paixão para uma vida.
Também rendilhou a cana com motivos geométricos ou vegetalistas, em especial nos 'canudos' para proteger, dos golpes da foice, os dedos das ceifeiras. Peças essas, únicas, habitualmente bordadas a pedido de camaradas de trabalho, para oferta as suas 'pretendidas' ou já 'conversadas'.
Da sua fecunda imaginação sairam utensílios de uso prático e doméstico, como conchos, saleiros, assentos que gravou com figuras como as já citadas vegetalistas ou geométricas e mesmo zoomórficas ou antropomórficas.
Mas o seu 'enlevo' foram sempre as miniaturas de cenas rurais que tão bem conheceu e viveu. Conjuntos que impressionam pela proporção e detalhe aos originais.
Curiosamente, mestre José Vinagre, não participou na primeira edição da Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz (e respectivas Matérias Primas) que em julho de 1983 se realizou nas alamedas do Rossio Marquês de Pombal.

Está representado no Museu Municipal Professor Joaquim Vermelho [Estremoz] e, o Munípio homenageou-o com a exposição temporária “Mestre José Vinagre – Tesouro da Arte Popular no Alentejo” que esteve patente de Janeiro a Março últimos na Galeria Municipal Dom Dinis.
José Joaquim Vinagre, mestre Vinagre ou Ti Zé Santinhas, morreu no Serviço de Urgência do Centro de Saúde de Estremoz, no sábado, dia 20 de setembro, aos 95 anos. Era viúvo de Joaquina Rita Coré Vinagre. Ultimamente residia no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Veiros.
O funeral, dia 21 de setembro, efetuou-se para o Cemitério de Veiros.
Que descanse em paz e que a memória dos veirenses, dos estremocenses e, porque não, dos alentejanos o recorde através dos tempos.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

As primeiras memórias da olaria


Aguadeiro (2016). Ricardo Fonseca (1986 - ).

Aguadeiro. José Moreira (1926-1991).

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

As minhas primeiras memórias acerca da olaria de Estremoz são registos etnográficos e remontam aos tempos da minha infância. Têm a ver com o consumo de água em casa de meus pais. A água era guardada em cântaros de barro, o que constituía prática corrente em todas as casas da urbe até à inauguração da rede pública de abastecimento de água, em 26 de Maio de 1952.

Até então, a água era distribuída por aguadeiros que a acarretavam em cântaros de folha de Flandres ou de barro, transportados em cangalhas assentes no dorso de burros ou em divisórias de carroças para o transporte de água.  Recolhida nas fontes, assim ia parar à casa dos fregueses. À chegada, à porta da rua, a água era transvasada do cântaro que a transportara para um cântaro de barro do freguês.

Os aguadeiros eram figuras do quotidiano diário da época que ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Mulher das castanhas. Oficinas de Estremoz dos finais do
séc. XIX. Ex-colecção Emídio Viana.

Mulher das castanhas (1938). Ana das Peles (1869-1945).
 Ex-colecção Azinhal Abelho. 

Outras memórias igualmente da minha infância têm a ver com a venda de castanhas à porta das tabernas. Aí, mulheres sentadas em cadeiras, assavam castanhas em assadores de barro, aquecidos por fogareiros a carvão, igualmente de barro.

Tal como os aguadeiros também as mulheres das castanhas, como figuras do quotidiano diário da época, ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Qualquer das memórias desperta em mim outras memórias. Assim, a memória dos aguadeiros carrega consigo a memória da frescura e do sabor inigualável da água contida em recipiente de barro. Por outro lado, a memória das mulheres das castanhas transporta consigo o odor e o sabor das castanhas assadas. É caso para dizer que as memórias são como as cerejas, vêm umas atrás das outras.

Hernâni Matos

domingo, 28 de setembro de 2025

O guardador de memórias

 

Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.


Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra.

Ao longo da minha vida de coleccionador reuni mais de 200 objectos oláricos de diferentes tipologias, morfologias, funcionalidades e tamanhos, os quais têm entre si um elo comum: foram produzidos pelas extintas olarias de Estremoz. São, pois, memórias do passado. Ao reunir um acervo pessoal dessas peças, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.

Estas memórias guardadas, conjuntamente com muitas outras memórias, integram a chamada memória colectiva, a qual nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.

É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.

Como guardador de memórias, assumo-me como fiel guardião da nossa ancestral matriz identitária, incumbido duma nobre missão: a de transmitir às novas gerações, a importância e a riqueza da pluralidade do passado e das tradições do nosso povo, para que elas tenham consciência de que urge resistir a uma globalização castrante, que assimptoticamente procurará reduzir à chapa zero, as nossas identidades culturais, a nível local, regional e nacional.

Hernâni Matos

terça-feira, 23 de setembro de 2025

A ADOE no rescaldo do 1º Encontro Nacional de Olaria em Évora Monte

 



No passado dia 21 de Setembro tive o privilégio de participar no Castelo de Évora Monte no Colóquio “RECENTRAR - Memória, Barro e Saber-fazer“, integrado no Encontro Nacional de Olaria, que ali teve lugar.

A minha participação foi fruto do honroso convite que me foi formulado pela Senhora Doutora Mathilda Dias Coutinho, coordenadora do projecto de investigação 2LEGACY, no sentido de participar no Colóquio na qualidade de coleccionador e investigador da olaria de Estremoz, convite a que naturalmente acedi e que muito me congratulou.

A minha comunicação subordinada à epígrafe O guardador de memórias e acompanhada de projecção em PowerPoint, teve o seguinte epílogo:

O legado da antiga tradição oleira de Estremoz constitui indiscutivelmente Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal. O legado é caracterizado pela excelência dos exemplares oláricos que o integram, o que é revelador da exigência que constitui a sua recuperação e preservação, visando a salvaguarda da identidade cultural estremocense.

Nessa missão está envolvida a ADOE, cujos associados têm recebido formação continuada, ministrada por Mestre Xico Tarefa, visando o seu aperfeiçoamento técnico e artístico. Tal só foi possível com o apoio indispensável e insubstituível do Município de Estremoz e do CEARTE - Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património.


Se me permitem endereço aqui uma saudação muito especial à Inês Crujo, Presidente da ADOE – Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz, que é a timoneira encarregada de “levar o barco a bom porto”. Parafraseando “O Mostrengo”, da “Mensagem” de Fernando Pessoa, é caso para dizer: “Ali ao leme é mais do que ela. É um povo que quer a olaria que é sua”.


Por fim e os últimos são os primeiros, uma saudação também muito especial para Mestre Xico Tarefa, "decano" da olaria de Redondo, reconhecido pelo seu vigoroso contributo para a preservação da arte oleira, o qual tenho o privilégio de conhecer desde o I Encontro Regional de Olaria do Alto Alentejo, realizado em Vila Viçosa, em 1980, há 45 anos atrás. Tem sido ele que com a sua mestria de saber fazer”, empenho e dedicação que são o seu timbre, tem dado formação aos Adoeiros, desculpem-me o neologismo, para que estes sejam bem-sucedidos na nobre missão a que se propuseram: "Revitalizar a produção oleira tradicional de Estremoz. Bem hajam por isso.

Hernâni Matos

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Colóquio “RECENTRAR: Memória, Barro e Saber-fazer “- Encontro Nacional de Olaria

 


Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 17  de Setembro de 2025.

Nos dias 20 e 21 de setembro, o Castelo de Évora Monte recebe o colóquio "Recentrar: Memória, Barro e Saber-fazer", integrado no programa do Encontro Nacional de Olaria.

O colóquio constitui um espaço de reflexão e debate em torno da memória, do barro e das práticas tradicionais da olaria, reunindo investigadores de diversas instituições portuguesas, convidados de entidades ligadas ao património cultural e ao artesanato, bem como artesãos e colecionadores.

O encontro tem como objetivo aprofundar o diálogo entre o conhecimento académico e o saber-fazer tradicional, valorizando o património material e imaterial da cerâmica e contribuindo para a sua preservação e transmissão às gerações futuras.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Exposição "O Legado do barro de Estremoz"



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 18  de Setembro de 2025.

No próximo dia 19 de setembro, às 15:00 horas, será inaugurada, na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, a exposição "O Legado do Barro de Estremoz".

A Exposição resulta do projeto de investigação 2LEGACY, dedicado à valorização do uso de barro endógeno — obtido a partir de argilas locais — na produção cerâmica tradicional. Com uma abordagem transdisciplinar, o projeto cruza história, antropologia, ciências exatas e artes, dando visibilidade à importância cultural e patrimonial deste saber-fazer.

A exposição reúne peças históricas de diferentes épocas e obras de olaria resultantes da recuperação do barro endógeno e das práticas tradicionais de Estremoz, realizadas em workshops e residências artísticas. O percurso expositivo acompanha todas as fases do projeto, destacando os processos de recolha, preparação e utilização do barro. Esta exposição é uma oportunidade para conhecer o património associado à olaria e barro de Estremoz.

O projeto de investigação, financiado pelo laboratório colaborativo IN2PAST, intitula-se Explorando o papel das matérias-primas na cerâmica tradicional portuguesa para resgatar o legado de Lepierre para o futuro: 2LEGACY (EXPL/In2Past/2024/15). Foi liderado pelo Laboratório HERCULES (UÉ/IN2PAST), em colaboração com o CRIA (NOVA FCSH/IN2PAST), o Lab2PT (UMinho/IN2PAST), a VICARTE (FCT-UNL/FBAUL), o CENIMAT (FCT-UNL) e a Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz (ADOE).

Contou com a parceria de instituições de referência como o Município de Estremoz, Sèvres – Manufacture et Musée Nationaux, a Fundação Alentejo, o Centro Ciência Viva de Estremoz, Museu da Olaria de Barcelos e a CEARTE.

Venha visitar!

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer" - Évora Monte, 20 e 21 de Setembro


No âmbito do ENCONTRO NACIONAL DE OLARIA que decorrerá no Castelo de Évora Monte entre 20 e 21 de Setembro, terá lugar o colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", que decorrerá naqueles dias, com intervenientes e horário indicados no cartaz do Colóquio, disponível aqui:




domingo, 24 de agosto de 2025

Berço com bébé, assobio de Maria Luísa da Conceição

 


Fig. 1 - Maria Luísa da Conceição. Berço com bébé (Fig. de assobio).


Preâmbulo
A figura de assobio que é objecto do presente escrito (Fig.1) foi adquirida por mim há cerca de 20 anos à barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), no decurso de uma visita à sua oficina.
Trata-se de um exemplar invulgar e de produção restrita que foi criado a pedido de uma cliente para ser oferecida como lembrança duma festa de baptizado aos convidados. Terão sobrado alguns assobios e daí eu ter o privilégio de possuir um na minha colecção, à semelhança do que se passa com Jorge da Conceição, filho da barrista.

Descrição
Base achatada, de secção elíptica, pintada de branco, com o tubo de sopro numa das extremidades, na cor natural do barro. Na base (Fig. 2), as marcas: carimbo “ESTREMOZ” (2 cm x 0,8 cm), seguido da marca manuscrita “M. Luísa”.
O motivo central do assobio assente na base descrita é um berço de bébé, de fundo cor de rosa e supostamente para menina, dada a convenção tradicional de cores: cor de rosa (menina), azul (menino). A parte lateral do berço apresenta superfície ondulada, sem decoração alguma. A coberta do berço e o toldo encontram-se decoradas com o que configuram ser flores de corola branca e pétalas azuis. O topo da parte frontal do berço ostenta um laço decorativo em branco. A extremidade da coberta do berço virada para o interior do mesmo encontra-se oculta pela dobra de um lençol branco, junto ao qual assomam as mãozinhas do bébé e a cabecinha assente na almofada, também cor de rosa.

Epílogo
O berço com bébé é uma das mais invulgares criações que constituem o legado da barrista Maria Luísa da Conceição. Daí eu me congratular por ser um dos raros possuidores desta notável figura de assobio.

Hernâni Matos

Fig. 2 - Na base, as marcas: carimbo “ESTREMOZ” (2 cm x 0,8 cm), seguido da marca
manuscrita “M. Luísa”.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Assobios devocionais

 

Fig. 1 - Maria Luísa da Conceição. Presépio de assobio.
Colecção particular.


O presépio de assobio
A produção dos barristas de Estremoz é diversificada e distribui-se pelas diferentes tipologias de Bonecos de Estremoz. Todavia é condicionada pela procura manifestada pelos clientes e mesmo pela época do ano. Daí que a aproximação do Natal aumente a procura e a produção de presépios. É significativo o número de coleccionadores de presépios, o que leva os barristas locais a diversificar a produção, na perspectiva de os seus clientes poderem adquirir novos exemplares para as suas colecções. Foi assim que a barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), criou como me revelou, um tipo muito simples de presépio, representando a Natividade de Jesus (Fig. 1). A composição consta de uma Sagrada Família assente na base de uma figura de assobio conhecida por galo no arco. O conjunto continua a ser uma figura de assobio, que a barrista designou por presépio de assobio. Enquanto figura de assobio, integra uma nova categoria, que muito legitimamente pode ser designada por assobios devocionais. O exemplar gizado por Maria Luísa da Conceição, além de ostentar as suas marcas identitárias enquanto barrista de Estremoz, foi produzido tendo em conta a técnica de produção e a estética do Boneco de Estremoz.
Inês da Conceição (1985 - ), neta de Maria Luísa da Conceição e filha de Jorge da Conceição (1963- ), com as suas próprias marcas identitárias e igualmente no mais estrito respeito pela técnica de produção e estética do Boneco de Estremoz, criou um novo e ainda mais simples presépio de assobio (Fig. 2). Nele, a composição resume-se à representação da Natividade de Jesus assente na base do assobio. Naturalmente que a figura continua a ser um assobio devocional.

Santo António
À semelhança do que se passa com os presépios também a figura de Santo António é muito procurada junto dos barristas de Estremoz, os quais vão diversificando as representações, a fim de corresponder ao interesse manifestado pelos coleccionadores. Foi assim que Inês da Conceição criou uma figura de assobio (Fig. 3) na qual Santo António envergando o hábito franciscano ostenta os atributos que lhe estão associados: uma açucena branca na mão direita e o Menino Jesus sentado sobre o livro de Doutor da Igreja no braço esquerdo.
Também o barrista Carlos Alberto Alves (1958- ) criou uma figura de assobio (Fig. 4). na qual Santo António envergando o hábito franciscano, configura estar a pregar, segurando na mão esquerda o livro de Doutor da Igreja, ao mesmo tempo que gesticula com a mão direita. Sentado a seus pés, o Menino Jesus Salvador do Mundo sustenta o globo terrestre. Estamos em presença de um novo assobio devocional, desta feita com as marcas identitárias muito próprias do barrista, mas salvaguardando sempre a técnica de produção e a estética do Boneco de Estremoz.

Nossa Senhora
Outra figura muito procurada junto dos barristas de Estremoz é a imagem de Nossa Senhora pelo que não admira que a barrista Ana Catarina Grilo (1974- ) tenha criado um assobio devocional (Fig. 5) em que Nossa Senhora com um ar de enorme candura enverga um vestido de cor azul celeste, pejado de flores e tem a cabeça coberta por um lenço branco que lhe cai sobre os ombros.

Epílogo
Creio que com o tempo, a galeria de assobios devocionais possa vir a ser ampliada. Todavia, os exemplares conhecidos de momento, independentemente dos barristas que os produziram, cingem-se ao Presépio, a Santo António e a Nossa Senhora.


Fig. 2 - Inês da Conceição. Presépio de Assobio.
Colecção Hernãni Matos.

Fig. 3 - Inês da Conceição. Santo António (Figura de assobio).
Colecção Hernâni Matos,

Fig. 4 - Carlos Alberto Alves. Santo António (Figura de assobio).
Colecção Hernãni Matos.

Fig. 5 - Ana Catarina Grilo. Nossa Senhora (Figura de assobio).
Colecção Hernãni Matos.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Todo o mundo é composto de mudança

 

Galo no poleiro. Jorge da Conceição.


Prólogo
O barrista é um contador de estórias em barro. Lá diz o rifão que “Quem conta um conto aumenta um ponto”. Por vezes, o ponto acrescentado gera uma nova qualidade e ocorre uma mudança de paradigma. Vejamos dois casos em que tal ocorreu.

Jorge da Conceição e o galo no poleiro
Uma figura tradicional de assobio zoomórfico em barro vermelho de Estremoz é o chamado galo no poleiro, o qual com configuração e decoração variável, tem sido produzido pelos barristas locais no decurso do tempo.
Na representação do galo no poleiro de Jorge da Conceição, ocorreu uma mudança de paradigma. O poleiro assumiu a configuração das costas de uma cadeira com a decoração dos tradicionais móveis pintados alentejanos. Com esta inovação, a matriz identitária da figura de assobio de Estremoz sai reforçada, pois a decoração é como que uma proclamação certificadora de que estamos em presença de uma figura de assobio alentejana. De Estremoz, pois claro!

Inês da Conceição e as figuras zoomórficas no mocho
Inês da Conceição, filha de Jorge da Conceição, tem produzido figuras zoomórficas de assobio, de base ovóide, semelhante à dos assobios zoomórficos de seu pai. A modelação ainda que expressiva é agora mais simplificada. O tubo de sopro, de cor verde bandeira, é igualmente adoçado na embocadura.
As bases apresentam um fundo verde bandeira tal como as bases dos assobios de seu pai. Encontram-se igualmente pintalgadas com pintas brancas, amarelas, laranja e zarcão, de forma igualmente regular, pouco espaçadas e mesmo parcialmente sobrepostas. Todavia, as pintas são agora mais miudinhas.
As figuras estão sempre viradas para o lado do tubo de sopro, numa posição centrada com a base ovóide. Todavia, as figuras não assentam directamente na base ovóide, mas num mocho cujos pés é que assentam nessa base.
O mocho é uma peça de mobiliário tradicional alentejano pintado que corresponde a um assento de 4 pés e sem costas, com a particularidade de o assento ser em buinho e os pés se encontrarem decorados com a pintura tradicional alentejana.
A introdução do mocho na composição da figura de assobio, potencia a sua matriz identitária de figura de assobio alentejana de Estremoz. Ocorreu aqui também uma mudança de paradigma, à semelhança do que se passara com o galo no poleiro de Jorge da Conceição. É caso para dizer “Filha de peixe sabe nadar” ou então “Tal pai, tal filha”.

Epílogo
À laia de remate seja-me permitido citar Camões:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

Galo no mocho. Inês da Conceição.


Cão no mocho. Inês da Conceição.

Gato no mocho. Inês da Conceição.

sábado, 16 de agosto de 2025

Quando as bilhas de Estremoz se passeavam por Sintra e frequentavam as praias da região

 

Fig. 1

O Mercado das Velharias em Estremoz continua a ser uma fonte inesgotável de agradáveis surpresas. Desta vez foi a descoberta de um objecto olárico feito à roda, mais propriamente uma bilha de barro vermelho (Fig. 1), com morfologia corrente e desprovida de decoração. O aspecto superficial não a torna atractiva, já que ostenta inevitáveis marcas de desgaste pelo tempo. O interesse em mim despertado resultou de duas particularidades por mim observadas.
A primeira, a qual salta à vista, é a existência na parte superior do bojo, do lado oposto à asa, de uma inscrição em alto relevo, orlada por um rectângulo e com os seguintes dizeres distribuídos por 3 linhas “AGUA DE MESA / FONTE DAS DAMAS / CAPUCHOS” (Fig. 2 e Fig. 3).
A segunda, situada acima daquela inscrição, é a marca de fabrico da Olaria Alfacinha, já por mim descrita anteriormente [i] : MARCA TIPO 2 - Marca “OLARIA ALFACINHA / ESTREMOZ“, aposta por carimbo, inscrita numa coroa circular de 2,3 cm e 1,4 cm de diâmetro, com a palavra “PORTUGAL”, ao centro. As inscrições “OLARIA ALFACINHA” e “ESTREMOZ” encontram-se separadas por duas cruzes trevoladas (Fig. 4 e Fig. 5).
Segundo consegui apurar, a “Fonte das Damas” situava-se junto ao “Convento dos Capuchos”, na freguesia de Colares, pertencente ao concelho de Sintra. No 1º quartel do séc. XX a água da Fonte das Damas era comercializada, transportada por burros em bilhas de barro e vendida na Vila de Sintra e nas praias da região. As bilhas, é claro, eram bilhas de Estremoz que com a ajuda de burros se davam ao luxo de passear por Sintra e frequentar as praias da região. Olha que chique!


Fig. 2

Fig. 3

Fig. 4

Fig. 5

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Bonecos de Estremoz nos contentores do lixo? Não, obrigado!


Imagem recolhida com a devida vénia no website "7 MARAVILHAS DA NOVA

Desenterrando uma velha crónica (1)
Como era expectável, a inscrição da "Produção de Figurado em Barro de Estremoz" na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, foi aprovada no decurso da 12.ª Reunião do Comité Intergovernamental da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, que entre 4 e 9 de Dezembro de 2017 decorreu no Centro Internacional de Convenções Jeju, na ilha de Jeju, na República da Coreia.
A referida inscrição foi alcançada na sequência de candidatura apresentada pelo Município de Estremoz (2) e corresponde ao reconhecimento planetário do labor e criatividade dos barristas do passado e do presente, que com as suas mãos mágicas e desde as bonequeiras de setecentos, transmitiram de geração em geração e até à actualidade, uma manufactura “sui generis” de figurado de barro, dita ao “modo de Estremoz”.
A 7 de Dezembro de 2017, a Assembleia da República aprovou por unanimidade um voto de congratulação, no qual é afirmado que “A Assembleia da República felicita, de forma destacada, todas as artesãs e artesãos, pelo seu insubstituível papel de preservação e divulgação deste património, cujo reconhecimento pela UNESCO engrandece a cultura popular e o País.”
O voto de congratulação que uniu deputados de todas as bancadas foi reflexo do regozijo sentido em todo o país e muito particularmente em Estremoz. Desde então, os Bonecos de Estremoz, factor de união entre estremocenses, reforçaram ainda mais o seu papel de ex-líbris e embaixadores culturais da cidade. Daí, que a meu ver, os Bonecos de Estremoz devessem merecer o respeito de toda a comunidade e não fossem alvo de qualquer tipo de aproveitamento que nada tem a ver com a sua origem, com a sua produção e com os artesãos seus criadores. Talvez por isso, o Município tenha registado em devido tempo a designação “Bonecos de Estremoz”.

Cosmética dos contentores do lixo
Recentemente uma lista candidata à Câmara Municipal de Estremoz nas próximas eleições autárquicas, anunciou publicamente que ”Nós não queremos ver os caixotes do lixo. Queremos fazer uma protecção dos caixotes do lixo e pintá-la com desenhos de Bonecos de Estremoz”.
Pessoalmente também perfilho a ideia de que os contentores municipais do lixo são inestéticos, não só em Estremoz como no resto do país. De resto, creio que o problema maior neste domínio e no caso particular de Estremoz é a licenciosidade ou melhor o modo libertino como alguns moradores num desprezo olímpico pelo resto da comunidade, não separam o lixo para os ecopontos e atafulham contentores com lixo a granel, para além de não respeitarem a regulamentação municipal relativa à deposição de lixos grossos.
Julgo ser prioritário diminuir o número de contentores e aumentar o número de ecopontos subterrâneos, bem como incentivar a educação ambiental de moradores prevaricadores, recorrendo para tal aos competentes serviços do Município.
Quaisquer protecções visando cobrir os contentores, independentemente dos motivos decorativos que as embelezem, correm o risco de servir para pouco mais que coisa nenhuma, enquanto se mantiver a incivilidade na utilização de contentores por parte de alguns moradores.

Bonecos de Estremoz e identidade cultural local
Há muito que os Bonecos de Estremoz são considerados ex-libris e embaixadores desta terra transtagana. Todavia, foi o seu reconhecimento pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade que os ligou indissociavelmente à identidade cultural local, a qual importa preservar e salvaguardar.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram um estatuto de respeitabilidade e honorabilidade que não é compatível com qualquer tipo de aproveitamento que nada tem a ver com a sua origem, com a sua produção e com os artesãos seus criadores. Como tal, choca-me a intenção manifestada por uma lista candidata à Câmara Municipal de Estremoz nas próximas eleições autárquicas, de vir a implementar protecções nos caixotes do lixo e pintá-las com desenhos de Bonecos de Estremoz. Quer se queira quer não, a concretização da ideia corresponderia na prática a associar Bonecos de Estremoz ao lixo, o que me repugna e rejeito liminarmente. Daí que proclame com todo o vigor que me é conhecido:
- BONECOS DE ESTREMOZ NOS CONTENTORES DO LIXO? NÃO, OBRIGADO!

Hernâni Matos (3)
Estremoz, 25 de Julho de 2025
Publicado no jornal E nº 362 de 1 de Agosto de 2025

(1) - Publicada no jornal "Brados do Alentejo" de 29 de Julho de 2021.
(2) - Então liderado por Luís Mourinha.
(3) - Coleccionador, investigador e publicista dos Bonecos de Estremoz. Autor do livro BONECOS DE ESTREMOZ. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir

 

O testemunho da Primavera. A Boniqueira - Joana Santos Ceramista


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Fascínio é o natural e intenso sentimento despertado pela imagem aqui apresentada. Lado a lado, duas Primaveras com os mesmos atributos, a mesma estética e o mesmo cromatismo, diferentes apenas no tamanho. Uma é Primavera adulta e a outra uma Primavera menina.
É notória uma forte ligação entre elas, patente na mão da mãe que segura a mão da filha, a quem comunica confiança e também ternura, igualmente transmitida pelo olhar que a Primavera menina absorve, encantada. É a partilha de saberes, de luz e de claridades, de cores e de tons, de perfumes e sons. É o legado de marcas identitárias ciclicamente propaladas à natureza e que assinalam a sua renovação. É uma mensagem de esperança nos dias da amanhã. É o revelar de um paradigma: Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir.
O Testemunho da Primavera de Joana Santos é simultaneamente o testemunho do génio criativo e da mente brilhante de uma mulher ceramista, que há muito pôs a magia das suas mãos tecnicamente dotadas, em sincronia harmónica com os impulsos de alma. É um deleite de espírito a visualização e a contemplação das suas criações. É, de resto, um privilégio e isso para mim é muito importante, usufruir do privilégio da sua amizade.

Publicado em 18 de Abril de 2023

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Assobios de Jorge da Conceição

 

Galinha e pintos.

Prólogo
Os assobios são Bonecos de Estremoz com morfologia muito própria e que pela sua funcionalidade são simultaneamente instrumentos musicais e brinquedos. Sob um ponto de vista morfológico são habitualmente classificados em zoomórficos, antropomórficos e compostos.
Até ao presente, a produção de Jorge da Conceição, a qual é objecto do presente estudo, apenas comporta assobios zoomórficos, mais propriamente galináceos (galos, galinhas e pintos)

Geometria das bases e dimensões das figuras
Base ovóide com cerca de 6 cm de largura e 8,5 cm de comprimento, incluindo o tubo de sopro. Altura variável..

Modelação
Modelação muito minuciosa, rica em pormenores e que valoriza a perfeição. Tubo de sopro adoçado na embocadura.

Assentamento das figuras nas bases
Figuras assentes sensivelmente ao centro da base ovóide, viradas sempre para o lado do tubo de sopro, de modo que a sua parte frontal esteja virada para o assobiador.

Decoração
À semelhança da modelação, a decoração é também pormenorizada. Bases com fundo verde bandeira, pintalgadas com pintas brancas, amarelas, laranja e zarcão, de forma regular, pouco espaçadas e mesmo parcialmente sobrepostas, as quais além de decorarem a base, embelezam o conjunto. Tubo de sopro de cor verde bandeira.

Envernizamento
Utilização de verniz mate.

Epílogo
Os assobios de Jorge da Conceição são caracterizados por uma modelação e uma decoração muito minuciosas, fortemente naturalistas, que os transformam em peças extremamente apelativas. Deste modo, transcendem o âmbito restrito daquilo que podiam ser apenas brinquedos e instrumentos musicais, passando a ser também objectos decorativos, o que está em consonância com a alma do barrista. Jorge da Conceição demanda a beleza, a elegância, o equilíbrio e a harmonia em tudo o que faz.
Obrigado, Mestre!



Galinha no ninho com arco de flores

Galinha no choco

Cesta de ovos

Galo no poleiro alentejano

Galo no arco

Galo no jardim

Galo no roseiral

Galo na vinha

Galo na azinheira

Galo no pinheiro

Galo no poste

Galo

terça-feira, 22 de julho de 2025

No tempo em que não havia “Barbies”






BONECAS DE TRAPO
(Colecção Hernâni Matos)

No tempo em que não havia “Barbies”, as crianças brincavam com bonecas de pano, vulgo “bonecas de trapo”, feitas por uma mulher da Família, aproveitando retalhos de tecidos que tinham sobrado da confecção de peças de vestuário. Havia ainda a possibilidade de aproveitar peças de vestuário que tinham caído em desuso, porque estavam puídas, rotas, rasgadas ou desbotadas.

Com uma tal manufactura, a mulher da Família (mãe, avó, tia ou irmã) dava à criança a quem a boneca era destinada, três grandes lições:

- A primeira era uma lição de economia circular, já que havia o reaproveitamento de tecidos que havia sido abatidos ao serviço, mas que assim continuavam a ter préstimo. A criança ficava assim a perceber a importância do combate ao desperdício;

- A segunda era uma lição de amor, dada pela mulher da Família à criança que a recebia, o que contribuía para o reforço dos laços inter-geracionais;

- A terceira lição era uma lição de pedagogia. já que a dádiva constituía um incentivo ao brincar, actividade insubstituível na formação e socialização da criança.

Nem sempre o passado foi melhor que o presente, mas em muitos casos foi e há contextos que podem ser apontados como exemplos a seguir. É o caso das “bonecas de trapo”, aqui apresentado como paradigma.

 Hernâni Matos 

Publicado inicialmente em 22 de Julho de 2024