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segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Bonecos de Estremoz: Duarte Catela


Duarte Catela (1988-  ). Fotografia de 2018 da autoria de Joana Serrano.
Arquivo fotográfico do autor. 

Duarte Miguel Menezes Catela nasceu a 4 de Fevereiro de 1988, nas traseiras da Rua Alexandre Herculano, n.º 33 em Estremoz. Filho legítimo de Luís Miguel Ramalho Catela, de 22 anos e de Helena Maria Lopes Bravo Menezes Catela, de 22 anos. É bisneto dos barristas António Lino de Sousa (1918-1982) e Quirina Alice Marmelo (1922-2009). Frequentou a Escola Secundária Rainha Santa Isabel, em Estremoz, na qual concluiu em 2006, o 12º do Agrupamento 1 – Curso de Carácter Geral. Tem o curso de Hotelaria da Escola Profissional de Hotelaria e Turismo de Lisboa, concluído em 2009.  Começou a trabalhar na Pousada de Sagres e passou a sub-chefe de cozinha nas Pousadas de Portugal, permanecendo nessa condição na Pousada de Queluz. Actualmente é chefe de cozinha na Pousada de Palmela e no Restaurante Cozinha Velha (Palácio Nacional de Queluz). O seu interesse pelos Bonecos de Estremoz remonta à juventude quando, à guarda da bisavó, a observava na modelação e pintura dos Bonecos, acabando por seguir o seu padrão de execução, ao mesmo tempo que utiliza os moldes das faces que dela herdou. Cozinheiro de profissão, procura conciliar a actividade profissional com a arte bonequeira que herdou da família. Modela os Bonecos na sua residência em Lisboa e estes depois de secos, são transportados para Estremoz onde são cozidos na mufla eléctrica que pertenceu à sua bisavó Quirina Marmelo e se encontra na antiga oficina-loja na Rua Arco de Santarém, nº 4, onde moram os seus avós. Em Estremoz, a sua mãe Helena Catela, colabora na pintura dos Bonecos. A venda dos seus Bonecos é feita no Museu Municipal de Estremoz, na Mercearia Figo no Rossio Marquês de Pombal n.º 73 em Estremoz e directamente a clientes que lhe fazem encomendas. Em Estremoz tem participado na FIAPE, já expôs individualmente e tem participado em exposições colectivas, bem como em feiras onde não estando presente, está representado no stand da Câmara Municipal de Estremoz.

Publicado inicialemente em 17 de Março de 2020


Presépio de 3 figuras.

 Nossa Senhora da Conceição.

 Nossa Senhora dos Mártires.

 Matança do porco - 1.

Matança do porco - 2.
  
Pastor de tarro e manta.
  
 Homem do harmónio.

 Pastor debaixo da árvore.

 Ceifeiro.

Cozinha dos ganhões.
  
 Mondadeira.

 Mulher das castanhas.

 Senhora ao toucador.

 Primavera de arco.

Amor é cego.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Jorge da Conceição e a bailadeira de arco



Bailadeira de arco. Jorge da Conceição (1963-   ).

Dentre as várias bailadeiras de arco criadas por Jorge da Conceição, houve uma que despertou a minha particular atenção, não só pela modelação perfeita como é timbre do barrista, como pelo seu rico cromatismo, do qual transparece e irradia forte carga simbólica.
Em termos de modelação, seja-me permitido parafrasear a linguagem dos jogadores de póquer, que quando não têm jogo, clamam:
- Passo!
Eu também passo, já que não tenho palavras para traduzir, o quanto gosto da modelação. Todavia, sempre sou levado a dizer que para além do mais rigoroso respeito pela modelação ao modo de Estremoz, ocorre aqui uma mudança de paradigma. A demanda de perfeição pelo barrista, faz guindar a sua obra do patamar da arte popular para o degrau da arte erudita.
Em termos estéticos e para além da modelação fortemente naturalista, ressalta sobre um ponto de vista cromático, uma pentacromia harmoniosa, sabiamente escolhida com recurso a uma cor fria (verde – 2 tonalidades), duas cores quentes (zarcão – 2 tonalidades; amarelo – 2 tonalidades) e duas cores neutras (branco e castanho).
As cores quentes e o branco simbolizam a luminosidade da estação. O desabrochar e o reverdecer da natureza estão traduzidos pelo verde do vestido e da base da figura, bem como pelo verde das flores do arco e das folhas do buquê. A ligação da Primavera à natureza e à terra, é assegurada pelo castanho da orla da base da figura.
A finalizar, observo que a criação do barrista revela duas inovações. Uma delas é a introdução de pormenores morfológicos na modelação das flores do arco. A segunda é a utilização da simetria por alternância, na disposição dessas mesmas flores, a qual reforça a harmonia de conjunto.
Em suma: o barrista é credor da nossa admiração, pelo que lhe endereço os meus parabéns por este trabalho. E é claro, um grande abraço. Pois, claro!

Publicado em 8 de Agosto de 2021

sábado, 2 de agosto de 2025

Dia de Sortes

 

Dia de Sortes. Modelação de Carlos Alberto Alves. Pintura de Cristina Malaquias.
Colecção Hernâni Matos

O Serviço Militar Obrigatório
Nos anos 60 do século passado, Portugal esteve envolvido numa guerra colonial contra os movimentos de libertação das colónias portuguesas. Em Angola desde 1961, na Guiné-Bissau desde 1963 e em Moçambique desde 1964.
Estava em vigor o Serviço Militar Obrigatório, cujo principal objectivo, de acordo com a legislação em vigor, era a defesa da Pátria.

A ida às Inspecções
Aos 18/19 anos os jovens eram convocados para as “Inspecções”. Tratava-se da inspecção militar, que consistia em provas físicas e médicas, visando determinar se os mancebos estavam ou não aptos para serem incorporados no Serviço Militar Obrigatório.
Em Estremoz, as inspecções decorriam no 1º andar do Convento de São João de Deus, onde hoje funciona a Messe de Sargentos e que na época albergava o Hospital Militar.
Identificada à chegada, a rapaziada era mandada “descascar” numa sala e formar em “fila indiana” tal como tinha vindo a este mundo, até ser inspeccionada por uma Junta Médica a funcionar numa sala vizinha. Ali ficavam a saber se tinham sido apurados, ficado livres ou adiados por mais um ano na incorporação militar.

Uma Junta Médica zelosa
Em plena guerra colonial e com falta de carne para canhão, eram dominantes os apurados e raros os livres. Todavia foi este o meu caso, visto que há pouco mais dum ano, vítima dum acidente de viação, vira parte de uma perna amputada ser substituída por uma rudimentar prótese ortopédica. Apesar de tudo, não fiquei livre por simples inspecção visual, já que os senhores “inspectores” me mandaram tirar a prótese ortopédica para eu provar que tinha falta de perna e não havia “marosca” nenhuma para enganar a Junta Médica.

O ingresso na tropa
Os apurados nas inspecções eram incorporados no ano em que cumpriam o 20.º aniversário. Contudo, o período de incorporação podia alargar-se até aos 34 anos se os convocados, vivessem no estrangeiro, estivessem a estudar ou se tivessem um irmão a cumprir serviço no momento da incorporação
No tempo da guerra colonial (1961/1974) o tempo de "tropa" podia chegar a quatro anos ou mais.

Dia de Sortes
O “Dia das Inspecções” era na gíria popular conhecido por “Dia de Sortes”, designação devida ao facto de ser nesse dia que cada mancebo inspeccionado ficava a saber qual a “sorte” que lhe tinha cabido na inspecção militar: apurado, livre ou adiado. A cada sorte estava associada simbolicamente uma fita colorida, de acordo com a seguinte convenção: APURADO=VERDE, LIVRE=VERMELHO, ADIADO=BRANCO.
À saída das inspecções cada jovem identificava-se com a “sorte” que lhe tinha cabido. Para tal exibia a correspondente fita colorida, pregada no peito, no boné ou no chapéu. À sua espera um tocador de harmónio contratado que os acompanhava pelas ruas da cidade, enquanto cada um deles tocava a sua própria pandeireta. Era um modo simples e tradicional de partilhar com a comunidade, o conhecimento da “sorte” que lhe tinha cabido. Era de certo modo, um ritual de puberdade que se extinguiu tal como o Serviço Militar Obrigatório. Era um rito que incluía uma almoçarada bem comida e bem regada que prosseguia pela tarde fora, até o mais ajuizado do grupo, dar ordem de destroçar.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Bonecos de Estremoz nos contentores do lixo? Não, obrigado!


Imagem recolhida com a devida vénia no website "7 MARAVILHAS DA NOVA

Desenterrando uma velha crónica (1)
Como era expectável, a inscrição da "Produção de Figurado em Barro de Estremoz" na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, foi aprovada no decurso da 12.ª Reunião do Comité Intergovernamental da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, que entre 4 e 9 de Dezembro de 2017 decorreu no Centro Internacional de Convenções Jeju, na ilha de Jeju, na República da Coreia.
A referida inscrição foi alcançada na sequência de candidatura apresentada pelo Município de Estremoz (2) e corresponde ao reconhecimento planetário do labor e criatividade dos barristas do passado e do presente, que com as suas mãos mágicas e desde as bonequeiras de setecentos, transmitiram de geração em geração e até à actualidade, uma manufactura “sui generis” de figurado de barro, dita ao “modo de Estremoz”.
A 7 de Dezembro de 2017, a Assembleia da República aprovou por unanimidade um voto de congratulação, no qual é afirmado que “A Assembleia da República felicita, de forma destacada, todas as artesãs e artesãos, pelo seu insubstituível papel de preservação e divulgação deste património, cujo reconhecimento pela UNESCO engrandece a cultura popular e o País.”
O voto de congratulação que uniu deputados de todas as bancadas foi reflexo do regozijo sentido em todo o país e muito particularmente em Estremoz. Desde então, os Bonecos de Estremoz, factor de união entre estremocenses, reforçaram ainda mais o seu papel de ex-líbris e embaixadores culturais da cidade. Daí, que a meu ver, os Bonecos de Estremoz devessem merecer o respeito de toda a comunidade e não fossem alvo de qualquer tipo de aproveitamento que nada tem a ver com a sua origem, com a sua produção e com os artesãos seus criadores. Talvez por isso, o Município tenha registado em devido tempo a designação “Bonecos de Estremoz”.

Cosmética dos contentores do lixo
Recentemente uma lista candidata à Câmara Municipal de Estremoz nas próximas eleições autárquicas, anunciou publicamente que ”Nós não queremos ver os caixotes do lixo. Queremos fazer uma protecção dos caixotes do lixo e pintá-la com desenhos de Bonecos de Estremoz”.
Pessoalmente também perfilho a ideia de que os contentores municipais do lixo são inestéticos, não só em Estremoz como no resto do país. De resto, creio que o problema maior neste domínio e no caso particular de Estremoz é a licenciosidade ou melhor o modo libertino como alguns moradores num desprezo olímpico pelo resto da comunidade, não separam o lixo para os ecopontos e atafulham contentores com lixo a granel, para além de não respeitarem a regulamentação municipal relativa à deposição de lixos grossos.
Julgo ser prioritário diminuir o número de contentores e aumentar o número de ecopontos subterrâneos, bem como incentivar a educação ambiental de moradores prevaricadores, recorrendo para tal aos competentes serviços do Município.
Quaisquer protecções visando cobrir os contentores, independentemente dos motivos decorativos que as embelezem, correm o risco de servir para pouco mais que coisa nenhuma, enquanto se mantiver a incivilidade na utilização de contentores por parte de alguns moradores.

Bonecos de Estremoz e identidade cultural local
Há muito que os Bonecos de Estremoz são considerados ex-libris e embaixadores desta terra transtagana. Todavia, foi o seu reconhecimento pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade que os ligou indissociavelmente à identidade cultural local, a qual importa preservar e salvaguardar.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram um estatuto de respeitabilidade e honorabilidade que não é compatível com qualquer tipo de aproveitamento que nada tem a ver com a sua origem, com a sua produção e com os artesãos seus criadores. Como tal, choca-me a intenção manifestada por uma lista candidata à Câmara Municipal de Estremoz nas próximas eleições autárquicas, de vir a implementar protecções nos caixotes do lixo e pintá-las com desenhos de Bonecos de Estremoz. Quer se queira quer não, a concretização da ideia corresponderia na prática a associar Bonecos de Estremoz ao lixo, o que me repugna e rejeito liminarmente. Daí que proclame com todo o vigor que me é conhecido:
- BONECOS DE ESTREMOZ NOS CONTENTORES DO LIXO? NÃO, OBRIGADO!

Hernâni Matos (3)
Estremoz, 25 de Julho de 2025
Publicado no jornal E nº 362 de 1 de Agosto de 2025

(1) - Publicada no jornal "Brados do Alentejo" de 29 de Julho de 2021.
(2) - Então liderado por Luís Mourinha.
(3) - Coleccionador, investigador e publicista dos Bonecos de Estremoz. Autor do livro BONECOS DE ESTREMOZ. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir

 

O testemunho da Primavera. A Boniqueira - Joana Santos Ceramista


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Fascínio é o natural e intenso sentimento despertado pela imagem aqui apresentada. Lado a lado, duas Primaveras com os mesmos atributos, a mesma estética e o mesmo cromatismo, diferentes apenas no tamanho. Uma é Primavera adulta e a outra uma Primavera menina.
É notória uma forte ligação entre elas, patente na mão da mãe que segura a mão da filha, a quem comunica confiança e também ternura, igualmente transmitida pelo olhar que a Primavera menina absorve, encantada. É a partilha de saberes, de luz e de claridades, de cores e de tons, de perfumes e sons. É o legado de marcas identitárias ciclicamente propaladas à natureza e que assinalam a sua renovação. É uma mensagem de esperança nos dias da amanhã. É o revelar de um paradigma: Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir.
O Testemunho da Primavera de Joana Santos é simultaneamente o testemunho do génio criativo e da mente brilhante de uma mulher ceramista, que há muito pôs a magia das suas mãos tecnicamente dotadas, em sincronia harmónica com os impulsos de alma. É um deleite de espírito a visualização e a contemplação das suas criações. É, de resto, um privilégio e isso para mim é muito importante, usufruir do privilégio da sua amizade.

Publicado em 18 de Abril de 2023

segunda-feira, 21 de julho de 2025

"Alentejo" de Júlio Resende

 

 Júlio Resende (1917-2011). Alentejo. Linoleogravura sobre papel.
Prova Única. 24 x 24 cm. Assinada e datada de 1950. 
Colecção Hernâni Matos.


Primeira versão de "Alentejo"
A presente prova única de linoleogravura, intitulada “Alentejo”, assinada e datada de 1950, a lápis, representa dois alentejanos de chapéu e capote, montados em cavalos e outros dois apeados, um em pé e outro dobrado, juntos a outro cavalo. O grupo encontra-se à frente de casario e são visíveis árvores na linha do horizonte. A linoleogravura foi produzida no último ano de permanência do pintor no Alentejo, onde viveu e foi professor nos anos de 1949-50 na Escola de Cerâmica de Viana do Alentejo. Foi o período em que privou com o escritor Vergílio Ferreira e com o pintor António Charrua. A linoleogravura pertenceu à colecção do livreiro portuense Fernando Fernandes (1934-2018), que em 1953 integrou o MUD juvenil e em 1958 fundou a Livraria-Galeria Divulgação que uma década depois, se transformou na Livraria Leitura, um espaço de cultura de excelência, tanto no campo das letras como das artes. Aquisição através de leiloeira.

Versões posteriores de "Alentejo"
Em 1961, quando do VII Aniversário do Cine Clube de Estremoz, Júlio Resende produziu a versão 1961 da composição ”Alentejo” de 1950, de que resultou a linoleogravura da capa do programa de aniversário e com o formato dele (18 x 16,5 cm). A assinatura e a data são agora serigráficas.
É conhecida também a versão 2006 da composição “Alentejo” sob a forma de desenho a carvão (170 x 170 cm), com assinatura e data também a carvão. Integrou a exposição “Resende - ALENTEJO”, a qual teve lugar em 2017 no Palácio dos Marqueses da Praia e Monforte, em Estremoz. 
EM 2021 foi vendido pela leiloeira Palácio do Correio Velho, em Lisboa, um quadro a óleo sobre tela (164 x 170 cm) de Júlio Resende, intitulado "Figuras de Viana do Alentejo", assinado e datado de 1951, pertencente à Colecção Professor Doutor António Ferraz Júnior e Dr. José Manuel Ferraz. Este quadro tem uma composição análoga à da linoleogravura e vem reproduzido no livro de Júlio Resende: “Júlio Resende - A Arte como / vida". Editora Civilização. Porto, 1989, pág. 50.

Júlio Resende (1917-2011)
Júlio Resende nasceu no Porto em 1917. É autor de uma obra de pintura vastíssima, desenvolvida entre os anos 30 do século XX e a primeira década do século XXI. Concluiu a formação em Pintura, no ano de 1945, na Escola de Belas Artes do Porto, onde seria docente entre 1958 e 1987.
Realizou inúmeras exposições no país e no estrangeiro, tendo iniciado, em 1934, a participação em exposições colectivas, e um trajecto individual em 1943. Ao longo da sua carreira, foi distinguido com relevantes prémios. Realizou obra pública com trabalhos em técnicas que vão da cerâmica ao fresco, do vitral à tapeçaria, instalados em espaços do norte ao sul de Portugal. Ilustrou obras literárias, nomeadamente para a infância, realizou cenários e figurinos para teatro, bailado e espectáculos de grande impacto.
Sobre a sua produção debruçaram-se os principais críticos e historiadores de arte portugueses, mas também importantes escritores e poetas.
Em 1947 instala-se em Paris. Viajou por França, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália, onde interactuou com inúmeros artistas Nos anos de 1949 / 50 foi professor na Escola de Cerâmica de Viana do Alentejo, período em que privou com o escritor Vergílio Ferreira e com os artistas Júlio e Charrua. Nos anos 50 promoveu, em Portugal, as Missões Internacionais de Arte, para as quais eram convidados artistas estrangeiros em diálogo com artistas portugueses. Em 1954 lecciona na Escola Secundária da Póvoa de Varzim e em 1955 promove a segunda “Missão Internacional de Arte”, naquela localidade. Em 1970 seria responsável pela orientação visual e estética do Espectáculo de Portugal na “Exposição Mundial de Osaka”, momento relevante da sua presença no estrangeiro.
A criação do Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende foi um dos principais projectos a que se dedicou a partir da década final do século XX. Dedica-se à preservação e à divulgação do acervo de desenhos de Júlio Resende, que é composto por mais de duas mil e quinhentas obras que o Pintor reuniu ao longo da sua carreira.

sábado, 19 de julho de 2025

Cipriano Dourado e a apanha da azeitona

 

Rabisco. Litografia sobre papel 6/20. 42 x 35,5 cm. 1956.


Conjuntamente com a terra, a mulher é o tema dominante na obra de Cipriano Dourado (1921-1981), tanto no desenho, como na gravura ou na pintura. Nos seus trabalhos e independentemente da adversidade do contexto, sobressai sempre o encanto da feminilidade, resultado da delicadeza do seu traço.
No núcleo neo-realista do meu acervo pessoal de artes plásticas, tenho duas obras onde o artista aborda a apanha da azeitona.

Rabisco. Litografia sobre papel 6/20. 42 x 35,5 cm. 1956.
A litografia representa uma mulher do povo, de cabeça coberta por um lenço, com avental de trabalho e descalça, o que indicia a sua condição de pobreza. Encontra-se junto a uma oliveira, dobrada sobre si própria e apanha azeitona caída da árvore. No tempo do fascismo havia quem por necessidade tivesse que “andar ao rabisco”, isto é, ir à apanha da azeitona caída no chão, uma vez que tivesse terminado a safra. Era uma actividade de subsistência e último recurso, praticada por quem vivia miseravelmente. Nalgumas regiões era uma prática consentida pelos proprietários dos olivais, noutras não. Neste último caso, não era raro ver desgraçados entrar numa vila ou aldeia qualquer, à frente da guarda a cavalo. Como não tinham com que pagar a coima prevista, iam descansar as costas na prisão.
A litografia participou na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, a qual ocorreu entre 7 e 31 de Dezembro de 1957 nas salas de exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa. A tiragem da litografia foi de 20 exemplares e era vendida no local ao preço de 200$00 cada exemplar. Não foi editada pela GRAVURA, fundada no ano anterior, cujas tiragens eram na época de 100 exemplares e da qual Cipriano Dourado foi sócio fundador. Esta litografia fez parte da colecção do Eng. Frederico Marechal Spargo Pinheiro Chagas. Aquisição através de leiloeira.

Camponesa. Litografia sobre papel – prova de ensaio. 
45 x 33 cm. 1957.

Camponesa. Litografia sobre papel – prova de ensaio. 45 x 33 cm. 1957.
A litografia representa uma camponesa alentejana a colher azeitona de uma oliveira, a qual deposita no avental arregaçado. A cabeça encontra-se bem protegida por um lenço e as saias foram apanhadas em forma de calças, tal como usavam as ceifeiras. Aquisição feita a um antiquário. Litografia editada pela GRAVURA numa tiragem normal de 100 exemplares.

Cipriano Dourado (1921-1981)
Cipriano Dourado nasceu em 8 de Fevereiro de 1921 em Penhascoso (Mação). Em Lisboa, após frequentar a Escola Industrial Marquês de Pombal, inicia o seu percurso artístico como autodidacta. Com 14 anos, começou a trabalhar como desenhador-litógrafo e a perícia adquirida faz com que nas suas mãos, a litografia passe a ser gravura como arte maior.
O seu talento e vocação para as artes plásticas levaram-no a frequentar em 1939 a Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, como aluno do curso nocturno, iniciando a sua participação nas exposições com trabalhos a aguarela, pois a gravura não tinha ainda entrada em exposições oficiais. Nos Salões de Inverno da SNBA, onde a aguarela e o desenho tinham acesso, Cipriano Dourado participou em 1947, com trabalhos de aguarela que obtiveram o 2º prémio Roque Gameiro e uma menção honrosa.
Entre 1949 e 1956 participou nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, na qualidade de desenhador, pintor e gravador. Em 1953, participou no “Ciclo do arroz” e em 1956 foi um dos sócios fundadores da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. Como ilustrador colaborou em publicações como Seara Nova, Vértice, Colóquio-Letras e ilustrou livros de Orlando Gonçalves, Armindo Rodrigues, Mário Braga, Augusto Gil e Antunes da Silva, entre outros.
Participou em inúmeras exposições, tanto em Portugal como no estrangeiro. Encontra-se representado em museus como: Museu Nacional de Arte Contemporânea (Lisboa), Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), Museu do Neo-Realismo (Vila Franca de Xira) e outros, bem como em inúmeras colecções públicas e privadas.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

António Cunhal (1910-1932), artista plástico neo-realista


António Cunhal (1910-1932). Semeador. Desenho a
tinta-da-china sobre cartolina. 25 x 16 cm. Assinado
e não datado. Colecção Hernâni Matos.

Um Cunhal menos conhecido
ANTÓNIO CUNHAL (1910-1932), natural de Coimbra, faleceu em Lisboa em 1932, vítima de tuberculose e gangrena pulmonar. Filho de Avelino Cunhal (1887-1966) e irmão de Álvaro Cunhal (1913-2005), advogados, políticos, escritores e artistas plásticos neo-realistas.

Artista plástico
Com 21 anos de idade, António Cunhal expôs 26 trabalhos seus no Salão “PINTURAS E DESENHOS DE ANTÓNIO CUNHAL”, patente ao público entre 1 e 15 de Junho de 1931, na prestigiada Papelaria Progresso, situada na Rua do Ouro 151 a 155, em Lisboa.
Nesse salão esteve exposto “O semeador”, desenho a tinta-da-china sobre cartolina, aqui reproduzido, adquirido por mim em leiloeira, o qual pertenceu à colecção do Dr. Fernando Abranches Ferrão (1908-1985), advogado de defesa de opositores ao regime do Estado Novo, onde se destacam os processos da Revolta da Mealhada (1947), da Comissão Distrital de Lisboa do MUD - Movimento de Unidade Democrática (1948), de Humberto Delgado na sequência das eleições Presidenciais (1958), do Golpe de Beja (1962) e dos estudantes (1965).
“O semeador” está assinado mas não está datado, pelo que será de 1931 ou de data anterior, qualquer delas afastadas dos finais dos anos 30, apontados como período de surgimento do neo-realismo português. Todavia, não só pelo conteúdo temático, mas sobretudo pela estética da representação, sou levado a considerar “O semeador” como uma obra neo-realista e a incluir António Cunhal no rol dos artistas plásticos neo-realistas.
António Cunhal está representado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa e em colecções particulares.

Cinesta de animação
António Cunhal realizou em 1930 com Raul Faria da Fonseca, o filme de animação “A lenda de Miragaia”. O argumento é da autoria de ambos, inspirado no Romanceiro de Almeida Garrett. Baseia-se numa lenda popular que relata como o rei Ramiro II de Leão raptou a princesa moura Zahara e como o seu irmão Alboazar raptou a esposa de Ramiro, a rainha Gaia.
Trata-se do primeiro filme de animação português, recorrendo à técnica inovadora de animação de silhuetas recortadas, as quis foram fotografadas uma a uma para criar o movimento.
O filme, com 400 metros de extensão, era constituído por 24 800 fotogramas, que representavam outros tantos desenhos e movimentos.
“A Lenda de Miragaia”, produção da Ulyssea Film, estreou-se em Lisboa, no Jardim Cinema, a 1 de Junho de 1931.

Epílogo
Talvez a obra de António Cunhal merecesse uma investigação apurada, visando concluir se é ou não um artista plástico neo-realista, tal como eu aqui o proclamo.

Publicado inicialmente em 3 de Fevereiro de 2024

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Ceifeira adormecida - Litografia de Manuel Ribeiro de Pavia


Ceifeira adormecida (1955). Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).
 Litografia sobre papel - prova nº 7. 26 x 36 cm (mancha).
Colecção Hernãni Matos

Ceifeira adormecida (1955). Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).
Litografia sobre papel 19/50. 26 x 36 cm (mancha).
Colecção Hernãni Matos.

No Alentejo de outros tempos, a colheita do trigo recorria à ceifa manual, actividade sazonal dificultada pelo rigor do clima. Ceifeiros e ceifeiras sentiam-no bem no corpo. O trabalho penoso e mal pago, realizava-se de “sol a sol”, interrompido apenas por refeições rápidas e frugais. A “bucha” ao pegar no trabalho, o “almoço” pelas 10 horas da manhã, o “jantar” sensivelmente pelas 2 da tarde, a que se seguia a “sesta” de duas horas para um retemperar de forças. A sesta ocorria à sombra de uma azinheira ou de molhos de trigo e durava até serem acordados pelo manajeiro. A faina prolongava-se até às 8 da noite, altura em que tinha lugar a “ceia”, a última refeição do dia, finda a qual trabalhavam até haver luz e o manajeiro dar a ordem de “solta”. Depois era o descanso nocturno, até ao nascer do sol do dia seguinte.

A sesta dos ceifeiros é um tema recorrente na arte portuguesa. Manuel Ribeiro de Pavia na litografia “Ceifeira adormecida” (Fig. 2 e Fig. 3) patenteia uma ceifeira a descansar, encostada a uma árvore e protegida pela sua sombra. Observe-se que a litografia é anterior à criação da GRAVURA - Sociedade Portuguesa de Gravadores (1956). A prova nº 7 da litografia “Ceifeira adormecida” (Fig. 1) é uma prova de cor com um cromatismo mais vivo que o trabalho final (Fig. 2), o qual teve uma tiragem de 50 exemplares cujo cromatismo é mais sóbrio.

José Malhoa (Fig. 3) no óleo sobre tela “A sesta dos ceifeiros” (1895), mostra um grupo de ceifeiros a descansar à sombra de uma árvore, a qual não aparece representada.

Dordio Gomes (Fig. 4) no óleo sobre tela “A sesta dos ceifeiros” (1918), representa ceifeiros a descansar, protegidos por molhos de trigo. 

 Hernâni Matos

Publicado inicialmente a 16 de Julho de 2024

Fig. 3 - A sesta dos ceifeiros (1885). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (95 x 132 cm).
Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, Lisboa.

Fig. 4 - A sesta dos ceifeiros – Alentejo (1918). Dórdio Gomes (1890-1976).
Óleo sobre tela (74 x 59 cm). Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.

sábado, 12 de julho de 2025

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O amor é cego



O Amor é cego. Jorge da Conceição (1963 - ). Colecção Hernâni Matos.

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018

domingo, 29 de junho de 2025

Jorge da Conceição e o Porteiro do Céu

 

Fig. 1 - São Pedro (1984). Jorge da Conceição (1963-  ).

A aparição de São Pedro
As horas são como as cerejas. Atrás de uma vem sempre outra. E foi assim que em Outubro passado, já a desoras, ainda me encontrava vigilante no meu posto de pescador à linha, a ver aquilo que conseguia pescar na internet. Já não me lembro da palavra chave que naquela altura utilizei como engodo no motor de busca do OLX. O que é verdade, é que fui surpreendido pelo aparecimento de “peixe graúdo”.
Tratava-se de uma imagem de São Pedro (Fig. 1), de grandes dimensões, identificada como “Boneco de Estremoz” e que na base ostentava a marca manuscrita “Jorge Conceição / Palmela 1984” distribuída por duas linhas, ladeada à esquerda e um pouco mais abaixo pelo carimbo “ESTREMOZ / PORTUGAL” (2 cm x 0,8 cm), distribuído igualmente por duas linhas. Trata-se de uma marcação (Fig. 2), que por desconhecimento meu não foi inventariada nas págs. 81 e 85 do meu livro (1). Se em 2018, à data de edição do livro, podia dizer “Quem dá o que tem, a mais não é obrigado”, na actualidade impõe-se o preenchimento da lacuna, do que aqui dou conta para usufruto do leitor.
A figura, da autoria do prestigiado barrista Jorge da Conceição Palmela, fora criada há quase quarenta anos, na sua primeira fase de produção. De imediato, contactei o vendedor, revelando o meu interesse na sua aquisição e solicitando o envio de coordenadas bancárias, visando o pagamento do item pretendido. O vendedor respondeu-me na manhã seguinte e eu de imediato, efectuei o respectivo pagamento. O inesperado “achado”, dada a sua natureza, ocupa um lugar de destaque e muito especial na minha colecção.

Onde se fala da sorte
Quem soube do sucedido, logo me disse:
- És um homem de sorte!
E eu repliquei sempre:
- Qual sorte, qual carapuça!
Não fosse eu um internauta persistente, com a mente povoada de sonhos e a ânsia de descobrir o que há para ser descoberto e nunca teria tido a sorte que me atribuem. De resto, a nossa tradição oral regista os provérbios: "Cada qual é artífice da sua sorte." e "A sorte ajuda os ousados." Mas houve quem continuasse:
- Isso são provérbios. O que é um facto, é que és um homem de sorte!
Bom. Aqui comecei a ficar com os azeites. Então o meu trabalho de pesquisa persistente não valia nicles? E vá daí, pus-me a pescar por aí, o que diz o pensamento ocidental acerca da sorte e respiguei as seguintes afirmações: “A sorte sorri aos fortes” (2); “A sorte ajuda os audazes” (3); “A diligência é a mãe da boa sorte” (4); “Acredito muito na sorte; verifico que quanto mais trabalho mais a sorte me sorri” (5), “Creio muito na sorte. Quanto mais trabalho, mais sorte pareço ter” (6); “A sorte não existe. Aquilo a que chamais sorte é o cuidado com os pormenores” (7); “A sorte marcha com aqueles que dão o seu melhor” (8); “A seguir ao trabalho duro, o maior determinante é estar no sítio certo à hora certa” (9).
Municiado com estes nobres pensamentos, procurei um a um, os meus opositores, fervorosos adeptos da sorte e disparei-lhos em frases seguidas, mesmo à queima roupa. E perguntei-lhes depois:
- E então? Continuam a acreditar na minha sorte?
Não houve um único que tivesse a coragem de me dizer que sim. Creio que alguns ficaram mesmo convencidos que eu tinha razão. Mas outros, adeptos das crenças cegas, lá no fundo continuaram a pensar que não. Todavia, não arranjaram argumentos para me fazer frente e “fecharam-se em copas”.

Jorge da Conceição visto à lupa
Como refiro no meu livro (1), “Tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano de Jorge da Conceição e desde essa época que o vejo como um perfeccionista que procura dar o melhor de si próprio em tudo aquilo que faz, o que se reflecte não só na concepção como nos acabamentos das figuras que modela.”. No livro dei conta de que Jorge da Conceição é “… filho da barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), neto dos barristas Mariano da Conceição (1903-1959) e Liberdade da Conceição (1913-1990) e sobrinho de Sabina da Conceição Santos (1921-2005), irmã de Mariano.”. E concluí: ”Filho e neto de peixes sabe nadar, pelo que Jorge da Conceição estava condenado a ser barrista, tomando contacto com o barro desde criança e criando apetência pela manufactura de Bonecos como via fazer à avó e à mãe. Foi assim que aprendeu as técnicas e a arte de modelar o barro, manufacturando Bonecos enquanto estudava, até à idade de 21 anos”, quando frequentava no Instituto Superior Técnico, o Curso de Engenharia Electrónica e de Computadores – Variante de Electrónica e Telecomunicações. A imagem de São Pedro de Jorge da Conceição, datada de 1984, pertence à parte final da sua primeira fase de produção, já que ele decidiu interromper a sua actividade como barrista, para só a retomar em 2013, após uma carreira profissional na área de consultoria que durou 25 anos e o manteve afastado da modelação do barro. Todavia, a chamada do barro, que transporta na massa do sangue, levou-o em 2013 a dedicar-se exclusivamente à barrística.
Jorge da Conceição participou em 1983 e 1984, na I na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz. Foi nesta última que alguém comprou a imagem que hoje é minha. Na altura, eu não lhe comprei nada, pois o dinheiro não era muito e eu andava fascinado, como hoje ainda ando, pelo trabalho de sua avó, Liberdade da Conceição, que tal como sua mãe e ele próprio, me concedeu o privilégio da sua amizade. De sua avó, tenho na minha colecção um bom núcleo de figuras, com especial destaque para imagens de Santo António, São João Baptista e São Pedro, qualquer delas de grandes dimensões.

Felicitações de Jorge da Conceição
Quando soube da minha “pescaria”, Jorge da Conceição felicitou-me vivamente pela aquisição da imagem, já que são escassas as peças dessa época na posse de coleccionadores. Disse-me ainda que na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz, para além de algum “peixe miúdo” à disposição do público, tinha ainda para vender as imagens de Santo António, São João Baptista, São Pedro e São Marçal, das quais vendeu apenas as duas últimas, integrando as duas primeiras a sua colecção. Com o regresso do seu São Pedro à terra mãe, é caso para reconhecer de uma forma proverbial que “O bom filho a casa torna”.

BiMestre Jorge da Conceição
Em 2019 teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, um Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz. A formação da componente técnica do Curso foi liderada por Jorge da Conceição, que contou com o apoio inestimável de Isabel Água e de Luís Parente. Ali se formou um grupo de barristas, os quais se encontram presentemente a produzir. São eles: Ana Catarina Grilo, Inocência Lopes, Joana Santos, José Carlos Rodrigues, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Manuel J. Broa, Sara Sapateiro, Sofia Luna e Vera Magalhães. Todos eles o reconhecem como uma referência de topo da nossa barrística e praticamente todos o tratam carinhosamente por Mestre, já que foi com ele que aprenderam.
As criações de Jorge da Conceição ostentam marcas identitárias singulares e por isso notáveis. Em primeiro lugar, o rigor e a perfeição na modelação, com integral respeito pelas proporções, pela morfologia, pelas texturas, bem como a representação do movimento. Em segundo lugar, um cromatismo harmonioso que resulta de uma sábia combinação de cores. Tudo isso contribui para que os trabalhos de Jorge da Conceição sejam reveladores da sua incomensurável mestria. Trata-se de facetas do seu trabalho, que ultrapassam o âmbito restrito dos seus formandos e catapultam o barrista a uma nova dimensão de Mestre. Daí eu ter assumido a iniciativa terminológica de o considerar um biMestre. De resto, tenho de lhe agradecer o prazer que me dá em usufruir do deleite de espírito causado pela visualização dos seus trabalhos. Daí que lhe confesse: Jorge,

De si é sempre admirável,
toda e qualquer criação.
Tudo o que faz é notável,
Mestre Jorge Conceição.

Oração a São Pedro
Senhor São Pedro, Pescador, Apóstolo, 1.º Bispo de Roma, 1.º Papa e Mártir, já que sois Porteiro do Céu, atrasai a abertura das portas da abóbada celeste, para que eu me possa libertar da culpa de há cerca de 40 anos não ter comprado Bonecos de Mestre Jorge da Conceição. Dai-me mais uns anos bons, para que eu possa preencher as muitas lacunas que ainda tenho na minha colecção. Amém.

(1) – MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018.
(2) - Terêncio (185 a.C.-159 a. C.), poeta romano
(3) - Virgílio (70 a.C-19 d.C.), poeta romano
(4) - Miguel de Cervantes (1547-1616), romancista espanhol.
(5) . Thomas Jefferson (1743-1826), estadista norte-americano.
(6) - Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor norte-americano.
(7) - Winston Churchill (1874-1965), estadista inglês.
(8) - Horace Jackson Brown Jr. (1940-2021), romancista americano.
(9) - Michael Bloomberg (1942- ), magnata norte-americano.

Publicado em 20-04-2022


Fig. 2 - Marcação no interior da peanha da imagem de São Pedro. 

Fig. 3 - Jorge da Conceição em 1985.