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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

“Perpétua Cegueira do Amor” de Maria Antónia Viana

 



É sobejamente conhecida a minha paixão pelos Bonecos de Estremoz, a qual sendo dominante, não é exclusiva, já que há outros bonecos capazes de fazer tanger as tensas cordas de violino da minha alma. Foi o que se passou recentemente com a figura “Perpétua Cegueira do Amor” da barrista estremocense Maria Antónia Viana. Daí que partilhe com os leitores, tudo aquilo que a imagem me disse e sugeriu.
Trata-se de uma figura alegórica com uma modelação simples, mas harmoniosa e expressiva, cujo fruto é uma figura esbelta, servida por um cromatismo de dominante quente, baseada no vermelho e no amarelo, simbolicamente associados à paixão carnal e à alegria, respectivamente.
O vermelho povoa lábios carnudos, prontos a beijar, bem como dedos que coroam mãos carentes de afagos.
O coração, omnipresente, transvaza as mãos e conquista o resto do corpo. As asas e o chapéu transmutaram-se em corações, eles próprios trespassados por setas, que na extremidade visível, terminam por corações de menores dimensões.
Os olhos estão tapados por um chapéu de plumas azuis com olhos laranja (que sugerem penas de pavão), o qual parece evocar os chapéus de plumas das sufragistas dos princípios de novecentos, como Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete ou Carolina Beatriz Ângelo, pioneiras da luta pela igualdade de género em Portugal. O azul transmite a ideia de espiritualidade pautada por alegria e vitalidade, sugeridas pelos olhos cor de laranja. A utilização do azul e do laranja não terão sido ocasionais, já que são cores tradicionalmente usadas na decoração de Bonecos de Estremoz, muito em particular na figura do “Amor é cego”. Também a base na qual a figura assenta, parece querer dizer que a figura, não sendo Boneco de Estremoz, se inspirou nos Bonecos de Estremoz. Para tal, a barrista fez assentar a figura numa base de cor verde bandeira, orlada a zarcão e sarapintada de branco, amarelo e zarcão.
O coração sustentado pelas mãos e que ainda não foi atingido por nenhuma seta, apresenta uma decoração floral, que sugere a decoração das mobílias alentejanas, modo encontrado de referenciar a figura ao Alentejo.
A decoração da parte superior e inferior do vestido, integra corações que são pétalas vermelhas de flores, cujos caule verdes simbolizam no seu todo, a esperança num futuro que há de vir. Os folhos dos punhos e da gola do vestido, igualmente em verde, parecem configurar zonas de escape da quentura que do corpo dimana. Funciona como autodefesa de um corpo que não quer sofrer autocombustão.
Tendo em conta a designação ”Perpétua cegueira do amor” atribuída pela barrista á sua criação, sou levado a pensar que aquela denominação visa sugerir que há que tomar precauções. Se a ideia não for essa, que me perdoe a barrista, a quem agradeço e felicito vivamente pela oportunidade e felicidade deste seu trabalho. Bem haja.

Publicado inicialmente a 14 de Fevereiro de 2012 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Exposição "Amor é Cego" de Alexandre Correia

 



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 3 de Fevereiro de 2023

Integrada no programa das comemorações do "VIVE Estremoz Apaixonado", irá decorrer, no dia 14 de fevereiro, pelas 11:00 horas, no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, a inauguração da exposição "Amor é Cego", com peças da coleção de Alexandre Correia.
A mostra estará representada com mais de duas dezenas de peças do "Amor é Cego" da coleção privada de Alexandre Correia que dedica esta exposição à Vila de Veiros: "Pois bem, dá-me agora a cidade de Estremoz a honra de dar a conhecer ao mundo, pela primeira vez, esta minha coleção. A primeira vez que exponho parte da minha coleção de Artesanato que já conta com mais de um milhar de peças à parte da coleção que se centra na temática antoniana.
Quero dedicar esta exposição à Vila de Veiros, freguesia de Estremoz, e aos Veirenses pela forma simpática, acolhedora e afável com que me receberam e recebem na sua terra como se também eu um filho da terra fosse."
Atualmente, e desde os finais do século XX, o Amor é Cego tornou-se umas das mais conhecidas e produzidas peças do Figurado de Estremoz. Muitos são os estudiosos que tentam encontrar nesta figura inúmeras fontes de inspiração eruditas, contudo, não existem quaisquer certezas quanto às razões da sua origem, sendo hoje entendida pelo público como uma simples e bonita alegoria ao amor profano.
Uma exposição a não perder, que estará em exibição até 30 de abril de 2023.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Inocência Lopes e a mulatitude de “O Amor é cego”

 


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Estado da arte
No conjunto dos Bonecos de Estremoz destaca-se pela sua garridice e simbolismo, “O Amor é Cego”, considerado uma figura de Entrudo e que constitui uma alegoria ao “Cupido de olhos vendados”. Trata-se de uma figura [i] que recomeçou a ser produzida por Sabina Santos (1921-2005), a qual se inspirou em exemplar criado por Oficinas de Estremoz do séc. XIX e que pertence ao acervo do Museu Municipal de Estremoz.

Atributos
“Quem conta um ponto aumenta um ponto”, sentença que se aplica aos Bonecos de Estremoz. Daí que depois de Sabina, o modo como é abordada a representação de “0 Amor é Cego”, nem sempre seja convergente e antes pelo contrário, seja maioritariamente divergente. Apesar de tudo, existem invariantes nas representações dos diferentes barristas. Eles constituem os atributos de “O Amor é Cego” e são: olhos vendados, toucado enfeitado com plumas e decoração frontal com um coração, flores numa mão, coração(ões) trespassado(s) por seta(s) na outra, vestido com saia curta e calçado com fitas atadas às pernas.

Mulatitude
A universalidade do amor, arrasta consigo a cegueira desse mesmo amor, independentemente da cor da pele. Daí que Inocência Lopes, que já revogara o imperativo da pele ser branca e proclamara a eventualidade da sua negritude, anuncia agora a possibilidade da sua mulatitude.

Cromatismo
Sob o ponto de vista cromático, a decoração da figura é uma hexacromia, integrada pelas seguintes cores: ZARCÃO (vestido, toucado, botas, flores do bouquet), VERMELHO (corações, seta, asas, meias, plumas, lábios), CASTANHO (cor da pele), VERDE (folhos e barra do vestido, cordões das botas, toucado, folhas do bouquet), PRETO (cabelo), BRANCO (venda dos olhos). As cores quentes (zarcão, vermelho, castanho) predominam sobre a única cor fria (verde) e as cores neutras (branco e preto). Deste modo e globalmente, a figura vê associada a ela a quentura da paixão do amor carnal. Os dois corações trespassados pela seta, sugerem que a figura já foi atingida duas vezes pela cegueira do amor, o qual terá dado mau resultado, uma vez que o coração verde da parte frontal do toucado, sugere a esperança num amor tranquilo e duradouro.

Requebros
A mulatitude da figura leva-me a associar-lhe requebros: uma voz quente com uma sonoridade sensual e o movimento lascivo do corpo. Só não é visível a expressão amorosa do olhar, pois a venda que o cobre, não deixa. Já os lábios carnudos e húmidos parecem convidar a beijar.
Olhando para esta figura, ecoam na minha cabeça os acordes do samba “Mulata assanhada” do compositor e cantor Ataulfo Alves (1909-1969)

Ô, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente!

Gratidão
Obrigado Inocência, pela quentura e sensualidade da figura com que nos estimulou os sentidos. Bem haja.



[i] Há quem associe androginismo à figura, associando-lhe ambiguidade sexual. A meu ver, trata-se de uma leitura bastante aceitável de uma figura de Entrudo do séc. XIX, época cujos costumes não permitiam que uma mulher se mascarasse com roupa tão reduzida, pelo que seriam homens a envergar roupa de mulher.









terça-feira, 6 de abril de 2021

"O Amor é cego" com a "Sagrada Família" no coração

 

"O Amor é cego" com a "Sagrada Família" no coração (2020). Isabel Pires (1955 -  ).

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Uma figura composta

Tive recentemente conhecimento de uma interessante figura da Barrística Popular de Estremoz, criada por Isabel Catarrilhas Pires em 2020. Trata-se de uma figura composta por outras duas figuras.
Um dessas figuras é “O Amor Cego”, Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX e é considerado uma figura de Carnaval. Trata-se de uma alegoria à cegueira do amor, expressa através do Cupido de olhos vendados. É representado como uma figura feminina, alada e de olhos tapados. Enverga um vestido rodado e vistoso, de cores garridas e decorado com motivos florais. Na cabeça usa um turbante que pompeia superiormente quatro plumas tricolores e ostenta frontalmente um coração - símbolo do amor. Calça botas apetrechadas com cordões entrelaçados. Na mão esquerda empunha um ramo de flores, enquanto que a mão direita segura um coração trespassado por dua setas e mostrado em corte. A figura assenta numa base circular, de cor verde, orlada de motivos florais no topo.
A outra figura, ela própria uma figura composta é um “Presépio de 3 figuras” ou “Sagrada Família”, envergando trajes bíblicos de fantasia. Está alojada no interior do coração de “O Amor é Cego”, mostrado em corte.

Da Natividade à Quaresma
Estamos em presença de uma figura composta tematicamente bivalente, uma vez que é simultaneamente um Presépio e uma figura de Carnaval.
O Presépio é um dos grandes símbolos religiosos, que retrata o Natal, festividade cristã que enaltece o nascimento de Jesus Cristo.
O Carnaval é o período de 3 dias, caracterizado por alegres festas populares que precedem o período da Quaresma, o qual antecede o domingo de Páscoa. Durante a Quaresma, a Igreja convida os fiéis a um período de penitência e de meditação, através da prática do jejum, da esmola e da oração, como preparação para o Domingo de Páscoa, durante o qual se comemora a Ressurreição de Jesus Cristo.
A figura composta objecto do presente estudo, sintetiza a vida de Jesus Cristo, recorrendo a figuras que integram há muito a Barrística Popular de Estremoz.
 
Cromatismo da composição
A cor dominante é o ocre amarelo, cor da terra onde decorreu a vida de Jesus. Segue-se o azul do céu para o qual, segundo o cristianismo, decorreu a Ascensão de Jesus, quarenta dias após a Ressurreição. Depois vem o vermelho, simbolizando o sangue derramado por Jesus e finalmente o verde, prenunciando a esperança da vida eterna.
De salientar ainda que o negro da venda de ”O amor é cego” simboliza a escuridão,  a tristeza e a dor da morte de Jesus.

A análise
A figura aqui dissecada é a meu ver daquelas que encerram em si uma mudança de paradigma, com a Barrística Popular de Estremoz a ascender a um patamar superior aquele que é habitual.
Trata-se da magistral criação de uma barrista com um estilo acentuamente personalizado, assente numa profunda interpretação naturalista e num cromatismo muito vivo, que tornam apelativas as figuras que fruto dum pulsar de alma lhe brotam à flor das mãos. Como tal, a barrista é merecedora dos meus melhores encómios, os quais aqui registo para que conste agora e para memória futura.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 6 de Abril de 2021

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Cegueira do Amor da Boniqueira


O Amor é Cego (2020) - Frente . Joana Oliveira (1978-  ).

Da minha lavra e como preito, dedico à Boniqueira 
esta estrofe de quatro versos hexasilábicos
de rima alternada:

O amor é cego,
Tem venda nos olhos.
O seu superego
não acha escolhos.

Os meus olhos sentem-se fascinados pela imagem transmitida pantograficamente da alma para as mãos da barrista, que permanentemente nos encanta e seduz com a magia transbordante que irradia da morfologia, da cromática e da estética patente nas suas criações.
Obras que simultânea e legitimamente constituem uma proclamação panfletária de auto-afirmação do seu estilo muito próprio no seio da Barrística de Estremoz. É um clamor insubmisso que lhe sai da alma:
-
Esta sou eu! 


O Amor é Cego (2020) - Trás. Joana Oliveira (1978-  ).

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Inocência Lopes e a negritude de “O Amor é cego”


"Amor é cego", negro. Inocência Lopes (1973-  ).

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Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Luís de Camões (c.1524 – 1580)
Tradição versus inovação
A barrística popular de Estremoz não é imune à mudança a que se refere Camões. De há muito que se tem verificado uma renovação na abordagem dos temas tratados. Esta tem-se acentuado ultimamente, de modo a que os bonecos reflictam os contextos e as preocupações sociais que afligem a comunidade em geral e das quais o barrista é intérprete.
A ceifeira e o pastor de tarro e manta são registos etnográficos dum contexto sociológico agro-pastoril do Alentejo de antanho. Ficaram perpetuados nas esculturas populares dos nossos barristas, tal como no traje e reportório dos nossos grupos etnográficos, a que há que acrescentar o registo dos nossos escritores, fotógrafos e artistas plásticos.
A vida mudou, mas o barro e as mãos de quem o modela, conseguiram reportar uma época e os seus contextos sociais
Nos dias de hoje, os barristas continuam a modelar figuras criadas por aqueles que os antecederam, ainda que com as suas marcas identitárias muito próprias.
Porém cabe-lhes a importante missão de, para além disso, serem os repórteres do contexto e das preocupações sociais do presente. Apenas se lhe exige que sigam o modo de produção, reconhecido como sendo de Estremoz e que na sua essência utiliza na modelação de uma figura, a combinação da placa, do rolo e da bola. Esses têm que estar sempre presentes como “marca de água” que assegura a genuidade da nossa produção barrista, cuja origem remonta a setecentos.
O Amor é cego
“O Amor é cego”, cuja produção remonta ao séc. XIX, é uma figura de Carnaval e simultaneamente uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados, tema recorrente na pintura e gravura universais, no adagiário português e no cancioneiro popular alentejano. Até ao presente, “O Amor é cego” tem sido representado como uma figura feminina, de pele branca.
Todavia, se o amor é mais forte do que tudo, se não conhece fronteiras, não distingue nem raças, nem credos, nem ideologias, se de facto “O Amor é cego”, esta figura da nossa barrística que é Património Imaterial da Humanidade, não pode ser um ícone exclusivo da raça branca. Tem por extensão de ser de todas as outras. É pois legítimo que a figura seja modelada com outras cores de pele [1].  Foi o que pensou a barrista Inocência Lopes.
Faça-se negro
De acordo com o Génesis, no primeiro dia de Criação do Mundo “Deus disse: “Faça-se a luz!”. E a luz foi feita”. Pois bem, pensando em “O Amor é cego”, Inocência Lopes disse: “Faça-se negro”. E o negro foi feito.
Ao criar “O Amor é cego” negro [2], Inocência Lopes exalta a negritude e proclama a igualdade racial. Trata-se assim de uma figura com forte conotação ideológica que assume especial importância num período de fortes tensões sociais que à escala global traduzem o repúdio por actos racistas praticados por partidários da supremacia branca.
A rematar
A negritude é um tema fracturante a nível planetário. Ao assumir a maternidade de uma figura que a partir deste momento passa a ser paradigmática, a barrista mostrou uma atitude corajosa, pois revelou-nos de que lado da barricada está.
O arrojo na concepção e a qualidade da modelação e da decoração, merecem que eu diga:
- PARABÉNS, INOCÊNCIA LOPES!



[1] - À semelhança de inúmeras imagens devocionais de Nossa Senhora que existem por esse mundo fora e nas quais a Virgem é representada muitas vezes como Virgem Negra.
[2] - O Amor é cego” negro insere-se dentro daquilo que se convencionou chamar “Bonecos da Inovação” e nada tem a ver com figuras como “Preto a cavalo”, “Preta florista” e “Preta pequena” que integram os chamados “Bonecos da Tradição”. Estas últimas figuras são reveladoras da colonização africana ocorrida no Alentejo, que levou a que os negros ficassem perpetuados na barrística popular estremocense.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

O amor é cego


O Amor é cego (s/d). Sabina Santos (1921-2005).

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Adagiário do namoro


Idílio (1929). Artur Alves Cardoso (1883 -1930). Óleo sobre tela
 (160 cm x 105 cm), inacabado. Museu do Chiado, Lisboa.

A importância do namoro conduziu à existência de um “Dia dos Namorados”, comemorado a 14 de Fevereiro, em coincidência com o “Dia de São Valentim”. Este terá sido um sacerdote cristão e mártir, morto a 14 de Fevereiro de 269 d.C., por realizar casamentos em sigilo absoluto, violando um decreto do Imperador Romano Claudius II, que proibia os casamentos, para assim angariar mais soldados para as suas frentes de batalha. São Valentim tornou-se assim o patrono dos namorados e o “Dia de São Valentim” é considerado o “Dia dos Namorados”.
A importância do namoro faz com ele esteja presente na literatura oral e em particular no adagiário. Todavia é escasso o adagiário português do namoro, já que a recolha por nós efectuada, não abrange mais que 28 especímenes, assim distribuídos pelos vários termos: enamorado (1), namorada (2), namorado (20), namorar (1), namoro (4). Alguns são variantes de outros. O estudo que incidiu na amostra recolhida foi sistematizado conforme adiante se mostra.

Há quem pense que o namoro tem tempo próprio:
- As crianças com bonecas, a mocidade com namoros e a velhice com a igreja.
Namorado velho não é visto com bons olhos:
- Três homens não se sofrem (1) no mundo: homem soberbo, velho namorado e rico mentiroso.
Os namorados abstraem-se daquilo que os cerca:
- Cuidam os namorados que os outros têm os olhos fechados. (2)
- Namorados, falai baixo que as paredes têm ouvidos.
O namoro pode ser passageiro:
- Namoro é ramo de souto, vai um e vem outro.
- Namoro de Carnaval, não chega ao Natal.
- Namoro de praia, enterra-se na areia.
Para a sabedoria popular não há bons namorados:              
O bom namorado dissimulado engana.(3)
A paixão conduz o enamorado a uma visão amplificada do objecto do seu amor:
- Os olhos da namorada têm mais luz que o sol.
Os namorados não se devem deixar iludir pelas aparências um do outro:
- Quem namora pelo fato, leva o Diabo ao contrato.
As zangas de namorados são encaradas com reserva:
- Em briga de namorados ninguém se deve meter: eles fazem as pazes e fica mal quem está de fora.
As desavenças de namorados são, de resto, vistas como reforço do amor:
- Arrufos de namorados são amores dobrados.(4)
- Namorados arrufados, casamentos contratados.
Alguns namorados são vistos com displicência:
- Namorados de ai-ai, não são papas nem mel.(5)
À sabedoria popular parecem desagradar as mulheres que passam muito tempo à janela:
- Mulher janeleira, namorada ou rameira.
Ajoelhar de namorado é considerado vergonhoso:
- Mais vale salteador que sai à estrada que namorado que ajoelha.
Alguns enaltecem o namoro, mas ridicularizam o casamento:
O solteiro é um pavão, o enamorado é um leão, o casado é um asno.

Como o “Dia dos Namorados” coincide com o “Dia de São Valentim”, parece-nos legítimo, por extensão, considerar este “adagiário do namoro” como “adagiário de São Valentim”. 

.....................

(1) - Aguentam.
(2) - Variantes:
- Cuidam os namorados que todos têm os olhos quebrados.
- Julgam os namorados que todos trazem os olhos fechados.
- Pensam os namorados que os outros olhos são cegados.
(3) - Variante: 
- Bom namorado, dissimulado engana.
(4) - Variantes:
- Arrufos de namorados são namoros cobrados. 
- Arrufos de namorados, amores dobrados.
- Pelejas de namorados, são amores renovados.
- Rixas de namorados, amores dobrados.
- Zangas de namorados, amores dobrados.
- Zangas de namorados são amores renovados.
(5) - Variante: 
- Namorados de ai-ai, não são papas nem sal.

Publicado inicialmente a 20 de Fevereiro de 2014

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Dia de São Valentim



O marketing agressivo da sociedade capitalista, que em nome de São Cifrão tudo nos quer vender, leva-nos a descrer no culto a São Valentim, centrado no dia 14 de Fevereiro, dia em que é suposto que os amantes celebrem o amor, a paixão e a partilha de sentimentos. Pese embora a nossa descrença no mercantilismo e no pirosismo da efeméride, não queremos deixar de saudar todos aqueles que como nós, acreditam no Amor. A eles dedicamos esta série de imagens de bilhetes-postais ilustrados dos “Bons Velhos Tempos”. E que “Viva o Amor!” todos os dias.

Publicado inicialmente a 14 de Fevereiro de 2012 







sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ensaio sobre o ciúme


CIÚME (1923). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre madeira (45,5 x 41,5 cm).
Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
PREÂMBULO
Na gíria popular é habitual ouvirem-se frases do género: “O António anda consumido de ciúmes por causa da Maria e do José.”. Significa isso que a relação entre a Maria e o José, despertou no António, ciúmes que o mortificam. Mas o que é o ciúme? O ciúme é a resistência complexa a uma sintoma perceptível numa relação relevante ou no carácter dessa relação, envolvendo sempre três ou mais pessoas: aquela que sente ciúmes, aquela de quem se sente ciúmes e aquela ou aquelas que são o motivo dos ciúmes.
O ciúme desperta múltiplas emoções: raiva, dor, inveja, tristeza, medo, depressão e humilhação.
O ciúme está na origem de pensamentos variados: ressentimento, culpa, comparação com o rival, preocupação com a imagem, auto-comiseração;
O ciúme activa reacções físicas diversas: taquicardia, falta de ar, boca seca ou excesso de salivação, transpiração, aperto no peito, dores físicas.
O ciúme leva à manifestação de determinados comportamentos: questionamento permanente, procura impaciente de confirmações e acções agressivas, por vezes violentas.
O ciúme é instintivo, natural e marcado pelo medo ou vergonha da perda do amor de quem se ama. O ciúme está relacionado com a falta de confiança no outro e/ou em si próprio.

O CIÚME NA BÍBLIA SAGRADA
Dos 46 livros que na Bíblia Sagrada constituem o Antigo Testamento, apenas 16 relatam o ciúme, num total de 44 alusões, assim distribuídas: Génesis (1), Êxodo (2), Números (8), Deuteronómio (6), Josué (1), I Reis (1), Salmos (2), Provérbios (1), Eclesiastes (1), Eclesiástico (2), Isaías (3), Ezequiel (11), Joel (1), Naum (1), Sofonias (1), Zacarias (2). Por sua vez, dos 27 livros que na Bíblia Sagrada constituem o Novo Testamento, apenas 6 narram o ciúme, num total de 11 menções, assim distribuídas: São Mateus (1), Romanos (4), I Coríntios (1), II Coríntios (1), Gálatas (1), São Tiago (3). O ciúme é assim mais referido no Antigo Testamento que no Novo Testamento. Quanto ao livro que o relata mais, trata-se de Ezequiel.
O ciúme ataca os homens:
- “irmãos ficaram com ciúmes de José, enquanto o pai meditava sobre o assunto.” (Génesis 37,11)
O próprio Deus é ciumento:
- “Não te prostres diante desses deuses, nem os sirvas, porque Eu, Javé teu Deus, sou um Deus ciumento: quando Me odeiam, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos;” “ (Êxodo 20,5)
É apontado um ritual para o caso do marido ter ciúme da mulher:
- “Este é o ritual para o caso de ciúme, quando uma mulher se desvia e se torna impura, enquanto está sob o poder do marido;” (Números 5,29)
Reconhece-se o ciúme como causador de raiva e o direito de vingança sem piedade:
- “Porque o ciúme provocará a raiva do marido, que não terá piedade no dia da vingança:” (Provérbios 6,34)
Reconhece-se que a mulher ciumenta de uma rival pode causar desvarios, nomeadamente através do praguejar:
- “Mas a mulher ciumenta de uma rival causa grande dor e aflição. E a praga da língua é o ponto comum de todas estas coisas.” (Eclesiástico 26,6)
Condena-se também explicitamente o ciúme no dia a dia:
- “Vivamos honestamente, como em pleno dia: não em orgias e bebedeiras, prostituição e libertinagem, brigas e ciúmes.” (Romanos 13,13)
Reconhece-se também o ciúme como fonte de desordem e outras más acções:
- “De facto, onde há ciúme e espírito de rivalidade, existe também desordem e todo o género de más acções.” (São Tiago 3,16)

O CIÚME NO ADAGIÁRIO
O adagiário português regista máximas relativas ao ciúme:
O ciúme é encarado como consequência natural do amor:
- “Quem tem ciúme quer bem.”
- “Sem ciúmes não há grande afeição.”
- “Não há esperança sem temor, nem ciúme sem amor.”
Todavia, o ciúme depende mais de outros factores que do amor:
- “O ciúme depende mais da vaidade que do amor.”
- “Há no ciúme, mais amor-próprio do que amor.”
O ciúme mata o amor que o gerou:
- “O amor gera o ciúme e o ciúme mata o amor.”
O ciúme é associado aos sentidos da visão e da audição:
- “O ciúme tem olhos de lince.”
- “O ciúme tem lume nos olhos.”
- “Nada há que os ouvidos do ciúme não oiçam.”
- “O ciúme nasceu cego e morreu surdo.”
A opinião sobre o ciúme é negativa:
“O ciúme é o maior de todos os males.”
“Vingança e ciúmes são espadas com dois gumes.”

O CIÚME NO CANCIONEIRO POPULAR
O universo psicológico do ciúme está bem patente no cancioneiro popular alentejano. Assim, o ciumento crê que não há amor sem ciúme:

“Amar, e não ter ciumes,
Isso não é querer bem;
Quem não zela o que bem ama,
“Muito pouco amor lhe tem.” [3]

“A minha cruel rival,
De raiva a vejo soffrer;
Apesar de ter ciúmes,
Hei-de te amar até morrer.” [3]

Pensa também que o amor não é para repartir:

“O amor e o dinheiro
são duas coisas parecidas,
depressa se vão embora
se são muito repartidas.” [4]

O ciumento é desconfiado:

“Meu amor ficou de vir
mas ainda não apareceu,
quem seria essa ingrata
que por lá mo entreteu.” [4]

“Eu hei-de ir para um altinho,
Debaixo não vejo bem,
Quero ver se o meu amor
Dá paleio a mais alguém.” [3]

O ciúme desperta dor:

“Vi-te ao poço, mai-la outra,
enquanto eu ceifava o trigo;
ai, quem pudesse ceifar
a dor que trago comigo.” [4]

“‘St’a chegada a triste noite,
Noite para mim de horror!
O meu bem em braços d’outra
E eu entregue á minha dor.” [3]

O ciumento não tem sossego:

“O maldito do ciume
Não me deixa socegar,
Nem de noite, nem de dia,
Nem á hora do jantar.” [3]

O ciúme desperta inveja:

“A enveja do ciúme
É um ferro abrasador
Muita gente tem enveja
D’eu querer bem ao meu amor.” [1] (Mina de S. Domigos)

O ciumento chega a admitir a morte:

“No caminho de Olivença
Foi que eu ouvi dizer,
Que tinhas outros amores;
Fiquei capaz de morrer!” [3]

“À entrada desta rua
Levantei meus olhos, vi
Meu amor em braços doutra,
Não sei como não morri.” [1] (Beja)

O ciumento condena-se ao desterro:

“Se a minha rival ditosa
Tem a sina de vencer,
Então me deixo de amores
Desterrada vou viver.” [3]

O ciumento duvida do valor da troca:

“Trocaste-me a mim por outra,
Eu bem sei que me trocaste,
Gostava bem de saber
Quanto na troca ganhaste.” [2] (Alcáçovas)

O ciúme por vezes aconselha à separação:

“Eu te deixo, tu me deixas,
ficamos ambos em paz,
tu tens outra rapariga
e eu tenho outro rapaz.” [4]

O ciumento despede o antigo amor:

“Vai-te embora, amor ingrato,
Já não quero nada teu,
Pois que foste dar a outro
Coração que já foi meu.” [2] (Veiros)

Há corações ciumentos que dizem resistir:

“O meu coração
Em tudo é valente:
Mesmo em ciúme,
Vive alegremente.” [2] (Castro Verde)

“Se julgas que eu me importo
de teres outra em meu lugar,
aquilo que eu deito fora
qualquer pode arrecadar.” [4]

Sabem uma coisa? O melhor é não ter ciúmes…

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Cancioneiro Popular Português, vol. I. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1971.
[3] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia Progresso. Elvas, 1909.
[4] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 14 de Outubro de 2011  

ALEGORIA DO CIÚME (1640). Luca Ferrari (1605-1654). 
Óleo sobre tela (171 x 116 cm). Hermitage, São. Petersburgo. 

NA PRAIA - DOIS SÃO COMPANHIA, TRÊS NÃO SÃO NADA (1872). Gravura em madeira desenhada
por Winslow Homer (1836-1910). Publicada no semanário “Harper”, a 17 de Agosto de 1872. 

CIÚME E NAMORO (1874). Haynes King (1831-1904). Victoria and Albert Museum, London. 

O CIÚME (1896). Maxime de Thomas (1867- 1920). Litografia original
impressa em tom vermelho sobre papel verde. Editor: Le Centaur, Paris.