Alegoria do Outono (2018). Isabel Pires (1955- ).
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Folhas secas e frutos maduros
O Outono é a estação do ano compreendida entre o
Verão e o Inverno, que corresponde entre nós, aos meses de Setembro, Outubro,
Novembro e Dezembro. Caracteriza-se por um declínio gradual da temperatura e é
marcada por tempo chuvoso, ventoso e pouco ensolarado.
Uma das características principais da estação é a
mudança da coloração das folhagens das árvores, que passam a apresentar tons
amarelados e avermelhados e caem. O Outono é assim a estação da libertação que
abre as portas a uma futura renovação na Primavera seguinte.
No Outono, os frutos já estão maduros e começam a
cair no chão, pelo que têm lugar as colheitas das culturas de Verão (milho,
girassol, etc.), de muitos tipos de frutos (uvas, maçãs, peras, marmelos, etc.)
e de frutas secas (castanhas, nozes, avelãs, etc.).
O Outono na Tradição Oral
As colheitas de Outono estão presentes na tradição
oral. Em particular, no CANCIONEIRO POPULAR, que põe os meses a falar: “Eu sou
o Setembro / Que tudo recolho, / Trigos e milhos, / Palhas e restolho.” e “Eu
sou o Outubro, / O mês dos Outonos, / Engrosso as terras / Proveito dos donos.”.
As colheitas de Outono estão igualmente presentes
no ADAGIÁRIO. Relativamente a Setembro, o adagiário regista que “Agosto
amadura, Setembro derruba” e “Em Setembro, colhendo e comendo”, mas recomenda:
“Para vindimar deixa Setembro acabar”. Para além disso, afirma que: “Pelo São
Miguel (29/09) os figos são mel” e “Setembro que enche o celeiro, salva o
rendeiro”.
No que respeita a Outubro, o adagiário
proclama que “Outubro sisudo colhe tudo” e pormenoriza algumas dessas
colheitas: - Milho e feijão: “Em Outubro não fies só lã; recolhe o teu milho e
o teu feijão, senão de Inverno tens a tua barriga em vão”; - Castanha: “Pelo
São Simão (28/10), quem não faz um magusto, não é cristão”; - Fava: “Por São
Simão (28/10), fava na mão” - Uva: “ Por São Lucas (18/10) bem sabem as uvas” e
“Por São Simão e São Judas (28/10), colhidas são as uvas”.
Referências poéticas
Do Outono fala também Florbela Espanca[iii]
no soneto “Outonal”[iv]:
(…) / “Outono dos crepúsculos doirados, / De púrpuras, damascos e brocados! / -
Vestes a terra inteira de esplendor!” (…). No soneto “Ruínas” [v]
acrescenta: “Se é sempre Outono o rir das Primaveras, / Castelos, um a um,
deixa-os cair... / Que a vida é um constante derruir / De palácios do Reino das
Quimeras!” (…).
Do Outono nos fala ainda Miguel Torga [vi] no poema homónimo: “ Tarde pintada / Por não
sei que pintor. / Nunca vi tanta cor / Tão colorida! / Se é de morte ou de
vida, / Não é comigo. / Eu, simplesmente, digo / Que há tanta fantasia / Neste
dia, / Que o mundo me parece / Vestido por ciganas adivinhas, / E que gosto de
o ver, e me apetece / Ter folhas, como as vinhas.”
Alegorias do Outono na Pintura
Essas mesmas características constituem o tema
central de telas criadas por grandes nomes da pintura universal, dos quais
destaco cronologicamente: Francesco del Cossa[ix],
Giuseppe Arcimboldo[x],
Pieter Pauwel Rubens[xi],
Nicolas Poussin[xii],
Rosalba Carriera[xiii],
Jacob van Strij[xiv],
Jacob Cats[xv]
, Jean-François Millet[xvi]
e Frederic Edwin Church[xvii].
Alegoria do Outono na Barrística de Estremoz
Na Barrística de Estremoz, existem exemplares
designados genericamente por Primaveras, cuja característica principal é
ostentarem um arco com flores apoiado nos ombros e circundando a cabeça. A origem
de tais Bonecos remonta pelo menos ao séc. XIX. Para além de serem figuras de Entrudo, são
alegorias à estação homónima, que evocam remotos rituais vegetalistas de
celebração e exaltação do desabrochar da natureza, os quais vieram a ser
assimilados pela Igreja Católica, que começou a comemorar o Entrudo.
O ano tem quatro estações, pelo que faz sentido
existirem alegorias para todas elas. Foi o que pensou a barrista Isabel Pires
que criou alegorias para as estações em falta. O presente texto tem por
finalidade analisar a Alegoria do Outono de Isabel Pires.
Morfologia da
figura
Formalmente e em termos morfológicos a Alegoria do
Outono é semelhante à de alguns modelos de Primavera. Assim: 1 - Ostenta um
arco ornamentado com o que simula serem folhas secas de uma planta
indeterminada e parras secas repartidas em lóbulos pontiagudos que configuram
estrelas, tal como o arco da Primavera está enfeitado com flores; 2 - Segura
numa das mãos um cacho de uvas e na outra, um cabaz de vime com os frutos da
época: diospiros, romãs, marmelos, castanhas, nozes, uvas. Existe aqui uma
analogia com o que se passa nalguns modelos de Primavera, que sustentam uma
cornucópia numa das mãos e na outra um ramalhete de flores; 3 - A cabeça está adornada
com uma grinalda de folhas secas, tal como a cabeça da Primavera pode estar
ataviada com plumas, toucados ou chapéus.
Para além destas analogias formais entre a Alegoria
do Outono de Isabel Pires e certos modelos de Alegorias das Primavera, há a salientar
que a Alegoria do Outono: 1 - Traja um vestido rodado em tom de Bordeaux, com
gola verde de inspiração vegetalista e orla bicolor verde-amarela, cores que
para além do Bordeaux são igualmente cores de folhas. As mangas do vestido
estão decoradas com um fileira de folhas secas dispostas no sentido
longitudinal. Uma guirlanda de folhas secas desce do ombro esquerdo em direcção
ao cesto e ali se bifurca em duas guirlandas que seguem em direcção à orla do
vestido, donde pendem parcialmente; 2 – Calça meias brancas e botas de cor
Bordeaux. Estas têm a extremidade do cano com uma orla verde de inspiração
vegetalista, da qual pendem folhas secas de cor Bordeaux e amarelo acastanhado;
3 - Assenta numa base circular de cor verde, orlada no topo com girassóis; 4 –
O rosto está muito bem definido e é revelador do tratamento fortemente
naturalista que a barrista imprime às suas criações. De salientar que os
brincos pendentes das orelhas configuram duas folhas, de cor amarela.
Cromatismo da
figura
Sob um ponto de vista cromático são dominantes os
tons de Bordeaux e de amarelo, característicos das folhas secas e da fruta da
época.
Simbolismo da
Alegoria
Em termos simbólicos, a Alegoria do Outono, tal
como a Alegoria da Primavera, está ligada à renovação da natureza. Assenta numa
base verde, cor que simboliza a esperança e a renovação, aqui associadas ao Outono.
As parras secas que ornamentam a composição, configuram estrelas, fontes de luz
associadas ao simbolismo celeste, nomeadamente a esperança e a renovação. Os girassóis
que ornamentam a base, dada a sua mobilidade em relação ao Sol, são um símbolo
de instabilidade, aqui associado ao fluir da natureza e à sucessão cíclica das
estações do ano.
Epílogo
O Outono é a estação das
frutas, das folhas secas, da renovação. É o Inverno que se avizinha. Mas no
dizer de Albert Camus[xviii],
“Outono é outra Primavera, cada folha uma flor.”. Essa a intuição e também a
convicção de Isabel Pires, que teve a sagacidade de criar uma Alegoria do
Outono ou melhor, a primeira Alegoria do Outono na Barrística de Estremoz. Para
além da qualidade da execução e da criatividade, pelo seu pioneirismo é
merecedora de toda a nossa admiração, o que aqui registo e sublinho.
BIBLIOGRAFIA
ESPANCA, Florbela. Charneca em Flor. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
ESPANCA, Florbela. Livro de Máguas - Soror Saudade. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
EVANGELISTA, Júlio. Cantares de todo o ano. Colecção Educativa – Série F – N.º 6.
Campanha Nacional de Educação de Adultos. Lisboa, s/d.
PESSOA, Fernando. No entardecer da terra in Ilustração Portuguesa , 2ª
série, nº 83. Lisboa, 28-1-1922.
TORGA, Miguel. Diário X. Edição do autor. Coimbra, 1968.
Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 7 de Novembro de 2020
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