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domingo, 5 de outubro de 2025

Quando a mudez fala por si

 

Fig. 1 - Bacia em barro vermelho vidrado de Redondo.


Prólogo
Proponho-me analisar um objecto cerâmico (Fig. 1) que não pode integrar a chamada “cerâmica falante”, visto não conter dizeres inscritos. Todavia, tem muito para nos contar, como veremos de seguida.

Identificação e dimensões
Trata-se de uma bacia em barro vermelho vidrado de Redondo, decoração pintada em tons de verde, amarelo e ocre. As dimensões são as seguintes: diâmetro da base: 34 cm; diâmetro exterior da abertura: 46 cm; diâmetro interior da abertura: 44 cm; largura do bordo: 1 cm; Altura: 11 cm.

Decoração
Bordo liso, pincelado irregularmente a verde. Pinceladas amarelas, ocres e verdes, reunidas em grupos afastados entre si. Estas pinceladas dirigem-se todas do bordo para o fundo, ao longo do covo, desviadas para a direita.
O fundo da bacia está decorado com uma bandeira quadrada e bipartida verticalmente em duas cores, verde escuro e ocre, ficando o ocre do lado da tralha. Ao centro e sobreposta à união das cores, figura uma esfera armilar em amarelo e assente sobre elas um escudo de armas com uma alegoria à República. Esta é materializada sob a forma de figura feminina, usando na cabeça um barrete frígio vermelho, o qual desde o séc. XVIII é conhecido como um símbolo de liberdade.

Bandeira nacional
Com a queda da Monarquia a 5 de Outubro de 1910, ocorre uma mudança de paradigma. As instituições e símbolos monárquicos (Rei, Cortes, Bandeira Monárquica e Hino da Carta) são proscritos e substituídos pelas instituições e símbolos republicanos (Presidente da República, Congresso da República, Bandeira Republicana e A Portuguesa), o mesmo se passando com a moeda e as fórmulas de franquia postais.
Visando a criação de uma nova bandeira para o regime republicano, por decreto de 15 de Outubro de 1910, o Governo Provisório nomeou uma “Comissão da Bandeira” integrada por Columbano Bordalo Pinheiro (pintor), Abel Botelho (escritor), João Chagas (jornalista e político), Ladislau Pereira (tenente) e Afonso Palla (capitão).
Poucos dias depois, em 29 de Outubro, a Comissão apresentou ao Governo Provisório uma primeira proposta de bandeira (Fig. 3), assente num cromatismo verde-rubro, o qual remonta ao movimento do 31 de Janeiro de 1891. Também em 5 de Outubro, foi utilizado por Machado Santos na Rotunda e, depois, em todos os quartéis e no alto do Castelo de São Jorge. A proposta, foi de resto, inspirada na bandeira da Carbonária (Fig. 2), sociedade secreta e revolucionária, que teve papel determinante na Revolução de 5 de Outubro de 1910.
Para além daquela proposta e como resultado do entusiasmo popular que então se vivia, surgiram ainda inúmeras outras propostas, suscitando todas elas um debate público muito vivo, centrado no cromatismo e no simbolismo da bandeira.
A 29 de Novembro, após algumas alterações à primeira proposta da Comissão, o Governo Provisório aprovou o projecto final da bandeira (Fig. 4): a bandeira verde e rubra, que após ser produzida pela Cordoaria Nacional, foi distribuída por todo o país.
A decisão do Governo Provisório viria a ser ratificada por decreto aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte, na sua sessão inaugural, a 19 de Junho de 1911.

Datação da bacia
A bandeira que decora o fundo da bacia não corresponde ao modelo aprovado pelo Governo Provisório, pelo que se trata de um dos inúmeros projectos que vieram a público, antes do modelo ser aprovado. Tal facto, leva-nos a admitir que a bacia tenha sido produzida no período 1910-1911. Vejam lá a estória que a bacia tinha para nos contar.

BIBLIOGRAFIA

- ARQUIVO NACIONAL ALFREDO PIMENTA. República na Cidade. [Em linha]. Disponível em: https://www.amap.pt/p/hist-republica-na-cidade-2 [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- COMISSÃO NACIONAL PARA AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DA REPÚBLICA. Projectos de bandeira nacional. [Em linha]. Disponível em: https://5outubro.centenariorepublica.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=98 [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- MUSEU DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Bandeira Nacional. [Em linha]. Disponível em: https://www.museu.presidencia.pt/pt/conhecer/simbolos-nacionais/bandeira-nacional/ [Consultado em 01 de Outubro de 2021].
- PARTIDO POPULAR MONÁRQUICO DE BRAGA. Bandeira nacional de Portugal. [Em linha]. Disponível em: https://ppmbraga.blogspot.com/2014/02/bandeira-nacional-de-portugal.html [Consultado em 01 de Outubro de 2021]. 

Publicado inicialmente a 4 de Outubro de 2021

Fig. 2 - Bandeira da Carbonária.

Fig. 3  - Bandeira portuguesa - 1.ª proposta da Comissão de Bandeira.

Fig. 4 - Bandeira portuguesa - 2.ª proposta da Comissão de Bandeira.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A tradição oleira de Estremoz

 

Púcaro com decoração polida. Produção da Escola Industrial António Augusto Gonçalves.
Finais dos anos 30 do sé. XX.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

A olaria tradicional de Estremoz é extremamente rica em múltiplos aspectos. Na verdade, observando-a como um todo, revelam-se de imediato uma grande variedade de funcionalidades, tipologias, morfologias, tipos de decoração e tamanhos. Como tal, é uma das expressões mais elevadas da nossa identidade cultural local.

Funcionalidade
A funcionalidade das peças oláricas de Estremoz é servirem predominantemente de vasilhame para conter e transportar água, conter flores, dinheiro, velas, ou então servirem de elementos decorativos. Algumas funcionalidades deixaram de ser utilizadas, devido ao desenvolvimento tecnológico. É o caso dos tijolos, telhas, canos, sifões e manilhas.

Tipologia
É diversificada a tipologia das peças oláricas de Estremoz. As principais são: Assadores, Barris, Bilhas, Cafeteiras, Cântaros, Cantis, Cinzeiros, Copos, Fogareiros, Garrafas, Jarras, Mealheiros, Medalhas, Moringues, Palmatórias, Pratos, Púcaros, Reservatórios, Troncos, Vasos de flores, etc.

Morfologia
A uma dada tipologia de objecto olárico podem corresponder várias morfologias. Assim um moringue pode ter um corpo ovóide, esferóide, cilindróide segundo a vertical ou a horizontal, bem como qualquer outra forma distinta das anteriores.

Dimensões
Em geral, uma peça olárica de determinada tipologia e com uma dada morfologia, existe em vários tamanhos, os quais eram numerados de tal modo que ao tamanho maior correspondia o número maior. Este número pode aparecer gravado na base da peça ou aí marcado a giz, depois da cozedura ou então nem sequer ter sido marcado.

Proporções
É óbvio que as proporções entre as 3 dimensões de qualquer peça olárica no seu todo ou entre os seus componentes, não é arbitrária. São proporções que os oleiros de várias gerações foram perpetuando no barro, após a magia das suas mãos as ter tornado harmoniosas.

Tipos de decoração
Os tipos de decoração utilizados nas peças oláricas de Estremoz são de cinco tipos principais:
- 1 - O polido, que utiliza o contraste entre a superfície baça e os motivos que foram polidos com recurso a um seixo ou a um teque;
- 2 - O empedrado, no qual meniscos convexos de argila, decorados com minúsculos fragmentos de quartzo, são colados à peça com barbutina;
- 3 - O riscado, que recorre a sulcos gravados na superfície, com recurso a um teque, um arame, um prego ou uma sovela;
- 4 - O picado, que utiliza formas geométricas que são gravadas na superfície por percussão de objectos ou perfis cuja secção tem uma determinada geometria, como é o caso dos invólucros de bala e dos cartuxos de caça;
- 5 - A relevada, na qual brasões de Estremoz ou outros, assim como inscrições como “RECORDAÇÃO DE” ou “LEMBRANÇA DE”, bem como elementos fitomórficos (folhas, bolotas, ramos de sobreiro) ou zoomórficos (coelhos, lagartos) são moldados em barro e colados com barbutina à superfície;
Para além disso são conhecidos exemplares que ostentam uma decoração obtida pela utilização conjunta de alguns dos tipos referidos anteriormente.

Marcas
O levantamento das marcas de olaria de Estremoz é um trabalho que ainda está em curso, que precisa de ser continuado e que nunca se pode dar por concluído. Para além das marcas de fabrico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente, podem existir também marcas de tamanho, gravadas manualmente ou manuscritas a giz. Podem, finalmente, aparecer ainda marcas simbólicas com significado apotropaico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente. Caso das estrelas de 5 e de 6 pontas (Signo de Salomão), do trevo de 4 folhas ou da cruz trevolada).

Estética
A estética das peças oláricas de Estremoz é determinada por quatro factores distintos, mas de igual importância: o cromatismo vermelho do barro, aliado à morfologia, às proporções e à decoração. É da conjugação desses factores, sabiamente combinados, que resulta a excelência das peças oláricas tradicionais de Estremoz, por transmitirem sempre harmonia, perfeição, beleza e elegância.

Hernâni Matos

Moringue antropomórfico com decoração polida.
Fabrico da Olaria Alfacinha.

Depósito com tampa, onde estão patentes 3 tipos de decoração: 
empedrado, o riscado e o polido. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Pote com tampa e duas asas, no qual foram usados 2 tipos de decoração:
 o riscado e o picado. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Jarro de forma cilíndrica com decoração relevada fitomórfica,
picada e polida.

Bilha em forma de tronco, com decoração relevada, brasonada, fitomórfica, 
zoomórfica, picada e polida.

Moringue com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Jarro de forma ovóide com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Garrafão com decoração polida, picada, relevada fitomórfica e brasonada.
Fabrico desconhecido. 1ª metade do séc. X

Prato com decoração relevada. Início do séc. XX. Fabrico da Olaria Alfacinha.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

O curso natural das coisas

 

Fig. 1 - Com cerca de 1 ano de idade, no Largo do Espírito Santo, em Estremoz.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Nasci em 1946 no número 14 do Largo do Espírito Santo em Estremoz, mesmo ali ao cantinho (Fig. 1 e Fig. 2). Ao meio da Rua dos Banhos, do lado direito, morava o mestre oleiro e barrista Mariano da Conceição. Bem perto da casa dos meus pais era também a rua do Lavadouro, onde ao meio funcionara a Cerâmica Estremocense de Mestre Emídio Viana. Não seria isto um augúrio de que iria estar ligado à olaria? É caso para dizer que “Eu não acredito em coincidências, mas que as há, há”.

Fig. 2 - Largo do Espírito Santo - Estremoz. Foto Tony, cerca de 1950.

Na minha juventude, os passeios pelo Rossio levavam-me invariavelmente a deter nos stands da Olaria Alfacinha (Fig. 3) e da Olaria Regional, onde mirava e remirava as peças oláricas, mas onde não comprava nada, não só porque não chegara ainda a altura de o fazer, mas porque como jovem de então, só tinha cotão nos bolsos das calças.

Fig. 3 - Stand da Olaria Alfacinha no Rossio Marquês de Pombal em Estremoz, no ano de 1974.

Em 1963, a participação da olaria e da barrística no Cortejo Etnográfico integrado nas Festas da Exaltação da Santa Cruz (Fig. 4 a Fig. 11) foram determinantes na tomada de consciência de um jovem de 17 anos como eu, de que tanto a olaria como a barrística eram manifestações vigorosas não só da identidade cultural estremocense, como da identidade cultural alentejana.


Fig. 4 - Acarreto de barro previamente extraído do barreiro.

Fig. 5 - Oleiro  modelando uma peça na roda.

Fig. 6 - Brunideiras decorando o vasilhame de barro antes de ser cozido.

Fig. 7 - Bonequeiras modelando e pintando Bonecos de Estremoz. 

Fig. 8 - Fabrico de tijolo burro por moldagem.

Fig. 9 - Retirados dos moldes os tijolos burros são postos a secar ao sol durante vários
dias, antes de ser cozidos no forno

Fig. 10 - Uma carrada de lenha para alimentar o forno onde são cozidas as peças de barro.

Fig. 11 - Alimentação com lenha do forno onde será  efectuada a cozedura
 das peças de barro.  

Entretanto, ingressei na Universidade e só em 1972 comecei a comprar objectos oláricos e Bonecos de Estremoz, após ter ingressado como professor na então Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Eram compras às pinguinhas, já que em início de carreira ganhava pouco mais do que coisa nenhuma,

Naturalmente, que as aquisições causadas pelo fascínio do barro precisavam de ser consolidadas com conhecimentos. Foram determinantes na minha formação como coleccionador, livros como “Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho (Fig. 12), “Algumas palavras acerca de Púcaros de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos,(Fig. 12), “La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux (Fig. 13),e mais tarde “Barros de Estremoz”, de Joaquim Vermelho (Fig. 13),, a que se seguiram outros livros e brochuras, adquiridos muitas vezes no mercado alfarrabista.

Fig. 12 - Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho e  “Algumas palavras acerca de Púcaros
de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Fig. 13 - La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux e “Barros de
Estremoz”, de Joaquim Vermelho.

As leituras levaram-me a formular questões relativamente àquilo que leio e aos objectos oláricos que vou adquirindo, pelo que a minha formação científica me induz a investigar, visando "Pôr o preto no branco".

Em 2009, criei o blogue “Do tempo da Outra Senhora” (Fig. 14), onde vou publicando escritos de olaria e de barrística de Estremoz, com a pedalada que me é possível, pois as minhas motivações culturais dispersam-se simultaneamente por outros centros de interesse. Foi assim que em 2018 publiquei o livro “BONECOS DE ESTREMOZ” (Fig. 15), dado à estampa pelas Edições Afrontamento.

Fig. 14 - Aspecto parcial da página de entrada do blogue "Do Tempo da Outra Senhora".

Fig. 15 - "BONECOS DE ESTREMOZ”, de Hernâni Matos. Edições Afrontamento, 2018.

Com a morte em 2016 de Mestre Mário Lagartinho, decano da olaria e o último oleiro de Estremoz, constituiu uma tragédia cultural. Tornou-se real a necessidade de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, acção que em devido tempo veio a ser despoletada pelo Município de Estremoz, em parceria com entidades oficiais para isso vocacionadas. 

Fig. 16 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de Estremoz.
 Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.

Fig. 17 - Uma aula do 1º módulo do Curso de Olaria em 2021. Fotografia da ADOE.

Creio que a realização do presente colóquio, integrado neste 1º Encontro Nacional de Olaria, indicia que os trabalhos de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, marcham no bom caminho. Creio igualmente que nessas tarefas de missão é relevante o papel dos coleccionadores, no duplo papel de colectores e de investigadores, produtores de conhecimento, que dão um inestimável contributo para a arte avançar. Daí que me atreva a efectuar aqui, ainda que duma forma sucinta, aquela que é na minha óptica a caracterização da tradição oleira de Estremoz.

Hernâni Matos

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

As primeiras memórias da olaria


Aguadeiro (2016). Ricardo Fonseca (1986 - ).

Aguadeiro. José Moreira (1926-1991).

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

As minhas primeiras memórias acerca da olaria de Estremoz são registos etnográficos e remontam aos tempos da minha infância. Têm a ver com o consumo de água em casa de meus pais. A água era guardada em cântaros de barro, o que constituía prática corrente em todas as casas da urbe até à inauguração da rede pública de abastecimento de água, em 26 de Maio de 1952.

Até então, a água era distribuída por aguadeiros que a acarretavam em cântaros de folha de Flandres ou de barro, transportados em cangalhas assentes no dorso de burros ou em divisórias de carroças para o transporte de água.  Recolhida nas fontes, assim ia parar à casa dos fregueses. À chegada, à porta da rua, a água era transvasada do cântaro que a transportara para um cântaro de barro do freguês.

Os aguadeiros eram figuras do quotidiano diário da época que ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Mulher das castanhas. Oficinas de Estremoz dos finais do
séc. XIX. Ex-colecção Emídio Viana.

Mulher das castanhas (1938). Ana das Peles (1869-1945).
 Ex-colecção Azinhal Abelho. 

Outras memórias igualmente da minha infância têm a ver com a venda de castanhas à porta das tabernas. Aí, mulheres sentadas em cadeiras, assavam castanhas em assadores de barro, aquecidos por fogareiros a carvão, igualmente de barro.

Tal como os aguadeiros também as mulheres das castanhas, como figuras do quotidiano diário da época, ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Qualquer das memórias desperta em mim outras memórias. Assim, a memória dos aguadeiros carrega consigo a memória da frescura e do sabor inigualável da água contida em recipiente de barro. Por outro lado, a memória das mulheres das castanhas transporta consigo o odor e o sabor das castanhas assadas. É caso para dizer que as memórias são como as cerejas, vêm umas atrás das outras.

Hernâni Matos

domingo, 28 de setembro de 2025

O guardador de memórias

 

Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.


Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra.

Ao longo da minha vida de coleccionador reuni mais de 200 objectos oláricos de diferentes tipologias, morfologias, funcionalidades e tamanhos, os quais têm entre si um elo comum: foram produzidos pelas extintas olarias de Estremoz. São, pois, memórias do passado. Ao reunir um acervo pessoal dessas peças, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.

Estas memórias guardadas, conjuntamente com muitas outras memórias, integram a chamada memória colectiva, a qual nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.

É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.

Como guardador de memórias, assumo-me como fiel guardião da nossa ancestral matriz identitária, incumbido duma nobre missão: a de transmitir às novas gerações, a importância e a riqueza da pluralidade do passado e das tradições do nosso povo, para que elas tenham consciência de que urge resistir a uma globalização castrante, que assimptoticamente procurará reduzir à chapa zero, as nossas identidades culturais, a nível local, regional e nacional.

Hernâni Matos

terça-feira, 23 de setembro de 2025

A ADOE no rescaldo do 1º Encontro Nacional de Olaria em Évora Monte

 



No passado dia 21 de Setembro tive o privilégio de participar no Castelo de Évora Monte no Colóquio “RECENTRAR - Memória, Barro e Saber-fazer“, integrado no Encontro Nacional de Olaria, que ali teve lugar.

A minha participação foi fruto do honroso convite que me foi formulado pela Senhora Doutora Mathilda Dias Coutinho, coordenadora do projecto de investigação 2LEGACY, no sentido de participar no Colóquio na qualidade de coleccionador e investigador da olaria de Estremoz, convite a que naturalmente acedi e que muito me congratulou.

A minha comunicação subordinada à epígrafe O guardador de memórias e acompanhada de projecção em PowerPoint, teve o seguinte epílogo:

O legado da antiga tradição oleira de Estremoz constitui indiscutivelmente Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal. O legado é caracterizado pela excelência dos exemplares oláricos que o integram, o que é revelador da exigência que constitui a sua recuperação e preservação, visando a salvaguarda da identidade cultural estremocense.

Nessa missão está envolvida a ADOE, cujos associados têm recebido formação continuada, ministrada por Mestre Xico Tarefa, visando o seu aperfeiçoamento técnico e artístico. Tal só foi possível com o apoio indispensável e insubstituível do Município de Estremoz e do CEARTE - Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património.


Se me permitem endereço aqui uma saudação muito especial à Inês Crujo, Presidente da ADOE – Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz, que é a timoneira encarregada de “levar o barco a bom porto”. Parafraseando “O Mostrengo”, da “Mensagem” de Fernando Pessoa, é caso para dizer: “Ali ao leme é mais do que ela. É um povo que quer a olaria que é sua”.


Por fim e os últimos são os primeiros, uma saudação também muito especial para Mestre Xico Tarefa, "decano" da olaria de Redondo, reconhecido pelo seu vigoroso contributo para a preservação da arte oleira, o qual tenho o privilégio de conhecer desde o I Encontro Regional de Olaria do Alto Alentejo, realizado em Vila Viçosa, em 1980, há 45 anos atrás. Tem sido ele que com a sua mestria de saber fazer”, empenho e dedicação que são o seu timbre, tem dado formação aos Adoeiros, desculpem-me o neologismo, para que estes sejam bem-sucedidos na nobre missão a que se propuseram: "Revitalizar a produção oleira tradicional de Estremoz. Bem hajam por isso.

Hernâni Matos

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Colóquio “RECENTRAR: Memória, Barro e Saber-fazer “- Encontro Nacional de Olaria

 


Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 17  de Setembro de 2025.

Nos dias 20 e 21 de setembro, o Castelo de Évora Monte recebe o colóquio "Recentrar: Memória, Barro e Saber-fazer", integrado no programa do Encontro Nacional de Olaria.

O colóquio constitui um espaço de reflexão e debate em torno da memória, do barro e das práticas tradicionais da olaria, reunindo investigadores de diversas instituições portuguesas, convidados de entidades ligadas ao património cultural e ao artesanato, bem como artesãos e colecionadores.

O encontro tem como objetivo aprofundar o diálogo entre o conhecimento académico e o saber-fazer tradicional, valorizando o património material e imaterial da cerâmica e contribuindo para a sua preservação e transmissão às gerações futuras.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Exposição "O Legado do barro de Estremoz"



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 18  de Setembro de 2025.

No próximo dia 19 de setembro, às 15:00 horas, será inaugurada, na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, a exposição "O Legado do Barro de Estremoz".

A Exposição resulta do projeto de investigação 2LEGACY, dedicado à valorização do uso de barro endógeno — obtido a partir de argilas locais — na produção cerâmica tradicional. Com uma abordagem transdisciplinar, o projeto cruza história, antropologia, ciências exatas e artes, dando visibilidade à importância cultural e patrimonial deste saber-fazer.

A exposição reúne peças históricas de diferentes épocas e obras de olaria resultantes da recuperação do barro endógeno e das práticas tradicionais de Estremoz, realizadas em workshops e residências artísticas. O percurso expositivo acompanha todas as fases do projeto, destacando os processos de recolha, preparação e utilização do barro. Esta exposição é uma oportunidade para conhecer o património associado à olaria e barro de Estremoz.

O projeto de investigação, financiado pelo laboratório colaborativo IN2PAST, intitula-se Explorando o papel das matérias-primas na cerâmica tradicional portuguesa para resgatar o legado de Lepierre para o futuro: 2LEGACY (EXPL/In2Past/2024/15). Foi liderado pelo Laboratório HERCULES (UÉ/IN2PAST), em colaboração com o CRIA (NOVA FCSH/IN2PAST), o Lab2PT (UMinho/IN2PAST), a VICARTE (FCT-UNL/FBAUL), o CENIMAT (FCT-UNL) e a Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz (ADOE).

Contou com a parceria de instituições de referência como o Município de Estremoz, Sèvres – Manufacture et Musée Nationaux, a Fundação Alentejo, o Centro Ciência Viva de Estremoz, Museu da Olaria de Barcelos e a CEARTE.

Venha visitar!

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer" - Évora Monte, 20 e 21 de Setembro


No âmbito do ENCONTRO NACIONAL DE OLARIA que decorrerá no Castelo de Évora Monte entre 20 e 21 de Setembro, terá lugar o colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", que decorrerá naqueles dias, com intervenientes e horário indicados no cartaz do Colóquio, disponível aqui:




sábado, 16 de agosto de 2025

Quando as bilhas de Estremoz se passeavam por Sintra e frequentavam as praias da região

 

Fig. 1

O Mercado das Velharias em Estremoz continua a ser uma fonte inesgotável de agradáveis surpresas. Desta vez foi a descoberta de um objecto olárico feito à roda, mais propriamente uma bilha de barro vermelho (Fig. 1), com morfologia corrente e desprovida de decoração. O aspecto superficial não a torna atractiva, já que ostenta inevitáveis marcas de desgaste pelo tempo. O interesse em mim despertado resultou de duas particularidades por mim observadas.
A primeira, a qual salta à vista, é a existência na parte superior do bojo, do lado oposto à asa, de uma inscrição em alto relevo, orlada por um rectângulo e com os seguintes dizeres distribuídos por 3 linhas “AGUA DE MESA / FONTE DAS DAMAS / CAPUCHOS” (Fig. 2 e Fig. 3).
A segunda, situada acima daquela inscrição, é a marca de fabrico da Olaria Alfacinha, já por mim descrita anteriormente [i] : MARCA TIPO 2 - Marca “OLARIA ALFACINHA / ESTREMOZ“, aposta por carimbo, inscrita numa coroa circular de 2,3 cm e 1,4 cm de diâmetro, com a palavra “PORTUGAL”, ao centro. As inscrições “OLARIA ALFACINHA” e “ESTREMOZ” encontram-se separadas por duas cruzes trevoladas (Fig. 4 e Fig. 5).
Segundo consegui apurar, a “Fonte das Damas” situava-se junto ao “Convento dos Capuchos”, na freguesia de Colares, pertencente ao concelho de Sintra. No 1º quartel do séc. XX a água da Fonte das Damas era comercializada, transportada por burros em bilhas de barro e vendida na Vila de Sintra e nas praias da região. As bilhas, é claro, eram bilhas de Estremoz que com a ajuda de burros se davam ao luxo de passear por Sintra e frequentar as praias da região. Olha que chique!


Fig. 2

Fig. 3

Fig. 4

Fig. 5

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Poetas em defesa da olaria de Estremoz - 03


António Sardinha (1887-1925)
Político, historiador e poeta, natural de Monforte – OBRA POÉTICA:  - Quando as
Nascentes Despertam (1821); - Tronco Reverdecido (1910); - Epopeia da Planície
(1915); - Na Corte da Saudade (1922) - Chuva da Tarde (1923); - Era uma Vez um
Menino (1926); - O Roubo da Europa (1931); - Pequena Casa Lusitana (1937).

O elogio do púcaro

Tu és a minha companha,
eu tenho-te á cabeceira
ó pucarinho de barro,
enfeite da cantareira.

Amigo certo e sabido,
matas a sede e o calor.
Tu vales mais do que pesas,
não se te paga o valor!

Meu bocadinho de barro,
chiando como um cortiço,
tu dás-te com toda a gente,
não te deshonras por isso!

Prantas a agua fresquinha,
sem ti não passa ninguem.
Mimo de reis e de bispos,
não custas mais que um vintem!

Assim, singelo e sem pompa,
ganhaste fama a Estremoz.
Ah, desgraçado daquele
que nunca a bôca te pôs!

És a cubiça das velhas,
contigo se enche um mercado.
Então a vista que metes,
quando tu és empedrado?!

Quero casar-me. Já tenho
dois pucarinhos pequenos.
Pois, p'ra principio de arranjo,
outros começam com menos!

- Amor, se fôres á feira
traz-me uma prenda galante.
Não tragas nada do ourives,
- um pucarinho é bastante!

Vae alta a febre, vae alta,
- p'ra que é que os médicos são?
Ó pucarinho de barro,
acode a esse febrão!

Eu nunca vi neste mundo,
que é gastador e que é louco,
coisa que tanto valesse,
mas que custasse tão pouco!

Assim, singelo e sem pompa,
tu déste fama a Estremoz!
- Ah, desgraçado daquele
 que nunca á bôca te pôs!
Hernâni Matos
Publicado em 5 de Março de 2017