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domingo, 16 de novembro de 2025

Estórias do autor

 

Hernâni Matos (1946 - ). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.


O presente texto integra o meu livro
publicado pelas Edições Afrontamento
no Outono de 2018


Recolector
Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que sou recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da minha alma. Nessa conjuntura, tornei-me filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o meu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no Mercado das Velharias em Estremoz, no qual sou presença habitual e onde recolecto objectos que, duma forma virtual, pré-existiam no meu pensamento.

Coleccionador
Desde os dez anos de idade que transporto na massa do sangue o espírito de coleccionador. Marca genética ou atávica, não sei, mas que veio ao de cima lá por essa idade, veio. E é um facto tão real como o odor da flor de esteva ou o castanho da terra de barro.
Coleccionar é reunir num todo, objectos que têm, pelo menos, uma característica ou funcionalidade comum. A motivação para o fazer pode ser diversa, como distintas podem ser as consequências de uma colecção. Pode ficar guardada numa caixa ou arrumada numa prateleira de estante ou mesmo numa vitrina, como também pode ser objecto de estudo numa procura de respostas, desde sempre procuradas pela alma humana.
Há objectos que, pelos mais diferentes motivos, somos levados a coleccionar. E nenhuma colecção é estática, mas antes bem pelo contrário, dinâmica, uma vez que com o porvir há que a reformular, pelo aumento do grau de exigência imposto e mesmo fruto de uma certa especialização, os quais diminuem o espectro daquilo que se colecciona.

A cartofilia como trampolim para a Etnografia.
Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador e tenho-me dedicado a tópicos como a Etnografia Portuguesa, com especial incidência na Etnografia Alentejana. A Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os bilhetes-postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias. De resto, colecciono postais topográficos de todo o país, muito especialmente do Alentejo e predominantemente de Estremoz. O meu interesse pela Cartofilia estendeu-se à Fotografia, pelo que acabei por adquirir colecções de fotografias antigas, as quais servem para ilustrar temas sobre os quais me debruço e investigo.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são os Bonecos de Estremoz, os quais descobri há mais de quarenta anos. E digo que descobri, porque efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que antes de tudo são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem e as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.

A Bibliofilia como suporte para a Escrita
Sou bibliófilo há cerca de 50 anos, com interesses focalizados na Cultura Portuguesa, ainda que espraiados por uma vasta gama de sub-domínios: Arte Popular, Arte Erudita, Etnografia, Literatura de Tradição Oral, Poesia Popular, Poesia Erudita, Teatro, História de Portugal, História de Arte, História Local, Regionalismo, Monografias, Agricultura, Dicionários, Publicações Periódicas Nacionais, Imprensa local. Daí que possua na minha biblioteca pessoal a quase totalidade da bibliografia referida no presente livro.

Um corolário natural
Sou um homem de escrita e esta é um meio de que me sirvo para dar conta de tudo aquilo que me estimula a alma. Por isso, este livro é um corolário natural de um dos meus múltiplos percursos de vida, o de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz. 

Publicado inicialmente a 16 de Novembro de 2024

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 28 de Outubro de 2022





















sábado, 4 de outubro de 2025

Arte pastoril perde um dos seus maiores


Mestre José Joaquim Vinagre (1930-2025).

Texto de JOÃO JALECA,
publicado no nº 1108 (03-10-2025)
do jornal BRADOS DO ALENTEJO, 
de onde foi transcrito com a devida vénia
e autorização do autor.

A alcunha de Zé Santinhas pouco ou nada dirá à maioria dos nossos leitores. Já na comunidade veirense, em particular entre os de mais idade, tal anexim soará de imediato com um misto de pertença e (já) de saudade, pois que se refere a um dos mais hábeis e minuciosos artesãos do concelho de Estremoz nado e criado na freguesia de Veiros: Mestre Vinagre o 'mago' da navalha e do canivete com que, desde os 12 anos, produzia das mais genuinas peças de arte pastoril em cortiça, e que no passado sábado, 20, nos deixou aos 95 anos de idade.
À minúcia com que aprimorava as suas peças não escapava o mais ínfimo pormenor, quer fosse nos carros ou carroças e respectivos animais do mundo rural e agrícola do Alentejo de tempos idos, quer em outros conjuntos com cenas da vida e da labuta daquela mesma época. Ele eram os varais,os taipais, a rabiça, a manivela para travão, o grampo na ponta do eixo para que a roda não se escapasse daquele, ou as cangalhas para cântaros e, ainda, os aprestos nas alimárias que iam das cabeçadas aos burnis, das cangas às arreatas e a sei lá o que mais.
No dia 26 de novembro de 1929, uma terça-feira, nascia na freguesia de Veiros, uma criança do sexo masculino a quem foi dado o nome de José Joaquim Vinagre, mas que mais tarde, na comunidade viria a ser mais conhecido pelo apodo de Zé Santinhas.
Com cerca de 12-13 anos, mourejando o 'pão e o conduto' como ajuda de pastor, apanhou, junto a um sobreiro, um bocado de cortiça em bruto e deu-lhe para começar a esculpir o mesmo com a navalha. Obra pronta: Uma figura antropofórmica a que chamou de boneco. Foi paixão para uma vida.
Também rendilhou a cana com motivos geométricos ou vegetalistas, em especial nos 'canudos' para proteger, dos golpes da foice, os dedos das ceifeiras. Peças essas, únicas, habitualmente bordadas a pedido de camaradas de trabalho, para oferta as suas 'pretendidas' ou já 'conversadas'.
Da sua fecunda imaginação sairam utensílios de uso prático e doméstico, como conchos, saleiros, assentos que gravou com figuras como as já citadas vegetalistas ou geométricas e mesmo zoomórficas ou antropomórficas.
Mas o seu 'enlevo' foram sempre as miniaturas de cenas rurais que tão bem conheceu e viveu. Conjuntos que impressionam pela proporção e detalhe aos originais.
Curiosamente, mestre José Vinagre, não participou na primeira edição da Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz (e respectivas Matérias Primas) que em julho de 1983 se realizou nas alamedas do Rossio Marquês de Pombal.

Está representado no Museu Municipal Professor Joaquim Vermelho [Estremoz] e, o Munípio homenageou-o com a exposição temporária “Mestre José Vinagre – Tesouro da Arte Popular no Alentejo” que esteve patente de Janeiro a Março últimos na Galeria Municipal Dom Dinis.
José Joaquim Vinagre, mestre Vinagre ou Ti Zé Santinhas, morreu no Serviço de Urgência do Centro de Saúde de Estremoz, no sábado, dia 20 de setembro, aos 95 anos. Era viúvo de Joaquina Rita Coré Vinagre. Ultimamente residia no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Veiros.
O funeral, dia 21 de setembro, efetuou-se para o Cemitério de Veiros.
Que descanse em paz e que a memória dos veirenses, dos estremocenses e, porque não, dos alentejanos o recorde através dos tempos.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A tradição oleira de Estremoz

 

Púcaro com decoração polida. Produção da Escola Industrial António Augusto Gonçalves.
Finais dos anos 30 do sé. XX.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

A olaria tradicional de Estremoz é extremamente rica em múltiplos aspectos. Na verdade, observando-a como um todo, revelam-se de imediato uma grande variedade de funcionalidades, tipologias, morfologias, tipos de decoração e tamanhos. Como tal, é uma das expressões mais elevadas da nossa identidade cultural local.

Funcionalidade
A funcionalidade das peças oláricas de Estremoz é servirem predominantemente de vasilhame para conter e transportar água, conter flores, dinheiro, velas, ou então servirem de elementos decorativos. Algumas funcionalidades deixaram de ser utilizadas, devido ao desenvolvimento tecnológico. É o caso dos tijolos, telhas, canos, sifões e manilhas.

Tipologia
É diversificada a tipologia das peças oláricas de Estremoz. As principais são: Assadores, Barris, Bilhas, Cafeteiras, Cântaros, Cantis, Cinzeiros, Copos, Fogareiros, Garrafas, Jarras, Mealheiros, Medalhas, Moringues, Palmatórias, Pratos, Púcaros, Reservatórios, Troncos, Vasos de flores, etc.

Morfologia
A uma dada tipologia de objecto olárico podem corresponder várias morfologias. Assim um moringue pode ter um corpo ovóide, esferóide, cilindróide segundo a vertical ou a horizontal, bem como qualquer outra forma distinta das anteriores.

Dimensões
Em geral, uma peça olárica de determinada tipologia e com uma dada morfologia, existe em vários tamanhos, os quais eram numerados de tal modo que ao tamanho maior correspondia o número maior. Este número pode aparecer gravado na base da peça ou aí marcado a giz, depois da cozedura ou então nem sequer ter sido marcado.

Proporções
É óbvio que as proporções entre as 3 dimensões de qualquer peça olárica no seu todo ou entre os seus componentes, não é arbitrária. São proporções que os oleiros de várias gerações foram perpetuando no barro, após a magia das suas mãos as ter tornado harmoniosas.

Tipos de decoração
Os tipos de decoração utilizados nas peças oláricas de Estremoz são de cinco tipos principais:
- 1 - O polido, que utiliza o contraste entre a superfície baça e os motivos que foram polidos com recurso a um seixo ou a um teque;
- 2 - O empedrado, no qual meniscos convexos de argila, decorados com minúsculos fragmentos de quartzo, são colados à peça com barbutina;
- 3 - O riscado, que recorre a sulcos gravados na superfície, com recurso a um teque, um arame, um prego ou uma sovela;
- 4 - O picado, que utiliza formas geométricas que são gravadas na superfície por percussão de objectos ou perfis cuja secção tem uma determinada geometria, como é o caso dos invólucros de bala e dos cartuxos de caça;
- 5 - A relevada, na qual brasões de Estremoz ou outros, assim como inscrições como “RECORDAÇÃO DE” ou “LEMBRANÇA DE”, bem como elementos fitomórficos (folhas, bolotas, ramos de sobreiro) ou zoomórficos (coelhos, lagartos) são moldados em barro e colados com barbutina à superfície;
Para além disso são conhecidos exemplares que ostentam uma decoração obtida pela utilização conjunta de alguns dos tipos referidos anteriormente.

Marcas
O levantamento das marcas de olaria de Estremoz é um trabalho que ainda está em curso, que precisa de ser continuado e que nunca se pode dar por concluído. Para além das marcas de fabrico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente, podem existir também marcas de tamanho, gravadas manualmente ou manuscritas a giz. Podem, finalmente, aparecer ainda marcas simbólicas com significado apotropaico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente. Caso das estrelas de 5 e de 6 pontas (Signo de Salomão), do trevo de 4 folhas ou da cruz trevolada).

Estética
A estética das peças oláricas de Estremoz é determinada por quatro factores distintos, mas de igual importância: o cromatismo vermelho do barro, aliado à morfologia, às proporções e à decoração. É da conjugação desses factores, sabiamente combinados, que resulta a excelência das peças oláricas tradicionais de Estremoz, por transmitirem sempre harmonia, perfeição, beleza e elegância.

Hernâni Matos

Moringue antropomórfico com decoração polida.
Fabrico da Olaria Alfacinha.

Depósito com tampa, onde estão patentes 3 tipos de decoração: 
empedrado, o riscado e o polido. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Pote com tampa e duas asas, no qual foram usados 2 tipos de decoração:
 o riscado e o picado. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Jarro de forma cilíndrica com decoração relevada fitomórfica,
picada e polida.

Bilha em forma de tronco, com decoração relevada, brasonada, fitomórfica, 
zoomórfica, picada e polida.

Moringue com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Jarro de forma ovóide com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Garrafão com decoração polida, picada, relevada fitomórfica e brasonada.
Fabrico desconhecido. 1ª metade do séc. X

Prato com decoração relevada. Início do séc. XX. Fabrico da Olaria Alfacinha.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

O curso natural das coisas

 

Fig. 1 - Com cerca de 1 ano de idade, no Largo do Espírito Santo, em Estremoz.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Nasci em 1946 no número 14 do Largo do Espírito Santo em Estremoz, mesmo ali ao cantinho (Fig. 1 e Fig. 2). Ao meio da Rua dos Banhos, do lado direito, morava o mestre oleiro e barrista Mariano da Conceição. Bem perto da casa dos meus pais era também a rua do Lavadouro, onde ao meio funcionara a Cerâmica Estremocense de Mestre Emídio Viana. Não seria isto um augúrio de que iria estar ligado à olaria? É caso para dizer que “Eu não acredito em coincidências, mas que as há, há”.

Fig. 2 - Largo do Espírito Santo - Estremoz. Foto Tony, cerca de 1950.

Na minha juventude, os passeios pelo Rossio levavam-me invariavelmente a deter nos stands da Olaria Alfacinha (Fig. 3) e da Olaria Regional, onde mirava e remirava as peças oláricas, mas onde não comprava nada, não só porque não chegara ainda a altura de o fazer, mas porque como jovem de então, só tinha cotão nos bolsos das calças.

Fig. 3 - Stand da Olaria Alfacinha no Rossio Marquês de Pombal em Estremoz, no ano de 1974.

Em 1963, a participação da olaria e da barrística no Cortejo Etnográfico integrado nas Festas da Exaltação da Santa Cruz (Fig. 4 a Fig. 11) foram determinantes na tomada de consciência de um jovem de 17 anos como eu, de que tanto a olaria como a barrística eram manifestações vigorosas não só da identidade cultural estremocense, como da identidade cultural alentejana.


Fig. 4 - Acarreto de barro previamente extraído do barreiro.

Fig. 5 - Oleiro  modelando uma peça na roda.

Fig. 6 - Brunideiras decorando o vasilhame de barro antes de ser cozido.

Fig. 7 - Bonequeiras modelando e pintando Bonecos de Estremoz. 

Fig. 8 - Fabrico de tijolo burro por moldagem.

Fig. 9 - Retirados dos moldes os tijolos burros são postos a secar ao sol durante vários
dias, antes de ser cozidos no forno

Fig. 10 - Uma carrada de lenha para alimentar o forno onde são cozidas as peças de barro.

Fig. 11 - Alimentação com lenha do forno onde será  efectuada a cozedura
 das peças de barro.  

Entretanto, ingressei na Universidade e só em 1972 comecei a comprar objectos oláricos e Bonecos de Estremoz, após ter ingressado como professor na então Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Eram compras às pinguinhas, já que em início de carreira ganhava pouco mais do que coisa nenhuma,

Naturalmente, que as aquisições causadas pelo fascínio do barro precisavam de ser consolidadas com conhecimentos. Foram determinantes na minha formação como coleccionador, livros como “Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho (Fig. 12), “Algumas palavras acerca de Púcaros de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos,(Fig. 12), “La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux (Fig. 13),e mais tarde “Barros de Estremoz”, de Joaquim Vermelho (Fig. 13),, a que se seguiram outros livros e brochuras, adquiridos muitas vezes no mercado alfarrabista.

Fig. 12 - Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho e  “Algumas palavras acerca de Púcaros
de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Fig. 13 - La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux e “Barros de
Estremoz”, de Joaquim Vermelho.

As leituras levaram-me a formular questões relativamente àquilo que leio e aos objectos oláricos que vou adquirindo, pelo que a minha formação científica me induz a investigar, visando "Pôr o preto no branco".

Em 2009, criei o blogue “Do tempo da Outra Senhora” (Fig. 14), onde vou publicando escritos de olaria e de barrística de Estremoz, com a pedalada que me é possível, pois as minhas motivações culturais dispersam-se simultaneamente por outros centros de interesse. Foi assim que em 2018 publiquei o livro “BONECOS DE ESTREMOZ” (Fig. 15), dado à estampa pelas Edições Afrontamento.

Fig. 14 - Aspecto parcial da página de entrada do blogue "Do Tempo da Outra Senhora".

Fig. 15 - "BONECOS DE ESTREMOZ”, de Hernâni Matos. Edições Afrontamento, 2018.

Com a morte em 2016 de Mestre Mário Lagartinho, decano da olaria e o último oleiro de Estremoz, constituiu uma tragédia cultural. Tornou-se real a necessidade de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, acção que em devido tempo veio a ser despoletada pelo Município de Estremoz, em parceria com entidades oficiais para isso vocacionadas. 

Fig. 16 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de Estremoz.
 Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.

Fig. 17 - Uma aula do 1º módulo do Curso de Olaria em 2021. Fotografia da ADOE.

Creio que a realização do presente colóquio, integrado neste 1º Encontro Nacional de Olaria, indicia que os trabalhos de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, marcham no bom caminho. Creio igualmente que nessas tarefas de missão é relevante o papel dos coleccionadores, no duplo papel de colectores e de investigadores, produtores de conhecimento, que dão um inestimável contributo para a arte avançar. Daí que me atreva a efectuar aqui, ainda que duma forma sucinta, aquela que é na minha óptica a caracterização da tradição oleira de Estremoz.

Hernâni Matos

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

As primeiras memórias da olaria


Aguadeiro (2016). Ricardo Fonseca (1986 - ).

Aguadeiro. José Moreira (1926-1991).

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

As minhas primeiras memórias acerca da olaria de Estremoz são registos etnográficos e remontam aos tempos da minha infância. Têm a ver com o consumo de água em casa de meus pais. A água era guardada em cântaros de barro, o que constituía prática corrente em todas as casas da urbe até à inauguração da rede pública de abastecimento de água, em 26 de Maio de 1952.

Até então, a água era distribuída por aguadeiros que a acarretavam em cântaros de folha de Flandres ou de barro, transportados em cangalhas assentes no dorso de burros ou em divisórias de carroças para o transporte de água.  Recolhida nas fontes, assim ia parar à casa dos fregueses. À chegada, à porta da rua, a água era transvasada do cântaro que a transportara para um cântaro de barro do freguês.

Os aguadeiros eram figuras do quotidiano diário da época que ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Mulher das castanhas. Oficinas de Estremoz dos finais do
séc. XIX. Ex-colecção Emídio Viana.

Mulher das castanhas (1938). Ana das Peles (1869-1945).
 Ex-colecção Azinhal Abelho. 

Outras memórias igualmente da minha infância têm a ver com a venda de castanhas à porta das tabernas. Aí, mulheres sentadas em cadeiras, assavam castanhas em assadores de barro, aquecidos por fogareiros a carvão, igualmente de barro.

Tal como os aguadeiros também as mulheres das castanhas, como figuras do quotidiano diário da época, ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Qualquer das memórias desperta em mim outras memórias. Assim, a memória dos aguadeiros carrega consigo a memória da frescura e do sabor inigualável da água contida em recipiente de barro. Por outro lado, a memória das mulheres das castanhas transporta consigo o odor e o sabor das castanhas assadas. É caso para dizer que as memórias são como as cerejas, vêm umas atrás das outras.

Hernâni Matos

domingo, 28 de setembro de 2025

O guardador de memórias

 

Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.


Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra.

Ao longo da minha vida de coleccionador reuni mais de 200 objectos oláricos de diferentes tipologias, morfologias, funcionalidades e tamanhos, os quais têm entre si um elo comum: foram produzidos pelas extintas olarias de Estremoz. São, pois, memórias do passado. Ao reunir um acervo pessoal dessas peças, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.

Estas memórias guardadas, conjuntamente com muitas outras memórias, integram a chamada memória colectiva, a qual nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.

É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.

Como guardador de memórias, assumo-me como fiel guardião da nossa ancestral matriz identitária, incumbido duma nobre missão: a de transmitir às novas gerações, a importância e a riqueza da pluralidade do passado e das tradições do nosso povo, para que elas tenham consciência de que urge resistir a uma globalização castrante, que assimptoticamente procurará reduzir à chapa zero, as nossas identidades culturais, a nível local, regional e nacional.

Hernâni Matos