Mostrar mensagens com a etiqueta Etnografia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Etnografia. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Carlos Alberto Alves e a Música Popular Alentejana



Tocadora de adufe

Bonecos de Estremoz de Carlos Alberto Alves.
Pintura de Cristina Malaquias.
Colecção Hernãni Matos

Em comunicação datada de 1998 (*), demonstrei que pela sua paisagem própria, pelo carácter do povo alentejano, pelo trajo popular, pela gastronomia, pela arte popular, pelo cancioneiro popular, pelo cante, pela música popular, pela casa tradicional, o Alentejo é uma região com uma identidade cultural própria.

No caso muito particular da música popular alentejana, também os executantes e os instrumentos musicais populares alentejanos, são parte integrante da identidade cultural alentejana, a qual urge preservar e valorizar enquanto memória do povo.

Etno-musicólogos como Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça calcorrearam os campos do Alentejo nos anos 60 do século passado e efectuaram o registo etno-musical da região.

Conhecedor deste registo e daqueles que nele participaram, entre eles o seu tio Aníbal Falcato Alves, o barrista Carlos Alberto Alves, no mais estrito respeito pela técnica de produção e pela estética do Boneco de Estremoz, criou um conjunto de figuras sob a epígrafe MÚSICA POPULAR ALENTEJANA, o qual incorpora os tocadores dos seguintes instrumentos musicais populares alentejanos: adufe, bombo, cana aberta, cântaro, ferrinhos, harmónio, reco-reco, ronca, tambor, tamboril, trancanholas e viola campaniça. Com esta criação procura homenagear todos aqueles que contribuíram para o registo etno-musical do Alentejo.

Felicito o barrista pela qualidade do seu trabalho e pela iniciativa de criar estas figuras, a qual além de louvável é simultaneamente uma forma de afirmação pessoal que constitui mais um passo importante na consolidação da sua carreira como barrista.

HernânMatos

(*) - “A necessidade da criação da Região Administrativa do Alentejo” no Encontro promovido pelo Movimento “Alentejo – Sim à Regionalização por Portugal”. Estremoz, Junta de Freguesia de Santa Maria, 24 de Outubro de 1998.



Tocador de bombo

Tocador de cana rachada

Tocador de cântaro

Tocador de ferrinhos

Tocador de harmónio

Tocador de reque-reque

Tocador de ronca

Tocador de tambor

Tamborileiro

Tocador de tracanholas

Tocador  de viola campaniça.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Dia da Espiga (2ª edição)

Esta é a 2ª edição do post, cuja 1ª edição, datada de 6 de Março de 2010, foi agora ampliada com diversas referências de literatura oral: adagiário português (4), superstições populares (6) e cancioneiro popular (1). Foram igualmente adicionadas, novas fontes bibliográficas (3).

Bilhete-postal ilustrado dos anos 20 do século XX,
reproduzindo ilustração de A. Rey Colaço.

De acordo com o calendário litúrgico cristão, na Quinta-Feira de Ascensão comemora-se a ascensão de Cristo Salvador ao Céu, após ter sido crucificado e ter ressuscitado. Esta data móvel encerra um ciclo de quarenta dias após a Páscoa. Lá diz o adágio: "Da Páscoa à Ascensão, 40 dias vão."
Na Quinta-Feira de Ascensão celebra-se igualmente o Dia da Espiga. Era tradição e igualmente superstição [2], as pessoas irem para o campo neste dia, para apanhar a espiga de trigo e outras plantas e flores silvestres. Faziam um ramo que incluía pés de trigo e/ou centeio, cevada, aveia, um ramo florido de oliveira, papoilas e margaridas.
O ramo tinha um valor simbólico. Simbolizava a fecundidade da terra e a alegria de viver. As espigas simbolizavam o pão e a abundância, as papoilas o amor e a vida, o ramo de oliveira a paz e as margaridas o ouro, a prata e o dinheiro.
Nalguns locais, o ritual da colheita da espiga era muito preciso. Na 5ª Feira de Ascensão, devia ir-se ao campo, do meio-dia para a uma hora, colher flores de oliveira, espigas de trigo e flores amarelas e brancas, tudo em número de cinco. Deviam rezar-se igualmente cinco Padres-Nossos, cinco Ave Marias e cinco Gloria Patres, para que durante o ano, houvesse sempre em casa, azeite, ouro e prata. [6]
De acordo com a tradição, o ramo devia ser pendurado dentro de casa, na parede da cozinha ou da sala, aí se conservando durante um ano, até ser substituído pelo ramo do ano seguinte. Havia a crença que o ramo funcionava como um poderoso amuleto que trazia a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Lá diz o adágio: "Quem tem trigo da Ascensão, todo o ano terá pão." E porquê? Porque se acredita naquilo que diz o cancioneiro popular alentejano:

"Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão." [4]

"Quinta-feira de Ascensão
As flores têm virtudes,
Quis amar teu coração,
Fiz empenho mas não pude." (Évora) [3]

Estava de resto, arreigada a superstição de que era bom colher certas flores e plantas medicinais na Quinta-Feira de Ascensão, antes do nascer do Sol. [2] Existia igualmente a crença de que os ovos postos pelas galinhas, entre o meio-dia e a uma hora da Quinta-Feira de Ascensão, nunca apodrecem e têm a virtude de curar doenças e suprimir dores. [2] Acreditava-se também que o queijo feito na Quinta-Feira de Ascensão era medicamento eficaz contra as sezões. [1] Existia ainda o convencimento de que o vento que na Quinta-feira de Ascensão, soprasse à uma hora da tarde, era o que sopraria durante todo o ano. Existia finalmente a convicção de que era bom comer carne na Quinta-Feira de Ascensão, de acordo com adágio:

“Em Quinta-Feira de Ascensão,
Quem não come carne
Não tem coração;
Ou de ave de pena,
Ou de rês pequena.” [2]

A origem festiva do Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-Feira da Ascensão, é muito anterior à era cristã. Na verdade, este dia é um sucessor claro de rituais pagãos, praticados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais de cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza. Neles se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, bem como a esperança nas novas colheitas. O Dia da Espiga era assim como que uma bênção aos primeiros frutos e marcava o início da época das colheitas.
A Igreja, à semelhança do que fez com outras ancestrais festas pagãs, cristianizou o Dia da Espiga. A data atravessa assim os tempos com uma dupla significação:
- como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias;
- como Dia da Espiga, traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.

Bilhete-postal ilustrado do 2º quartel do século XIX, edição A.V.L. (Lisboa),
reproduzindo aguarela de Alfredo Moraes (1872-1971).

Actualmente poucas são as pessoas que ainda se deslocam ao campo na Quinta-Feira da Ascensão para apanhar o ramo da espiga. Mas aquelas que vão, têm dificuldade em constituir o ramo, sobretudo pela dificuldade em recolher pés de cereal, raros a partir do momento em que os nossos agricultores receberam dinheiro de Bruxelas para deixar de cultivar. Apesar de tudo, há quem consiga cumprir a tradição. E há também quem faça negócio com a tradição, colhendo e vendendo ramos de espiga na cidade. Apesar do mercantilismo deste biscate em tempo de crise, é um contributo para a preservação da tradição. Actualmente, também são poucas as pessoas que se deslocam à Igreja para participar nos deveres religiosos inerentes à data. Todavia, houve tempos em que a data, das mais festivas do ano, era repleta de cerimónias sagradas e profanas, que chegavam a implicar a paralisação laboral. Existia mesmo a crença que em Quinta-Feira de Ascensão, os passarinhos não vão aos ninhos. [1] Daí também o adágio: “No Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos”, o que está de acordo com o cancioneiro popular:

“Se os passarinhos soubessem
Quando é dia d'Ascensão,
Nem subiam ao seu ninho,
Nem punham o pé no chão.” [5]

Existia igualmente a crença de que na Quinta-Feira de Ascensão, os pássaros não iam ao ninho desde o meio-dia até à uma hora, que era o período de orações nas festas da Igreja. Consta, que antigamente, finalizadas essas orações, era costume soltarem-se passarinhos do coro e das tribunas, e espargirem-se flores desfolhadas sobre os fiéis. [6]
Por vezes chove na Quinta-feira de Ascensão, o que originou a convicção de que em chovendo na tarde de Quinta-Feira de Ascensão, as nozes apodrecem e os frutos sairão pecos. [6] O adagiário, regista, de resto a crença de que “Água d'Ascensão, tira o vinho e dá o pão”, assim como “Chuvinha da Ascensão, dá palhinha e dá pão” e também “Quinta-feira da Ascensão, coalha a amêndoa e o pinhão”.

BIBLIOGRAFIA
[1] - CHAVES, Luís. Páginas Folclóricas - I : A Canção do Trabalho. Separata do vol. XXVI da "Revista Lusitana". Imprensa Portuguesa. Porto, 1927.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, "Superstições Populares”, “O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Leite. Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983.
[4] – SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[5] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
[6] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Publicado inicialmente a 1 de Junho de 2015

domingo, 25 de maio de 2025

Roda: Amor - O ramo mora no aro


Roda (1965). José Manuel Espiga Pinto. Acrílico sobre Madeira. 122 x 180 x 5 cm.
Fotografia  de Leonardo Espiga Pinto, obtida no de urso da exposição “Espiga Pinto –
- Memórias do Alentejo”, promovida pela Galeria Howard’s Folly e o Legado de Espiga 
Pinto, no espaço daquela Galeria em Estremoz, por ocasião da celebração do 85º aniversário
 do nascimento do artista. A roda é um dos principais elementos recorrentes da iconografia
de Espiga Pinto, transversal a todas as fases da sua obra.

LER AINDA


A roda será porventura o maior invento de todos os tempos. O homem terá começado por arrastar pedras e árvores sobre troncos de árvores, para mais tarde o começar a fazer sobre estrados assentes em rolos de madeira. O transporte de materiais tornou-se então mais fácil. Hoje sabemos que o atrito de rolamento é inferior ao atrito de escorregamento, mas em termos práticos, isso foi descoberto há milhares de anos.
Depois dessa primeira descoberta, os rolos terão sofrido nas extremidades, a aplicação de discos toscos, percursores das rodas, servindo os rolos de eixos. Quer os eixos quer as rodas sofriam movimento de rotação e movimento de translação. Este último era um inconveniente, por que o eixo se deslocava ao longo do estrado, obrigando a ajustes sucessivos. Mais tarde, o eixo é preso ao estrado e as rodas passam a girar livremente, exteriormente ao estrado. Nos modelos primitivos, as rodas eram baixas e os estrados próximos do chão. A necessidade de elevar o estrado em relação ao solo, levou ao alteamento das rodas, que eram maciças e grossas devido ao peso dos materiais transportados. E assim o foram durante séculos, até que para se tornarem mais leves foram abertos nas rodas, dois óculos arredondados. Mais tarde, a roda maciça viria a ser aberta em partes mais largas, o que está na origem da roda radiada, na qual raios de madeira unem um aro periférico ao centro, apoiado na cabeça saliente do eixo. Mais tarde, o aro de madeira periférico viria a ser protegido por um aro de ferro. A roda transmite de maneira amplificada para o eixo de rotação, qualquer força aplicada no aro periférico, reduzindo a transmissão da velocidade. Analogamente, a roda transmite de maneira reduzida para o aro periférico, qualquer força aplicada no seu eixo de rotação, amplificando a transmissão da velocidade.
Os carros de tracção animal alentejanos, puxados a muares ou a cavalos, dos mais leves e andarilhos do nosso país, movem-se facilmente com rodas radiadas com diâmetros de 1,80 m a 1, 50 m.
Na literatura oral são múltiplas as referências, à roda. São assim conhecidas as seguintes adivinhas, cuja solução é fornecida no final, entre parêntesis:
- Qual é coisa, qual é ela, que é redonda como o Sol, tem mais raios do que uma trovoada e anda sempre aos pares? (A roda radiada);
- Qual é coisa, qual é ela, que a roda disse para o carro? (Vamos dar uma voltinha.);
- Qual é a roda, qual é ela que quando um carro está a fazer a curva para a direita, roda menos? (A roda suplente).
São igualmente conhecidos os seguintes provérbios sobre rodas:
- Uma roda toca a outra.
- A vida é uma roda, tanto anda como desanda.
- A roda da fortuna tanto anda como desanda.
- A roda da fortuna anda mais que a do moinho.
- A roda da fortuna nunca é uma.
- Cada um dança, conforme a roda onde está.
- A pior roda é a que mais chia.
- Rodas e advogados precisam de ser untados.
Há de resto, expressões populares portuguesas, em que figura o termo “roda”:
- Roda! – Deixa-me!;
- À roda - À volta;
- Roda da fortuna – Frase que significa que a fortuna não pára;
- Roda dos Expostos – Espécie de armário giratório em que se expunham as crianças que se queriam enjeitar;
- Roda do tempo – A sucessão dos anos da vida.
Termino com duas quadras populares recolhidas por António Tomaz Pires (1850-1913) e coligidas nos seus ”Cantos Populares Portugueses” (1902-1910), onde aparece o termo “roda”:

“Já corri o mar à roda
C’uma fita larga e estreita,
Para dar um nó redondo
Nessa cintura bem feita.”

“Senhores que estão à roda,
Vossês hão de perdoar,
Que esta menina picou-me
E eu quero-me despicar.”

(Publicado inicialmente em 25 de Fevereiro de 2010)

quinta-feira, 13 de março de 2025

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas (2ª edição)

 

Tipo 3 – Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Tarro, bolota, jarra, balde,
 bolota, suporte de copo, sapato com lira, sapato com cruz.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.

Ganchos de meia
Independentemente da sua morfologia e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, têm um sulco ou um buraco, por onde passa o fio, que do novelo é redireccionado para as agulhas. É fixado na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí é seguro através dum alfinete-de-ama ou cozido com linha, podendo eventualmente o gancho de meia incluir um pedaço de arame dobrado em U (gancho) para pregar no vestuário.
No decurso do trabalho, o fio que passa pelo gancho de meia, posiciona-se sempre entre o corpo e o trabalho, enrolado no dedo médio e sendo a cada malha, movimentado com o polegar esquerdo.
Tanto os ganchos de meia com sulco como os ganchos de meia com orifício, podem-se desprender da roupa onde estão fixados, sempre que se interromper a execução do trabalho. Todavia, só os ganchos de meia com sulco se podem soltar da peça em execução, pois os ganchos de meia com orifício têm o fio introduzido nele desde o início do trabalho e só o libertam quando este é cortado.

Tipologias dos ganchos de meia
Na minha colecção identifiquei as seguintes tipologias de ganchos de meia:
TIPO 1 – Com um orifício para passar o fio do novelo e um gancho de arame para prender no vestuário;
TIPO 2 - Com um orifício para passar o fio do novelo e 2 orifícios para passar o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 3 – Com um sulco para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 4 – Com dois sulcos para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 5 – Com uma argola por onde pode passar simultaneamente, o fio do novelo e o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 6 – Com 3 argolas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;
TIPO 7 – Com várias aberturas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;

Meias de 5 agulhas noutros tempos
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento por desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.

Meias de 5 agulhas na actualidade
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Publicado inicialmente em 2 de Junho de 2023

Tipo 4 – Coração.

Tipo 1 – Sapato, bolota.

Tipo 2 – Sapato (vista superior e vista lateral).

Tipo 5 – Gral, panela de ferro, bolota, bolota, badalo.

Tipo 6 – Par de sapatos, par de bolotas, par de bolotas.

Tipo 7 – Cadeirinha de prometida [1]


[1] Símbolo usado para “selar” o contracto pré-matrimonial no Alentejo de antanho. Através dele, o moço oferecia à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passaria a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Depois disso poderia vir a adquirir outra funcionalidade, como a de gancho de meia.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Maioral e ajuda a comer


  Maioral e ajuda a comer Sabina Santos (1921-2005).


   Maioral e ajuda a comer Sabina Santos (1921-2005).

A HIERARQUIA NA PASTORÍCIA
No Alentejo de antanho, as relações de produção estavam fortemente hierarquizadas. De acordo com as suas funções, os pastores recebiam diferentes designações: “Rabadão” era o pastor chefe, a cargo de quem estavam a fiscalização e inspecção de todos os rebanhos de gado lanígero do mesmo proprietário. Um grande lavrador, podia possuir alguns milhares de cabeças, espalhadas por numerosos rebanhos, mas tinha ao seu serviço um único rabadão. “Maioral” era o primeiro pastor de cada rebanho. Havia tantos maiorais quantos os rebanhos. “Ajuda” era o segundo pastor do rebanho.

OS PASTORES NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
A pastorícia, actividade tradicional com peso na economia do Alentejo d’outrora, está bem gravada na nossa memória colectiva, pelo que faz parte do imaginário popular e está largamente representada na barrística popular estremocense. De facto, são conhecidas as seguintes figuras: pastor (simples), maioral e ajuda, pastor em pé com dois borregos em frente, pastor com o borrego às costas, pastor sentado a fazer as migas, pastor sentado a comer as migas, pastor deitado a fazer as migas, pastor de harmónio (em pé), pastor de harmónio (sentado), pastor ofertante em pé (com borrego), pastor ofertante em pé (com 1 pomba), pastor ofertante em pé (com 2 pombas), pastor ofertante em pé (com 3 pombas), pastor ofertante ajoelhado (com borrego à frente) e pastor ofertante ajoelhado (com chapéu à frente). Não são conhecidas representações de pastores, em peças do tipo “assobio” ou “gancho de meia”.
A composição aqui mostrada sob múltiplos ângulos, é uma representação de “Maioral e ajuda”, foi adquirida no Mercado das Velharias, em Estremoz, no passado sábado, dia 16 de Abril e é da autoria da celebrada barrista Sabina Santos (1921-2005).

UMA QUESTÃO DE TERMINOLOGIA
Sabina Santos trabalhava para a extinta Olaria Alfacinha, cuja Tabela de Preços dos Bonecos de Estremoz, datada de 1976, designa esta composição por “Pastores a merendar”. Trata-se a nosso ver de uma designação aceitável, pois são dois os pastores que estão a comer, seja ou não a merendar. Todavia, aquela designação não traduz a existência de uma hierarquia entre eles.
Posteriormente a Sabina Santos, outros barristas passaram a designar esta composição por “Pastor e ajuda a comer”, designação igualmente aceitável, uma vez que revela a presença de uma hierarquia entre eles. Contudo, a nosso ver, esta designação tem o inconveniente de chamar a um deles pastor, como se o outro não o fosse também.
A nosso ver, a designação mais adequada para esta composição é “Maioral e ajuda a comer”, uma vez que dela está ausente qualquer ambiguidade, por mostrar a existência de uma hierarquia entre os pastores.

MEMÓRIA DESCRITIVA
Passemos de imediato à descrição da peça em estudo. Trata-se de uma peça constituída por três figuras: dois pastores de ovelhas (o maioral e o ajuda) e o cão do rebanho, já que “Não há pastor sem rebanho” e “Perdido é o gado que não tem pastor nem cão”. Qualquer dos pastores usa na cabeça, o típico chapéu aguadeiro, típico do Alentejo e assenta o joelho direito na Terra-Mãe, como se estivessem a venerar um tarro destapado, repleto de olorosas migas, do qual o maioral se está a servir com uma avantajada colher que agarra com a mão direita, enquanto o ajuda empunha outra e se prepara para igual procedimento. Qualquer deles tem a mão esquerda apoiada no joelho homólogo. Para além disso, o ajuda segura um pão.
O facto de estarem a comer do tarro é revelador de que as migas não foram confeccionadas no local, mas no monte do lavrador, onde o ajuda as foi buscar, uma vez que “Abala pastor com as espaldas ao sol”.
No que respeita ao traje, o ajuda usa botas de cabedal atacoadas, calças de ganga azul e pelico de pele de borrego ou ovelha. Este é como que um colete fechado, abotoado à frente por três pares de botões pretos e que substitui o casaco. Por debaixo do pelico, uma camisa creme fechada em cima por um par de botões vermelhos e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. Quanto ao maioral traz botas de cabedal atacoadas e pintadas de preto. Por cima das calças usa safões. Estes são uma peça de vestuário confeccionada em pele de borrego ou ovelha, que se ata à cinta e se ajusta às pernas por intermédio de cinco atilhos com um botão amarelo na ponta, o qual entra no caseado dos safões. Estes têm a função de aquecer as pernas no Inverno, bem como proteger as calças. O maioral usa ainda uma samarra feita de pele de borrego ou ovelha. Esta é como que uma casaca fechada, abotoada à frente por três pares de botões amarelos e com um rabo que dá até à curvatura das pernas. Por debaixo da samarra, uma camisa cor de laranja, fechada em cima por um par de botões azuis e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. O maioral apresenta ainda sobre os ombros, um lenço às listas coloridas, como se fosse uma estola assente no pescoço e com as pontas pendentes para a frente.
Dos agasalhos de pele de borrego usados pelos pastores, existem algumas referências na literatura oral, a começar pelo adagiário que proclama que “0 agasalho e a balsa não pesam ao pastor”, enquanto que o cancioneiro popular refere que:

“Fui fazer uma viagem,
De Vendas Novas aos Pegões,
Para comprar umas peles,
Para fazer uns ceifões.” [4]

E ainda:

Tod’a vida gardê gado,
E sempre fui ganadêro,
Uso cêfoes e cajado,
E pelico e caldêra.” [4]

No chão, de um dos lados do tarro, uma cacheira que tal como o cajado e o gravato, é como que o bordão do peregrino, pois auxilia na marcha. A ela se arrimam os pastores quando estão parados, a ver se aliviam as pernas. Serve igualmente de arma de defesa contra ladrões e animais selvagens. É também uma terrível arma usada em casos de desavenças, como por vezes acontecia nas feiras de gado. Mas a cacheira é, sobretudo, a extensão do braço do pastor e serve para conduzir o gado, sendo por vezes lançada como arma de arremesso em direcção a ovelhas tresmalhadas. Nas cacheiras, cajados e gravatos, os pastores gravam a navalha, marcas indicativas do número de cabeças de gado que têm à sua guarda. Estas variam de pastor para pastor. Um tipo de marcação possível é a seguinte: redondela (100), triângulo (50), cruz (20), mossa (10), ponto (1).
Do outro lado do tarro, um corpulento, possante e ágil rafeiro alentejano, guarda, acompanhante, defensor e protector do rebanho, de orelhas arrebitadas, tem a língua de fora da boca, como quem saliva, impaciente pelo seu quinhão de migas.
O chão onde assentam todas as figuras é verde, pintalgado de branco, amarelo e cor de laranja, numa alegoria a um chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres.

HIERARQUIA DA PASTORÍCIA TRADUZIDA NA BARRÍSTICA
Uma análise pormenorizada da composição, revela o modo como a barrista sublinhou a existência duma hierarquia entre os dois pastores, a qual tem a ver com aquilo que eles trajam e que é revelador do melhor salário do maioral, quando comparado com o do ajuda.
Na verdade, o maioral está melhor protegido do frio que o ajuda, pois usa safões que lhe protegem as pernas e samarra que lhe protege o peito, as costas e o traseiro. Em contrapartida, o ajuda não usa safões que lhe protejam as pernas do frio e o pelico, protege-lhe apenas o peito e as costas, que não o traseiro.
Por outro lado, o maioral usa botas pretas atacoadas, supostamente melhores que as botas atacoadas do ajuda, confeccionadas na cor natural do cabedal.
O maioral, usa, de resto, um lenço às listas coloridas, qual estola de dignatário pastoril, o que o distingue sobremaneira do ajuda.

NOTA FINAL
Antigamente no Alentejo, a profissão de pastor era reservada a homens robustos que conseguissem resistir às noites de Inverno dormidas ao relento e ao terrível Sol alentejano que queima como fogo e que por vezes há que aguentar sem uma única sombra a servir de abrigo. Em geral, a profissão de pastor era como que hereditária, transitando de pais para filhos. Era profissão para toda a vida, como que uma sina que, por vezes, o amor de uma mulher conseguia interromper:

“Já não há quem queira dar
Uma filha a um pastor.
É que casar, hoje em dia,
É só bom p’ró lavrador.” [4]

“Toda a vida guardei gado,
Toda a vida fui pastor,
Deixei botins e cajado
Por via do meu amor.” [4]

Publicado inicialmente em 23 de Abril de 2011

BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CONDE DE FICALHO. O elemento árabe na linguagem dos pastores alentejanos. Revista “A Tradição”. Serpa. Série I - Ano I (1899) – nºs 6 (Junho), 7 (Julho), 8 (Agosto), 9 (Setembro ) e 10 (Outubro).
[3] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[4] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[5] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Da arte à poesia pastoril


Pastor de Évora. Aguarela de ALFREDO MORAES (1872-1971)


O pastor alentejano ocupa o tempo que lhe sobra da guarda do rebanho, em gravar desenhos sobre madeira, cortiça ou chifre.
Como principal instrumento de trabalho, serve-se da navalha, mas utiliza também, por vezes, o ponteiro e a legra que transporta sempre consigo. A legra consta de uma folha de navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades, e é utilizada, especialmente, para escavar a concha das colheres. Com riscos esboça primeiro o trabalho a executar. Sobre o traçado abre então o desenho idealizado: ramos, bordados ou outros motivos.
Dentre os trabalhos executados podem citar-se os seguintes: De madeira: colheres, cassos, garfos, copeiras, garfeiras, molduras, tinteiros, pontões de arca, sovinos [i], agulheiros, chavões, etc. De cortiça: côxos, tarros, caixas de costura, saleiros, tropeços, etc. De chifre: polvorinhos, cornas, azeiteiros, copos, colheres, etc. "A Província do Alentejo é a lareira onde arde mais vivo, mais claro e mais alto, o fogo tradicional da arte popular portuguesa.”[ii]
“Não sabe uma letra o pastor destas terras, em erudição nunca ouviu falar, e é poesia pura a linguagem da sua alma, e é poesia pura o que sai das suas mãos.
E além de tudo mais uma qualidade tem a sua poesia. Não precisa dos livros para se imortalizar. Um raminho de buxo, um nada de cortiça, e, da inspiração fugidia, ficou alguma coisa nas nossas mãos.
Perdão! nas mãos da sua conversada que cada Domingo as estende para receber a colher rendada com que se promete casamento ou o tarro com que se deseja abastança, e se acha ao fim e ao cabo com um poema em que se fala de amor.”[iii]
Mas apesar de a arte pastoril ser poesia e poesia pura, na solidão da sua vida de nómada, o pastor é um poeta popular no sentido literal do termo, criando sobretudo décimas e quadras que regista no livro vivo da sua memória:

" Àlém ò pé do redil
Uma pedra me espera.
Sentado ali sem dormir,
Górdando o gado da fera."[iv]

Sim, por que lá diz o rifonário popular. “É ao mau pastor que o lobo dá louvor” e “Pastor descuidado, ao sol posto junta o gado” e ainda “A ovelha que não tem dono come-a o lobo”.
A quadra pode ser brejeira:

"Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu,
O Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu."[v]

Pode ser também o reflexo do grande isolamento em que vive o pastor, que lhe permite conhecer a natureza que o rodeia, muito em particular, o céu: 

"As árves que o mundo tem
Cubro-as c’o meu chapéu.
Diga-me cá por cantigas
Quantas ‘strelas há no céu?"[vi]

Por vezes a poesia encerra uma profunda crítica social:

"Sobe o rei no alto trono,
Desce o pastor ao val’ fundo;
Uns p’ra baixo, outros p’ra cima
Vai-se assim movendo o mundo."[vii]

Felizmente que através dos tempos tem havido estudiosos que têm procedido à recolha do rico Cancioneiro Popular. Registo entre outros os nomes de Tomás Pires, Luís Chaves, Azinhal Abelho, Manuel Joaquim Delgado, Augusto Pires de Lima, Vítor Santos, Fernando Lopes Graça, Michel Giacometti, a quem presto o tributo do meu reconhecimento por terem tido a clarividência da importância que constitui o registo escrito do Cancioneiro Popular, como forma de assegurar a perpetuidade do que tem de mais rico e genuíno a nossa memória colectiva.

[i] Furadores de abrir a capa do milho.
[ii] Virgílio Correia in Etnografia Artística, Renascença Portuguesa, Porto, 1916.
[iii] João Falcato in Elucidário do Alentejo, Coimbra Editora, Coimbra, 1953.
[iv] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[v] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vi] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vii] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.

Publicado inicialmente a 3 de Março de 2010

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A cadeirinha de "Prometida"


Troca de prendas entre "conversados".  Imagem recolhida on line.


Campos do Alentejo na primeira metade do século vinte. Um moço que num rasgo de olhar, vislumbra uma moça, na qual existe qualquer coisa que irreversivelmente o atrai e o fulmina. É tiro e queda. Passa a segui-la como um perdigueiro que segue a caça. Pisteiro, procura dirigir-lhe palavra. Mas manda a tradição que a moça, apesar de se sentir atraída por ele, lhe dê um ou mais cabaços (negas). Todavia, “Quem porfia sempre alcança” e um dia, os sentimentos do moço são retribuídos pela moça e o amor irrompe como um vulcão. Ela dá-lhe trela e ele recebe luz branca para lhe fazer a corte. Derretem-se um pelo outro, mas procuram encontrar-se em segredo, longe das bocas do mundo, para que a família dela não saiba antes do tempo próprio. E as coisas assim continuam até que um dia, deixam de ter medo que os outros saibam e passam à condição de “conversados”, encontrando-se às claras, na pausa dos trabalhos do campo, no regresso dele, junto à fonte ou na igreja, nos domingos e dias santos. É a época em que o moço oferece à moça, objectos utilitários de arte pastoril, finamente lavrados: dedeiras para a ceifa, rocas e fusos, ganchos de fazer meia ou caixas de costura, que ele próprio confecciona se da arte pastoril tem o jeito ou que encomenda a alguém, no caso de não o ter. Ela retribui com prendas finamente bordadas, tais como uma bolsa para o relógio, para a tabaqueira ou para as moedas. E na comunhão do amor perene, qualquer deles usa e ostenta com orgulho, as prendas que recebeu do outro e que “selam” a sua condição de “conversados”.
A instâncias da moça, com o apoio da mãe primeiro e do pai depois, os pais dão autorização para que os “conversados” falem à janela ou à porta de casa, seja ela na vila ou no monte. E as coisas assim vão prosseguindo até que o estado psicológico do par atinja o ponto de rebuçado. Nessa altura, o moço pede aos pais da moça que lha dêem em casamento. Estes, naturalmente, protagonistas activos ainda que ocultos, desta saga amorosa, concedem-lhe a graça solicitada. A moça passa então da condição de “conversada”, à condição de “prometida”. Só então o par recebe autorização para conversar dentro da casa dos pais da moça. E para “selar” o contracto pré-matrimonial, o moço oferece à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passará a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Esta a fórmula encontrada pela sábia identidade cultural alentejana, de dar a conhecer à comunidade que a moça já estava “prometida” e que em breve iria casar.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 7 de Janeiro de 2011

A cadeirinha de prometida. Símbolo do contrato
pré-matrimonial no Alentejo da primeira metade 
do séc. XX. Talhada em madeira numa única
peça (2,1x2,1x5,2 cm).

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Aclénia Pereira e um certo olhar…


Fig. 1 - Pastor de tarro e manta. Aclénia Pereira (1927-2012)

LER AINDA

Aclénia Pereira (1927-2012) é uma barrista de Estremoz cujo perfil biográfico tracei em 2018 [1] , o qual pode ser lido na hiperligação acima indicada.
Aclénia frequentou a Escola Industrial António Augusto Gonçalves entre 1940 e 1943. Aí foi aluna de Mestre Mariano da Conceição (1903-1959) na disciplina de “Oficina”, durante 3 anos lectivos consecutivos. Com ele aprendeu a modelar e a decorar Bonecos de Estremoz, podendo tal como Armando Alves (1935 - ), ser considerada discípula daquele Mestre. É de sua autoria o “Pastor de tarro e manta” da Fig. 1, que ostenta na base duas das suas bem conhecidas marcas de autor. (Fig. 2). A data 22-5-50 escrita verticalmente na base com lápis de grafite, é por mim interpretada como sendo a data de aquisição registada por quem adquiriu a figura à barrista, que teria então 23 anos. Significa isto que ao fim de 7 anos de ter deixado de ser aluna de mestre Mariano da Conceição já produzia figuras com marcas individuais diferenciadas das do Mestre. Com efeito, à semelhança de Ana das Peles (1869-1945) na sua primeira fase de produção, a representação do olhar utilizada por Aclénia é feita através da menina do olho e da sobrancelha. Já Mestre Mariano da Conceição, utilizava a menina do olho, a sobrancelha e a pestana na representação do olhar. Esta, enquanto marca identitária dum determinado barrista, integra conjuntamente com outras marcas identitárias, aquilo que se pode designar como o estilo desse barrista. Por outras palavras: o estilo pode ser definido como o conjunto de marcas identitárias de cada barrista.
Como diferentes barristas têm, naturalmente, algumas marcas identitárias distintas das de outros barristas, resulta daí que cada um deles tem o seu próprio estilo, o que não é impeditivo de qualquer deles, no decurso da produção, seguir os cânones subjacentes à Estética do Boneco de Estremoz, a qual tem a ver com a modelação e com a decoração, mas não com a representação do olhar, que ao longo da História do Boneco de Estremoz é diversificada e plural.
É inteiramente desprovido de sentido, considerar, como alguns o fazem, que as figuras que não apresentam “duas riscas por cima dos olhos”, não obedecem à Estética do Boneco de Estremoz. Além de ser uma afirmação inteiramente desprovida de sentido, não fica bem fazer essa afirmação, porque não é uma afirmação séria, visto que não corresponde à realidade histórica.
Por outro lado, produzir intencionalmente uma tal afirmação, corresponde na prática a pretender valorizar o trabalho daqueles que seguem uma dada forma de representação do olhar, em detrimento de outros, o que considero lamentável porque preconceituoso.


Fig. 2 - Carimbo “Tanagra”[2] dentro de um rectângulo  de
3 cm x 1 cm, seguido de carimbo “ESTREMOZ / PORTUGAL”,
dentro de um  rectângulo de 2,7 cm x 1 cm. 



[1] MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018. 

[2] “Tanagra” é o pseudónimo de Aclénia Pereira como barrista de Estremoz.