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terça-feira, 18 de março de 2025

Liturgia popular do pão


A amassadura do pão (Estremoz).
Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988).

Noutros tempos, nos campos do Alentejo, bem como nas suas vilas e aldeias, a amassadura e a cozedura do pão eram acompanhados de um certo ritual de liturgia popular. Assim, ao deitar-se o sal na água da amassadura, dizia-se:

“Em louvor de S. Gonçalo,
Que não saia ensolso nem salgado.” [5]

Antes de começar a amassar, quem o ia fazer, benzia-se e depois de fazer uma cruz na farinha, dizia:

"Senhor, eu vou amassar;
Nossa Senhora me queira ajudar,
Que me dê forças e valor
Para este pão bom ficar.” [4]

Ao acabar de amassar, o amassador ou a amassadeira, gravava na massa, com o dedo indicador direito, o sinal da cruz e sobre ele, cinco buracos, um ao centro e os quatro restantes, em cruz, os quais simbolizavam as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Após isto, benzia-se e dizia:

“Deus te ponha a virtude,
Que eu fiz o que pude.” [3]

Ao acabar de amassar, também podia ser feita uma cruz na massa, ao mesmo tempo que era dito:

Deus te finte,
Deus te acrescente,
E as almas do Céu para sempre.
A Virgem te ponha a mão
Que cresça mais um pão.” [4]

Terminada a amassadura, cobria-se a masseira ou o alguidar com um pano, a fim de a massa levedar e levantar. Dizia-se então:

“Pelo sinal da Santa Cruz...:
S. Mamede te levede,
S. Vicente te acrescente,
S. João te faça bom pão,
A Virgem Nossa Senhora
Te deite a santa bênção.” [4]

Em alternativa, ao acabar de amassar, podia-se dizer:

“Em louvor de S. Vicente,
Deus te acrescente;
Eu fiz o que pude,
Nosso Senhor lhe ponha a virtude.
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo
Ámen.” [4]

Outra oração popular possível, era:

“Em louvor de Nossa Senhora,
Deus te acrescente,
E as almas do Céu para sempre;
O diabo cego seja
Para que te não veja.” [4]

Terminada a amassadura, a massa ficava na masseira ou no alguidar até levedar. Para tal, com o auxílio da mão direita, gravavam-se três cruzes na massa e ao meter-se o pão no forno, dizia-se:

“O Senhor te acrescente
Como o fole da semente,
Dentro do forno e fora do forno
Como acrescentou o mundo todo.
Nós a comer, e tu a crescer,
Todos seremos cheios
Com bem pouco comer.” [3]

Ao meter-se o pão no forno, fazia-se uma cruz com a pá, dizendo:

“Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo,
Que cresças no forno e fora do forno,
E os meus inimigos, que comam um corno”. [2]

De resto, ao meter o pão no forno, podia-se fazer uma cruz à frente da porta do mesmo, dizendo:

"Nosso Senhor te acrescente,
As almas do Céu para sempre,
Venha a dona e fique contente.
O diabo arrebente,
O Senhor S. João
Que faça bom pão,
A gente a comer,
E tu a crescer,
Tudo Deus pode fazer.
Queira Deus que cresças tanto no forno
Como mentiras há na... (nome da terra).” [4]

Ao meter o pão no forno ou ao acabar de amassar, podia ser dito também:

“Deus te acrescente
E as almas do Céu para sempre;
O Diabo que arrebente,
A dona que fique contente;
Que cresças tanto
Como mentiras há no povo.” [4]

Existia a crença que o primeiro pão cozido num forno, livra das maleitas e por isso era dado a quem o pedia. [1]

BIBLIOGRAFIA
[1] - CHAVES, Luís. Páginas Folclóricas I – A Canção do Trabalho. Separata do vol. XXVI da “Revistas Lusitana”. Imprensa Portuguesa. Porto, 1927.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim. A Etnografia e o Folclore do Baixo Alentejo. Separata da Revista Ocidente. Lisboa, 1956
[4] – POMBINHO JÚNIOR, A.P. Orações Populares de Portel. Edições Colibri-Câmara Municipal de Portel. Lisboa, 2001.
[5] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Hernâni Matos
Publicado em 1 de Julho de 2011

quinta-feira, 13 de março de 2025

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas (2ª edição)

 

Tipo 3 – Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Tarro, bolota, jarra, balde,
 bolota, suporte de copo, sapato com lira, sapato com cruz.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.

Ganchos de meia
Independentemente da sua morfologia e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, têm um sulco ou um buraco, por onde passa o fio, que do novelo é redireccionado para as agulhas. É fixado na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí é seguro através dum alfinete-de-ama ou cozido com linha, podendo eventualmente o gancho de meia incluir um pedaço de arame dobrado em U (gancho) para pregar no vestuário.
No decurso do trabalho, o fio que passa pelo gancho de meia, posiciona-se sempre entre o corpo e o trabalho, enrolado no dedo médio e sendo a cada malha, movimentado com o polegar esquerdo.
Tanto os ganchos de meia com sulco como os ganchos de meia com orifício, podem-se desprender da roupa onde estão fixados, sempre que se interromper a execução do trabalho. Todavia, só os ganchos de meia com sulco se podem soltar da peça em execução, pois os ganchos de meia com orifício têm o fio introduzido nele desde o início do trabalho e só o libertam quando este é cortado.

Tipologias dos ganchos de meia
Na minha colecção identifiquei as seguintes tipologias de ganchos de meia:
TIPO 1 – Com um orifício para passar o fio do novelo e um gancho de arame para prender no vestuário;
TIPO 2 - Com um orifício para passar o fio do novelo e 2 orifícios para passar o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 3 – Com um sulco para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 4 – Com dois sulcos para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 5 – Com uma argola por onde pode passar simultaneamente, o fio do novelo e o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 6 – Com 3 argolas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;
TIPO 7 – Com várias aberturas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;

Meias de 5 agulhas noutros tempos
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento por desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.

Meias de 5 agulhas na actualidade
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Publicado inicialmente em 2 de Junho de 2023

Tipo 4 – Coração.

Tipo 1 – Sapato, bolota.

Tipo 2 – Sapato (vista superior e vista lateral).

Tipo 5 – Gral, panela de ferro, bolota, bolota, badalo.

Tipo 6 – Par de sapatos, par de bolotas, par de bolotas.

Tipo 7 – Cadeirinha de prometida [1]


[1] Símbolo usado para “selar” o contracto pré-matrimonial no Alentejo de antanho. Através dele, o moço oferecia à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passaria a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Depois disso poderia vir a adquirir outra funcionalidade, como a de gancho de meia.

terça-feira, 11 de março de 2025

Quem não tem que fazer, faz colheres




Se é certo que é isso que diz o rifão, o que não é menos certo é que quem o fazia, não o fazia de qualquer maneira. Começava logo na escolha da madeira, sendo sabido que no Alentejo, as madeiras que o pastor tinha à sua disposição, eram as fornecidas pelas árvores ou arbustos existentes na região: azinheira, buxo, carvalho, castanho, cerejeira, cipreste, esteva, figueira, laranjeira, nespereira, nogueira, oliveira, piorno, sabugo, sobro, vimeiro.
O pastor escolhia um pau de qualidade, sem nós nem veios que viessem a fender depois da obra acabada. Naturalmente que o tamanho e o calibre do pau tinham a ver com aquilo que se ia fazer.
Um pastor adestrado a fazer colheres, começava por escolher um pau que evidenciasse o característico perfil em S, o que tinha a ver com as características ergonómicas que a colher devia reunir. Estas, podem-se resumir no seguinte: necessidade e conveniência de a concha fazer um ângulo com o cabo da colher, que na outra extremidade deve fazer um ângulo em sentido inverso. O cabo deve, de resto, ser facilmente adaptável à mão do utilizador.
É sabido que “A necessidade é mestra de engenho.” Daí que o pastor tenha empiricamente adquirido competências que se traduziram na capacidade de conceber colheres (e outros objectos) que fossem ergonómicos, isto é com qualidade de adaptação ao seu utilizador e à tarefa que ele tinha de realizar. Daí que a colher tivesse de ser usável com eficácia, eficiência e satisfação. Com eficácia, porque distintos utilizadores eram capazes de se servir delas com bons resultados. Com eficiência, já que a sua utilização exigia pouco tempo e esforço físico. Com satisfação, tendo em conta a facilidade de utilização com parcos recursos de tempo e de esforço físico.
Os utensílios usados na manufactura da colher eram a navalha ou a faca, o compasso, o ponteiro e a legra.
Com o ponteiro ou o lápis era esboçada a geometria geral da colher, sendo o corte da madeira efectuado com a navalha, ao passo que o côvado da colher era escavado com a legra, utensílio constituído por uma navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades.
As colheres que eram para ser transportadas pelo utilizador tinham o cabo mais curto, ao passo que aquelas que eram para ser usadas em casa, podiam ter um cabo maior.
Da máxima relevância era a concha que tinha de ter uma capacidade adequada à sua função. E não podemos esquecer que nas herdades, muitas vezes se comia dum recipiente comum – o barranhão. Isto implicava que a colher usada tivesse a maior concha possível, tendo como única limitação, o caber na boca de quem a usava. Assim se conseguia numa única colherada, levar a maior quantidade possível de comida à boca. O que era importante em tempos de miséria e de fome.
Depois de por corte do pau ter sido conseguida a forma geral da colher, esta estava apta a ser decorada. Para tal e também com o auxílio do ponteiro ou do lápis, esboçava-se o desenho a executar, gravado ou escavado. Os motivos eram os mais diversos: ramagens, folhas, flores, animais, estrelas, cruzes, motivos geométricos como o círculo, o triângulo ou o quadrado, assim como rosetas, arabescos, cordas, zig zags, signo saimão, imagens religiosas, etc. O traçado perfeito, rigoroso e absolutamente simétrico de rosetas, de estrelas e do signo saimão não dispensava o uso do compasso.
Os motivos usados na decoração tinham não só a ver com o imaginário do criador, bem como com as simbologias que lhe estavam subjacentes, na perspectiva também do utilizador da colher ou atendendo a quem ela podia ser oferecida: à conversada, à esposa ou o que não era raro, ao patrão.
Em geral, apenas era decorado o cabo da colher, o qual além de poder ser gravado ou escavado, podia ser recortado nos bordos e/ou no interior. O cabo da colher podia mesmo apresentar uma ou mais partes móveis, tais como pequenos anéis móveis ao longo duma haste longitudinal fazendo parte integrante do cabo ou esferas móveis encerradas no próprio cabo. Naturalmente que esta requintada e engenhosa decoração com recurso a partes móveis era exclusiva de colheres que se ofereciam como presente a alguém pelo qual se nutria estima ou amor ou, perante o qual se estava numa posição subalterna. Por vezes, nas costas do cabo da colher, eram gravadas as iniciais de quem a tinha feito ou a data em que tinha sido acabada. 
Há colheres que pela complexidade da sua concepção e pelo minucioso rendilhado da sua decoração, são não só jóias de beleza ímpar dentro da arte pastoril, como também autênticos monumentos erigidos em memória dos seus criadores.
A diversidade de solicitações de utilização da colher está na génese de diversas tipologias, que sistematizámos assim:
- Colher de uso corrente
- Colher de porqueiro
- Colher para prova de comida
- Colher para prova de vinhos
À excepção da colher de porqueiro, todas as colheres eram feitas de um único pau, não havendo nunca colagem de componentes.
Vejamos alguns exemplares dos diferentes tipos de colheres:

COLHER DE USO CORRENTE

4,5 x 2,5 x 24,5 cm. Em madeira, com forma antropomórfica, que é uma figura feminina. A postura hierática faz lembrar uma divindade egípcia. A argola superior destinada a prender num gancho ou num prego, faz lembrar o resplendor dum santo e confere imediatamente um espírito de santidade ou de pureza à imagem da mulher.
Curiosa a representação arbustiva que vai dos genitais aos seios. O ventre da mulher é como se fosse um vaso com ranhura, a partir do qual desabrocham ramos que florescem nos seios. Parece que a escultura quer dizer que o ventre da mulher é o vaso de onde nasce a vida e que os seios são as flores da mulher.
Madeira transformada em poesia pelas mãos hábeis dum bordador de solidões que doem. Daí o rifão: "Quem não tem que fazer, faz colheres."

COLHER DE PORQUEIRO 

[5 x 3 x 13,5 cm (fechada) e 5 x 3 x 19,5 m aberta)]. Em madeira, constituída por duas metades articuladas em torno de um eixo que é um simples prego, aparado. Numa das metades, a que incorpora a concha da colher, a mesma está ligada a uma haste que encaixa nas duas hastes da outra metade, que compreende a tampa da colher. Quando esta se encontra aberta, a tampa funciona como cabo. Porém, quando se fecha, passa a exercer a sua função.
A metade da concha está decorada no bordo superior da haste com um duplo zig zag. Quanto à metade da tampa está decorada com motivos florais nas duas faces e com zig zag simples, quer na parte superior, quer na parte inferior das duas hastes que a suportam.
Fechada, a colher era transportada no chapéu do utilizador, com a tampa encaixada entre a fita e o chapéu.
Prática, funcional e ergonómica.

COLHER PARA PROVA DE COMIDA

19,5 x 1 x 8,5 cm. Em madeira. Constituída por duas conchas ligadas através duma haste com um rego longitudinal e com um cabo perpendicular à haste, por onde era pegada por quem a utilizava.
A concepção e utilização de uma colher com esta tipologia, remonta à época em que havia o receio de contágio por tuberculose. Deste modo, quem cozinhava a comida dos ganhões, recolhia a comida a provar com uma das conchas e inclinando a colher, fazia-a escorrer através do rego para a outra concha, donde era levada à boca para provar.
A concha que era levada à boca nunca entrava em contacto com a comida no recipiente onde esta estava a ser confeccionada. Assim se procurava evitar o contágio e com ele mortes subsequentes.
Modernamente, a colher para prova de comida foi tomada como insígnia das confrarias gastronómicas, nomeadamente da do Alentejo.
O cabo do exemplar da imagem tem a forma de um coração que encerra no seu interior, uma ave indeterminada, mas que é um ser que voa, que é capaz de se libertar da Terra e subir ao Céu. O coração é encimado por um malmequer. Também a haste que liga as duas conchas está decorada de cada lado do rego, com um malmequer, com uma folha de cada lado. Simbolicamente, através da colher são formulados ao seu utilizador, os votos de liberdade (ave), amor (coração) e dinheiro (malmequer).

COLHER PARA PROVA DE VINHOS

Em madeira, finamente bordada na zona em que pode ser segura, opondo o polegar ao indicador e ao médio. Perfeita forma de coração. Pelas suas dimensões (5 x 0,9 x 6,8 cm) podia ser transportada sem incómodo algum, no bolso do relógio, quer do colete, quer das calças.
De salientar que a prova organoléptica dum vinho é feita através da visão, olfacto e paladar, recorrendo ao aspecto, nariz e boca.
Pelo aspecto conseguimos apreciar o brilho, a tonalidade e intensidade da cor e a limpidez.
Pelo olfacto e recorrendo á nossa memória olfactiva poderemos identificar aromas (frutado, floral, tostado, etc.).
No exame através do paladar, ingere-se uma pequena porção de vinho, fazendo-o percorrer todo o interior da boca antes de o cuspir ou engolir.
Tiram-se então conclusões acerca do corpo do vinho, da acidez, da doçura ou secura, do amargor e da adstringência. Quanto mais tempo o sabor permanecer na boca, maior será a qualidade do vinho.

Publicado inicialmente em 17 de Março de 2010

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Maioral e ajuda a comer


  Maioral e ajuda a comer Sabina Santos (1921-2005).


   Maioral e ajuda a comer Sabina Santos (1921-2005).

A HIERARQUIA NA PASTORÍCIA
No Alentejo de antanho, as relações de produção estavam fortemente hierarquizadas. De acordo com as suas funções, os pastores recebiam diferentes designações: “Rabadão” era o pastor chefe, a cargo de quem estavam a fiscalização e inspecção de todos os rebanhos de gado lanígero do mesmo proprietário. Um grande lavrador, podia possuir alguns milhares de cabeças, espalhadas por numerosos rebanhos, mas tinha ao seu serviço um único rabadão. “Maioral” era o primeiro pastor de cada rebanho. Havia tantos maiorais quantos os rebanhos. “Ajuda” era o segundo pastor do rebanho.

OS PASTORES NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
A pastorícia, actividade tradicional com peso na economia do Alentejo d’outrora, está bem gravada na nossa memória colectiva, pelo que faz parte do imaginário popular e está largamente representada na barrística popular estremocense. De facto, são conhecidas as seguintes figuras: pastor (simples), maioral e ajuda, pastor em pé com dois borregos em frente, pastor com o borrego às costas, pastor sentado a fazer as migas, pastor sentado a comer as migas, pastor deitado a fazer as migas, pastor de harmónio (em pé), pastor de harmónio (sentado), pastor ofertante em pé (com borrego), pastor ofertante em pé (com 1 pomba), pastor ofertante em pé (com 2 pombas), pastor ofertante em pé (com 3 pombas), pastor ofertante ajoelhado (com borrego à frente) e pastor ofertante ajoelhado (com chapéu à frente). Não são conhecidas representações de pastores, em peças do tipo “assobio” ou “gancho de meia”.
A composição aqui mostrada sob múltiplos ângulos, é uma representação de “Maioral e ajuda”, foi adquirida no Mercado das Velharias, em Estremoz, no passado sábado, dia 16 de Abril e é da autoria da celebrada barrista Sabina Santos (1921-2005).

UMA QUESTÃO DE TERMINOLOGIA
Sabina Santos trabalhava para a extinta Olaria Alfacinha, cuja Tabela de Preços dos Bonecos de Estremoz, datada de 1976, designa esta composição por “Pastores a merendar”. Trata-se a nosso ver de uma designação aceitável, pois são dois os pastores que estão a comer, seja ou não a merendar. Todavia, aquela designação não traduz a existência de uma hierarquia entre eles.
Posteriormente a Sabina Santos, outros barristas passaram a designar esta composição por “Pastor e ajuda a comer”, designação igualmente aceitável, uma vez que revela a presença de uma hierarquia entre eles. Contudo, a nosso ver, esta designação tem o inconveniente de chamar a um deles pastor, como se o outro não o fosse também.
A nosso ver, a designação mais adequada para esta composição é “Maioral e ajuda a comer”, uma vez que dela está ausente qualquer ambiguidade, por mostrar a existência de uma hierarquia entre os pastores.

MEMÓRIA DESCRITIVA
Passemos de imediato à descrição da peça em estudo. Trata-se de uma peça constituída por três figuras: dois pastores de ovelhas (o maioral e o ajuda) e o cão do rebanho, já que “Não há pastor sem rebanho” e “Perdido é o gado que não tem pastor nem cão”. Qualquer dos pastores usa na cabeça, o típico chapéu aguadeiro, típico do Alentejo e assenta o joelho direito na Terra-Mãe, como se estivessem a venerar um tarro destapado, repleto de olorosas migas, do qual o maioral se está a servir com uma avantajada colher que agarra com a mão direita, enquanto o ajuda empunha outra e se prepara para igual procedimento. Qualquer deles tem a mão esquerda apoiada no joelho homólogo. Para além disso, o ajuda segura um pão.
O facto de estarem a comer do tarro é revelador de que as migas não foram confeccionadas no local, mas no monte do lavrador, onde o ajuda as foi buscar, uma vez que “Abala pastor com as espaldas ao sol”.
No que respeita ao traje, o ajuda usa botas de cabedal atacoadas, calças de ganga azul e pelico de pele de borrego ou ovelha. Este é como que um colete fechado, abotoado à frente por três pares de botões pretos e que substitui o casaco. Por debaixo do pelico, uma camisa creme fechada em cima por um par de botões vermelhos e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. Quanto ao maioral traz botas de cabedal atacoadas e pintadas de preto. Por cima das calças usa safões. Estes são uma peça de vestuário confeccionada em pele de borrego ou ovelha, que se ata à cinta e se ajusta às pernas por intermédio de cinco atilhos com um botão amarelo na ponta, o qual entra no caseado dos safões. Estes têm a função de aquecer as pernas no Inverno, bem como proteger as calças. O maioral usa ainda uma samarra feita de pele de borrego ou ovelha. Esta é como que uma casaca fechada, abotoada à frente por três pares de botões amarelos e com um rabo que dá até à curvatura das pernas. Por debaixo da samarra, uma camisa cor de laranja, fechada em cima por um par de botões azuis e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. O maioral apresenta ainda sobre os ombros, um lenço às listas coloridas, como se fosse uma estola assente no pescoço e com as pontas pendentes para a frente.
Dos agasalhos de pele de borrego usados pelos pastores, existem algumas referências na literatura oral, a começar pelo adagiário que proclama que “0 agasalho e a balsa não pesam ao pastor”, enquanto que o cancioneiro popular refere que:

“Fui fazer uma viagem,
De Vendas Novas aos Pegões,
Para comprar umas peles,
Para fazer uns ceifões.” [4]

E ainda:

Tod’a vida gardê gado,
E sempre fui ganadêro,
Uso cêfoes e cajado,
E pelico e caldêra.” [4]

No chão, de um dos lados do tarro, uma cacheira que tal como o cajado e o gravato, é como que o bordão do peregrino, pois auxilia na marcha. A ela se arrimam os pastores quando estão parados, a ver se aliviam as pernas. Serve igualmente de arma de defesa contra ladrões e animais selvagens. É também uma terrível arma usada em casos de desavenças, como por vezes acontecia nas feiras de gado. Mas a cacheira é, sobretudo, a extensão do braço do pastor e serve para conduzir o gado, sendo por vezes lançada como arma de arremesso em direcção a ovelhas tresmalhadas. Nas cacheiras, cajados e gravatos, os pastores gravam a navalha, marcas indicativas do número de cabeças de gado que têm à sua guarda. Estas variam de pastor para pastor. Um tipo de marcação possível é a seguinte: redondela (100), triângulo (50), cruz (20), mossa (10), ponto (1).
Do outro lado do tarro, um corpulento, possante e ágil rafeiro alentejano, guarda, acompanhante, defensor e protector do rebanho, de orelhas arrebitadas, tem a língua de fora da boca, como quem saliva, impaciente pelo seu quinhão de migas.
O chão onde assentam todas as figuras é verde, pintalgado de branco, amarelo e cor de laranja, numa alegoria a um chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres.

HIERARQUIA DA PASTORÍCIA TRADUZIDA NA BARRÍSTICA
Uma análise pormenorizada da composição, revela o modo como a barrista sublinhou a existência duma hierarquia entre os dois pastores, a qual tem a ver com aquilo que eles trajam e que é revelador do melhor salário do maioral, quando comparado com o do ajuda.
Na verdade, o maioral está melhor protegido do frio que o ajuda, pois usa safões que lhe protegem as pernas e samarra que lhe protege o peito, as costas e o traseiro. Em contrapartida, o ajuda não usa safões que lhe protejam as pernas do frio e o pelico, protege-lhe apenas o peito e as costas, que não o traseiro.
Por outro lado, o maioral usa botas pretas atacoadas, supostamente melhores que as botas atacoadas do ajuda, confeccionadas na cor natural do cabedal.
O maioral, usa, de resto, um lenço às listas coloridas, qual estola de dignatário pastoril, o que o distingue sobremaneira do ajuda.

NOTA FINAL
Antigamente no Alentejo, a profissão de pastor era reservada a homens robustos que conseguissem resistir às noites de Inverno dormidas ao relento e ao terrível Sol alentejano que queima como fogo e que por vezes há que aguentar sem uma única sombra a servir de abrigo. Em geral, a profissão de pastor era como que hereditária, transitando de pais para filhos. Era profissão para toda a vida, como que uma sina que, por vezes, o amor de uma mulher conseguia interromper:

“Já não há quem queira dar
Uma filha a um pastor.
É que casar, hoje em dia,
É só bom p’ró lavrador.” [4]

“Toda a vida guardei gado,
Toda a vida fui pastor,
Deixei botins e cajado
Por via do meu amor.” [4]

Publicado inicialmente em 23 de Abril de 2011

BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CONDE DE FICALHO. O elemento árabe na linguagem dos pastores alentejanos. Revista “A Tradição”. Serpa. Série I - Ano I (1899) – nºs 6 (Junho), 7 (Julho), 8 (Agosto), 9 (Setembro ) e 10 (Outubro).
[3] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[4] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[5] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Da arte à poesia pastoril


Pastor de Évora. Aguarela de ALFREDO MORAES (1872-1971)


O pastor alentejano ocupa o tempo que lhe sobra da guarda do rebanho, em gravar desenhos sobre madeira, cortiça ou chifre.
Como principal instrumento de trabalho, serve-se da navalha, mas utiliza também, por vezes, o ponteiro e a legra que transporta sempre consigo. A legra consta de uma folha de navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades, e é utilizada, especialmente, para escavar a concha das colheres. Com riscos esboça primeiro o trabalho a executar. Sobre o traçado abre então o desenho idealizado: ramos, bordados ou outros motivos.
Dentre os trabalhos executados podem citar-se os seguintes: De madeira: colheres, cassos, garfos, copeiras, garfeiras, molduras, tinteiros, pontões de arca, sovinos [i], agulheiros, chavões, etc. De cortiça: côxos, tarros, caixas de costura, saleiros, tropeços, etc. De chifre: polvorinhos, cornas, azeiteiros, copos, colheres, etc. "A Província do Alentejo é a lareira onde arde mais vivo, mais claro e mais alto, o fogo tradicional da arte popular portuguesa.”[ii]
“Não sabe uma letra o pastor destas terras, em erudição nunca ouviu falar, e é poesia pura a linguagem da sua alma, e é poesia pura o que sai das suas mãos.
E além de tudo mais uma qualidade tem a sua poesia. Não precisa dos livros para se imortalizar. Um raminho de buxo, um nada de cortiça, e, da inspiração fugidia, ficou alguma coisa nas nossas mãos.
Perdão! nas mãos da sua conversada que cada Domingo as estende para receber a colher rendada com que se promete casamento ou o tarro com que se deseja abastança, e se acha ao fim e ao cabo com um poema em que se fala de amor.”[iii]
Mas apesar de a arte pastoril ser poesia e poesia pura, na solidão da sua vida de nómada, o pastor é um poeta popular no sentido literal do termo, criando sobretudo décimas e quadras que regista no livro vivo da sua memória:

" Àlém ò pé do redil
Uma pedra me espera.
Sentado ali sem dormir,
Górdando o gado da fera."[iv]

Sim, por que lá diz o rifonário popular. “É ao mau pastor que o lobo dá louvor” e “Pastor descuidado, ao sol posto junta o gado” e ainda “A ovelha que não tem dono come-a o lobo”.
A quadra pode ser brejeira:

"Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu,
O Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu."[v]

Pode ser também o reflexo do grande isolamento em que vive o pastor, que lhe permite conhecer a natureza que o rodeia, muito em particular, o céu: 

"As árves que o mundo tem
Cubro-as c’o meu chapéu.
Diga-me cá por cantigas
Quantas ‘strelas há no céu?"[vi]

Por vezes a poesia encerra uma profunda crítica social:

"Sobe o rei no alto trono,
Desce o pastor ao val’ fundo;
Uns p’ra baixo, outros p’ra cima
Vai-se assim movendo o mundo."[vii]

Felizmente que através dos tempos tem havido estudiosos que têm procedido à recolha do rico Cancioneiro Popular. Registo entre outros os nomes de Tomás Pires, Luís Chaves, Azinhal Abelho, Manuel Joaquim Delgado, Augusto Pires de Lima, Vítor Santos, Fernando Lopes Graça, Michel Giacometti, a quem presto o tributo do meu reconhecimento por terem tido a clarividência da importância que constitui o registo escrito do Cancioneiro Popular, como forma de assegurar a perpetuidade do que tem de mais rico e genuíno a nossa memória colectiva.

[i] Furadores de abrir a capa do milho.
[ii] Virgílio Correia in Etnografia Artística, Renascença Portuguesa, Porto, 1916.
[iii] João Falcato in Elucidário do Alentejo, Coimbra Editora, Coimbra, 1953.
[iv] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[v] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vi] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vii] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.

Publicado inicialmente a 3 de Março de 2010

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A cadeirinha de "Prometida"


Troca de prendas entre "conversados".  Imagem recolhida on line.


Campos do Alentejo na primeira metade do século vinte. Um moço que num rasgo de olhar, vislumbra uma moça, na qual existe qualquer coisa que irreversivelmente o atrai e o fulmina. É tiro e queda. Passa a segui-la como um perdigueiro que segue a caça. Pisteiro, procura dirigir-lhe palavra. Mas manda a tradição que a moça, apesar de se sentir atraída por ele, lhe dê um ou mais cabaços (negas). Todavia, “Quem porfia sempre alcança” e um dia, os sentimentos do moço são retribuídos pela moça e o amor irrompe como um vulcão. Ela dá-lhe trela e ele recebe luz branca para lhe fazer a corte. Derretem-se um pelo outro, mas procuram encontrar-se em segredo, longe das bocas do mundo, para que a família dela não saiba antes do tempo próprio. E as coisas assim continuam até que um dia, deixam de ter medo que os outros saibam e passam à condição de “conversados”, encontrando-se às claras, na pausa dos trabalhos do campo, no regresso dele, junto à fonte ou na igreja, nos domingos e dias santos. É a época em que o moço oferece à moça, objectos utilitários de arte pastoril, finamente lavrados: dedeiras para a ceifa, rocas e fusos, ganchos de fazer meia ou caixas de costura, que ele próprio confecciona se da arte pastoril tem o jeito ou que encomenda a alguém, no caso de não o ter. Ela retribui com prendas finamente bordadas, tais como uma bolsa para o relógio, para a tabaqueira ou para as moedas. E na comunhão do amor perene, qualquer deles usa e ostenta com orgulho, as prendas que recebeu do outro e que “selam” a sua condição de “conversados”.
A instâncias da moça, com o apoio da mãe primeiro e do pai depois, os pais dão autorização para que os “conversados” falem à janela ou à porta de casa, seja ela na vila ou no monte. E as coisas assim vão prosseguindo até que o estado psicológico do par atinja o ponto de rebuçado. Nessa altura, o moço pede aos pais da moça que lha dêem em casamento. Estes, naturalmente, protagonistas activos ainda que ocultos, desta saga amorosa, concedem-lhe a graça solicitada. A moça passa então da condição de “conversada”, à condição de “prometida”. Só então o par recebe autorização para conversar dentro da casa dos pais da moça. E para “selar” o contracto pré-matrimonial, o moço oferece à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passará a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Esta a fórmula encontrada pela sábia identidade cultural alentejana, de dar a conhecer à comunidade que a moça já estava “prometida” e que em breve iria casar.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 7 de Janeiro de 2011

A cadeirinha de prometida. Símbolo do contrato
pré-matrimonial no Alentejo da primeira metade 
do séc. XX. Talhada em madeira numa única
peça (2,1x2,1x5,2 cm).

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Aclénia Pereira e um certo olhar…


Fig. 1 - Pastor de tarro e manta. Aclénia Pereira (1927-2012)

LER AINDA

Aclénia Pereira (1927-2012) é uma barrista de Estremoz cujo perfil biográfico tracei em 2018 [1] , o qual pode ser lido na hiperligação acima indicada.
Aclénia frequentou a Escola Industrial António Augusto Gonçalves entre 1940 e 1943. Aí foi aluna de Mestre Mariano da Conceição (1903-1959) na disciplina de “Oficina”, durante 3 anos lectivos consecutivos. Com ele aprendeu a modelar e a decorar Bonecos de Estremoz, podendo tal como Armando Alves (1935 - ), ser considerada discípula daquele Mestre. É de sua autoria o “Pastor de tarro e manta” da Fig. 1, que ostenta na base duas das suas bem conhecidas marcas de autor. (Fig. 2). A data 22-5-50 escrita verticalmente na base com lápis de grafite, é por mim interpretada como sendo a data de aquisição registada por quem adquiriu a figura à barrista, que teria então 23 anos. Significa isto que ao fim de 7 anos de ter deixado de ser aluna de mestre Mariano da Conceição já produzia figuras com marcas individuais diferenciadas das do Mestre. Com efeito, à semelhança de Ana das Peles (1869-1945) na sua primeira fase de produção, a representação do olhar utilizada por Aclénia é feita através da menina do olho e da sobrancelha. Já Mestre Mariano da Conceição, utilizava a menina do olho, a sobrancelha e a pestana na representação do olhar. Esta, enquanto marca identitária dum determinado barrista, integra conjuntamente com outras marcas identitárias, aquilo que se pode designar como o estilo desse barrista. Por outras palavras: o estilo pode ser definido como o conjunto de marcas identitárias de cada barrista.
Como diferentes barristas têm, naturalmente, algumas marcas identitárias distintas das de outros barristas, resulta daí que cada um deles tem o seu próprio estilo, o que não é impeditivo de qualquer deles, no decurso da produção, seguir os cânones subjacentes à Estética do Boneco de Estremoz, a qual tem a ver com a modelação e com a decoração, mas não com a representação do olhar, que ao longo da História do Boneco de Estremoz é diversificada e plural.
É inteiramente desprovido de sentido, considerar, como alguns o fazem, que as figuras que não apresentam “duas riscas por cima dos olhos”, não obedecem à Estética do Boneco de Estremoz. Além de ser uma afirmação inteiramente desprovida de sentido, não fica bem fazer essa afirmação, porque não é uma afirmação séria, visto que não corresponde à realidade histórica.
Por outro lado, produzir intencionalmente uma tal afirmação, corresponde na prática a pretender valorizar o trabalho daqueles que seguem uma dada forma de representação do olhar, em detrimento de outros, o que considero lamentável porque preconceituoso.


Fig. 2 - Carimbo “Tanagra”[2] dentro de um rectângulo  de
3 cm x 1 cm, seguido de carimbo “ESTREMOZ / PORTUGAL”,
dentro de um  rectângulo de 2,7 cm x 1 cm. 



[1] MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018. 

[2] “Tanagra” é o pseudónimo de Aclénia Pereira como barrista de Estremoz. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Adagiário do frio


Mulher da azeitona de Estremoz. Ilustração de Cesar Abbott.
Bilhete-postal ilustrado edição Centro de Novidades (Porto, 1942).

O QUE É O FRIO
O Inverno é caracterizado por baixas temperaturas, responsáveis por sentirmos frio. Este é uma sensação fisiológica contrária à sensação de calor e está associado às baixas temperaturas.
É sabido da Física que pelo “Princípio Fundamental da Calorimetria”, “Quando se põem em contacto dois corpos a temperaturas diferentes, o mais quente arrefece e o mais frio aquece, até ficarem ambos à mesma temperatura”. Por isso no Inverno, como o meio ambiente está a uma temperatura inferior à do nosso corpo, este tende a perder calor por irradiação a favor do meio ambiente, o que se traduz num abaixamento da temperatura do nosso corpo. Por isso sentimos frio. No Verão é exactamente o contrário, pois o meio ambiente está a uma temperatura superior à do nosso corpo, pelo que tende a perder calor por irradiação a favor do nosso corpo, pelo que a temperatura deste aumenta. Daí sentirmos calor.

TRAJE POPULAR ALENTEJANO
Para nos protegermos do frio usamos vestuário, que funciona como barreira à perda de calor corporal, por isolamento térmico. O traje popular alentejano assegurava sabiamente esse isolamento.
O camponês alentejano usava barrete na cabeça que lhe protegia as orelhas do frio, ao contrário do chapéu. Usava ainda pelico ou samarra de pele de borrego ou de ovelha e por baixo destes, sucessivamente colete, camisola e camisa. Uma cinta cingia a cintura. Nas pernas, safões de pele de ovelha ou de borrego. Por baixo, sucessivamente calças de saragoça forte e ceroulas de flanela. Podia ainda cobrir-se ou transportar ao ombro uma espessa, pesada e quente manta alentejana, fabricada em centros com tradições tecelãs (Reguengos de Monsaraz, Mértola, Castro Verde, Grândola, Almodôvar e Serpa.). Nos pés, sapatos grossos de atanado com polainas ou botas caneleiras ou joelheiras e por baixo destas, grossas meias de lã. Assim trajavam pastores e ganhões durante a jorna (lavrar, charruar, cavar, podar). Terminada esta e em certas circunstâncias podiam usar capote de saragoça ou de burel.

Maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana, no início do séc. XX.
Bilhete-postal ilustrado edição Malva (Lisboa).

Pastor alentejano.
Aguarela de Alberto de Souza (1880-1961), pintada em 1935. 

Pastor (Início do séc. XX).
Bilhete-postal ilustrado edição de Faustino António Martins (Lisboa). 

Um campónio alemtejano em dia de festa.
Bilhete-postal ilustrado edição Costa (Lisboa).

As camponesas alentejanas que participavam na apanha da azeitona e na monda, usavam uma saia forte, atada em forma de calças, a fim de facilitar o trabalho. Nas pernas, grossas meias de lã e nos pés sapatos fortes de atanado. No tronco, para além da roupa interior, camisa, blusa de malha e xaile. Nos braços, mangueiras de um tecido barato, visando proteger as mangas da blusa durante o trabalho. A cabeça era protegida por um lenço, atado atrás. Por cima do lenço usavam um chapéu de feltro.

ADAGIÁRIO DO FRIO
É diversificado e vasto o adagiário português, onde é utilizada explicitamente a palavra frio. Até à presente data recolhemos 100 adágios sobre o frio, os quais foram sistematizados, conforme adiante se indica.
  
Existem indícios do frio:
- Quando a candeia chora, está o frio fora; quando ri está o feio para vir.
O frio tem determinadas consequências:
- A chuva e o frio metem a lebre a caminho. (1)
- A fome e o frio metem um homem em casa do inimigo. (2)
- A fome e o frio nunca criaram infante.
- A fome e o frio obrigou-o a fazer as pazes com o tio.
- Dá-lhes frio e sequidão que as terras te gearão
- Fome e frio fazem o gado galego. (3)
- Frio e fome não fazem bom cabelo.
- Frio, focinho e bico, não fazem ninguém rico.
- Manhã fria traz bom dia.
- Norte frio, água no rio.
- Um dia frio e outro quente, põem o homem doente. (4)
Nem tudo é consequência do frio:
- Frio não quebra osso e chuva não quebra costela.
O frio pode ser um mal menor:
- Antes frio e geada que chuva porfiada.
- Não temam o frio nem a geada, mas a chuva porfiada. (5)
O frio pode ser superado:
- Quem tem brio não tem frio.
- Frio a valer, trabalhar para aquecer.
- Quem não anda por frio e por sol não faz seu prol.
O frio pode ser uma livre opção:
- Pai com frio, filho com cobertor.
Existem relações do frio com o calor:
- O que tapa o frio tapa o calor.
- Calma em tempo frio traz molhado. (6)
-  Calor em tempo frio, chuva por castigo. (7)
O frio é medido fisiologicamente por órgãos anatómicos animais ou humanos:
- Frio como nariz de cão. (8)
O frio está indissociavelmente relacionado com o vestuário:
- A cada qual dá Deus o frio conforme o vestido. (9)
- Cada um sente o frio, conforme a coberta. (10)
- Dá Deus roupa segundo o frio.
A sanidade exige o equilíbrio entre o frio e o calor:
- A saúde é a justa medida entre o calor e o frio.
O frio pode gerar o ruído:
- O bácoro, a fome e o frio, fazem grande ruído.
- Porcos com frio e homens com vinho fazem grande ruído.
O frio está patente no adagiário dos meses:
- Bom tempo no Janeiro e mau no estio, bom ano de fome, mau ano de frio.
- Chuva em Janeiro e não frio, dá riqueza no estio. (11)
- Janeiro frio e molhado não é bom para o gado.
- Janeiro frio e molhado, enche a tulha e farta o gado.
- Janeiro frio ou temperado, passa-o enroupado. (12)
- Janeiro geoso, Fevereiro nevoso. Março frio e ventoso, Abril chuvoso e Maio pardo, fazem um ano abundoso.
- Em Fevereiro neve e frio, é de esperar calor no estio.
- Em Fevereiro, frio ou quente, chova sempre.
- Fevereiro, fêveras de frio e não de linho. (13)
- Abril frio e molhado, enche o celeiro e o gado. (14)
- Abril frio, pão e vinho. (15)
- Frio de Abril as pedras vai ferir. (16)
- Maio frio e Junho quente fazem o lavrador valente.
- Maio frio e Junho quente: bom pão, vinho valente. (17)
- Maio frio e ventoso, faz o ano formoso.
- Em Junho, frio como punho.
- Agosto, frio em rosto. (18)
- Em Agosto passa o frio pelo rosto.
- Ande o frio onde andar, no Natal cá vem parar. (19)
- Ande o Natal por onde andar, que ele o frio há-de ir buscar.
- Dezembro com Junho ao desafio, traz Janeiro frio.
- Dezembro frio, calor no estilo.
- Em Dezembro treme de frio cada membro. (20)
O frio pode constituir uma qualidade:
- A água é fria, mas mais é quem com ela convida.
- A faneca, com três efes: fresca, fria e frita.
Há actos que devem ser praticados a frio:
- A vingança é um prato que se come frio.
- O caldo quente e a injúria em frio.

.....................

(1) Variante:
- A fome e o frio faz vir a lebre ao caminho.
(2) Variantes:
- Fome e frio entregam o homem ao seu inimigo.
- A fome e o frio fazem o homem acolher-se à casa do inimigo.
- Fome e frio metem a pessoa com seu inimigo.
- Fome e frio te fará meter com teu inimigo.
(3) Variantes:
- A fome e o frio fazem o gado galego.
- Fome, frio e mau trato, fazem o gado galego.
- O frio e a fome fazem o gado galego.
(4) Variantes:
- Dia frio e dia quente, fazem andar o homem doente.
- Dia frio e outro quente, faz o homem doente.
(5) Variante:
- Não hei medo ao frio nem à geada, senão á chuva porfiada.
(6) Variante:
- Calma em tempo frio traz molhado; frio em tempo molhado, traz resfriado.
(7) Variante:
- Calor em tempo frio, trá-lo molhado.
(8) Variantes:
- Calcanhar de homem, cu de mulher e focinho de cão, nunca sentem o Verão.
- Calcanhar de homem, cu de mulher e nariz de cão, três coisas frias são.
- Cu de mulher e nariz de cão, nunca conheceram Verão.
- Há duas coisas que não conhecem Verão: rabo de mulher e focinho de cão.
- Nariz de cão, cu de mulher e mãos de barbeiro, frios como gelo.
- Nariz de cão e cu de gente, nunca está quente.
- Nariz de cão e cu de mulher estão sempre frios.
(9) Variantes:
- A cada um dá Deus o frio conforme a roupa, mas mais a quem tem pouca.
- A cada qual dá Deus o frio conforme a roupa.
- A cada qual dá Deus o frio conforme anda vestido.
- Dá Deus o frio conforme a roupa.
- Deus dá o frio conforme a roupa.
(10) Variante:
- Cada um sente o frio, como anda vestido.
(11) Variante:
- Chuva de Janeiro e não frio, vai dar riqueza ao estio.
(12) Variante:
- Janeiro frio ou temperado, não deixa de ir enroupado.
(13) Variante:
- Em Fevereiro, febras de frio e não de linho.
- Em Fevereiro, fibras de frio e não de linho.
(14) Variante:
- Abril frio e molhado, enche celeiro e farta o gado.
(15) Variantes:
- Abril frio, traz pão e vinho.
- Abril frio, ano de pão e vinho.
(16) Variante:
- Frio de Abril, nas pedras vá ferir.
(17) Variante:
- Maio frio, Junho quente, bom pão, vinho valente.
(18) Variante:
- Agosto, frio no rosto.
(19) Variantes:
- Ande o frio por onde andar que o Natal o irá buscar.
- Ande o frio por onde andar, ao Natal há-de vir parar.
- Ande o frio por onde andar, no Natal cá vem parar.
- Ande o frio por onde andar, o Natal o vai buscar.
- Ande o frio por onde andar, pelo Natal cá vem parar.
- Ande o frio por onde andar, pelo Natal há-de chegar.
(20) Variante:
- Em Dezembro treme o frio em cada membro.
(21) Variante:
- O caldo em quente, a injúria em frio.

Texto publicado inicialmente em 25 de Outubro de 2012