domingo, 29 de setembro de 2024

Pim! Onde é que já se viu uma Georgina assim?

 

Na mesa, da esquerda para a direita: Fernando Mão de Ferro (Edições Colibri).
Georgina Ferro (autora) e Hernâni Matos (apresentador).
Fotografia de Maria Helena Figueiredo.


Apresentação do livro
de Georgina Ferro.
Sociedade de Artistas Estremocense.
Estremoz, 28 de Setembro de 2024.
Hernâni Matos

 


Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Senão houver objecções, a minha conversa convosco constará de três partes:
1 - Onde te vieste meter, Hernâni?
2 - Deixem-me lá agora falar do livro!
3 - E quanto a mim, que penso eu?
Vou então começar, pois embora a jornada não seja longa nem fastidiosa, daqui a bocado são horas de ir lanchar e ninguém esta autorizado a lanchar por mim.

Onde te vieste meter, Hernâni?
Se bem me lembro, conheço seguramente a Georgina desde o Tempo da Outra Senhora. Do exercício do Magistério Primário na Freguesia da Glória, da sua ligação à Comunidade, do seu reconhecimento por parte da mesma e do seu amor às coisas campaniças.
Lembro-me de partilhar há muito com a Georgina uma grande admiração pelo “Ti Rolo” da Aldeia de Cima, que exercia sobre nós um fascínio incomensurável, pela sua oralidade transbordante e pelos artefactos de arte pastoril nascidos das suas mãos mágicas, nos quais projectava toda a imaginária popular, lavrada em chifres e paus sabiamente escolhidos.
Lembro-me do nascimento da sua filha Sónia e tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano do seu filho Pedro. Foi uma experiência encantadora, pois além do Pedro ser um aluno fortemente motivado, eu tive oportunidade de pôr em prática o método de ensino-aprendizagem personalizado, preconizado por muitos pedagogos. É que o Pedro era o único aluno da turma. Nenhum de nós deixou os seus créditos por mãos alheias e a experiência pedagógica foi um êxito.
Lembro-me do envolvimento da Georgina no Projecto Serra de Ossa, desde o início, no tempo da liderança de Gil Malta e de ela ter participado em 1998, conjuntamente com outros professores, entre as quais este vosso amigo, nas “Segundas Jornadas da Serra d’Ossa”, levadas a efeito na Escola Secundária da Rainha Santa Isabel. A sua bem-sucedida intervenção oral nessas jornadas, foi o embrião dos seus primeiros livros, publicados ambos em 2005:
- Plantas medicinais da Serra d'Ossa
- Por um Amanhã Mais Verde, Mezinhas caseiras com Plantas da Serra d'Ossa
Em Setembro de 2012, a Georgina concedeu-me o privilégio de participar na apresentação pública do meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”, o que muito me congratulou.
Em Dezembro de 2013 a Georgina brindou-nos com o lançamento do seu livro de poesia “O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL”, editado pela Colibri, o qual foi apresentado na Casa de Estremoz pela Maria do Céu Pires e pela Francisca de Matos.
Passados estes anos todos, estas nossas amigas resolveram não reincidir e passaram-me o testemunho, pelo que à falta de melhor, aqui estou eu, de peito descoberto, a apresentar o livro que está na ordem do dia, o livro da autoria da nossa amiga Georgina, que em boa hora aqui nos trouxe.
Tudo estaria bem se a Francisca de Matos, ignorando que sou um pés de chumbo, não me tivesse proposto entrar nesta dança, aqui mesmo neste belo salão da Sociedade Artistas Estremocense, onde actualmente até se dão aulas de dança. Vamos lá a ver se não me espalho ou não brindo alguém com uma pisadela mestra.

Deixem-me lá agora falar do livro!
Está aqui à vossa vista. Fisicamente é um livro brochado, de 22,8 x 16 cm e 236 páginas. O seu título é NA JANELA DO TEMPO – TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO – BEIRA INTERIOR e a autora, claro está, é a nossa amiga Georgina. O livro foi dado à estampa 78 prestigiadas Edições Colibri de Fernando Mão de Ferro e tem capa a cores de Raquel Ferreira,78 gizada a partir de fotografia de Abel Cunha. Na primeira badana figura a biografia e a fotografia da autora e na segunda badana, um excerto de uma das estórias do livro. Este tem prefácio de José Carlos Lage, o qual confessa que é “Fácil e ao mesmo tempo difícil” falar das poesias e das crónicas de Georgina. Por sua vez, em posfácio impresso na contra-capa, Francisca de Matos afirma e muito bem, que “Esta obra é, sobretudo, uma grande lição de vida, um legado que não deve, não pode ser esquecido”.

E quanto a mim, que penso eu?
O livro é um livro de estórias ou não fosse Georgina, para além de notável poetisa, uma extraordinária contadora de estórias. Não estórias quaisquer, nem tão pouco inventadas ou arquitectadas, mas estórias reais ocorridas no tempo da sua infância, repartida entre Manteigas, Aldeia do Bispo - Sabugal e Covilhã.
São estórias com personagens reais, de carne e osso, como o Ti Júlio, a Ti Mariana, a Senhora Isabel Augusta, o Ti Zé Ramos, a Menina Zéfinha, o tio António Pantalona, o tio Zé Manso e não sei quantos mais, numa infinidade numerável que não consegui quantificar. São eles que constituem aquilo que com orgulho, Georgina chama “A Minha Gente”.
São estórias contadas e redigidas numa escrita fluida e ágil, eficaz na pintura descritiva das paisagens rurais e do interior das casas aldeãs. Escrita que é também uma partilha intimista das emoções e sentimentos dos personagens, incluindo Georgina, também ela própria, personagem por direito próprio e inalienável. Tudo sempre minuciosamente filigranado ao pormenor, numa linguagem rica, valorizada pelo uso de vocábulos regionais, cujo sentido, se necessário pode ser decifrado num glossário que antecede o índice final.
São estórias do tempo em que nas aldeias se tocavam as trindades.
As hortas eram regadas com água tirada das noras e das picotas. Comia-se daquilo que a terra dava e em situações de carência, havia partilha e entreajuda ente vizinhos e familiares. Todavia, a falta de dinheiro para bens de mercearia e para comprar entre outras coisas, petróleo para alumiar, levavam alguns, mais aflitos e mais afoitos, a entrar no contrabando através da raia de Espanha ou a dar o salto para França.
Apesar de tudo ou talvez por isso, rezava-se a Deus, à Mãe de Jesus, ao Anjo da Guarda e a Santo Antão para proteger o gado.
A menina Zefinha andava de taleigo à cabeça, a ti Mariana remendava as ceroulas do Ti Júlio e a ti Neves do Ti Júlio punha-lhe ventosas e papas de linhaça, a ver se ele arribava.
A roupa era cozida, remendada e transformada, passando dos mais crescidos para os mais pequenos. O pão ara amassado de tarde para ficar a dormir à noite e os mais velhos davam a bênção aos mais novos antes destes adormecerem.
Isto e muito mais são registos de memórias de tempos idos dos personagens do livro. Tempos e vivências difíceis e duras, mas também de afectos, partilhas e tradições numa comunidade onde Georgina nasceu e cresceu, com a qual se identifica e que pela mesma é reconhecida e idolatrada.
Georgina é, pois, uma guardadora de memórias, muitas delas guardadas no presente livro e que por serem reconhecidas pela comunidade que a viu nascer e crescer, integram a memória colectiva local e contribuem com a sua quota parte para a memória colectiva regional e para a memória colectiva nacional.
É a memória colectiva que nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.
Daí a importância de que se reveste o livro NA JANELA DO TEMPO – TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO – BEIRA INTERIOR, da autoria de Georgina, o que me leva a proclamar:
- PIM! ONDE É QUE SE VIU UMA GEORGINA ASSIM?
Para a Georgina peço uma calorosa salva de palmas.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 29 de Setembro de 2024


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Esta é a estória de ser coleccionador






Ando sempre à "coca" de coisas que povoam o meu imaginário. Nessas andanças descubro também, coisas que nunca me passou pela cabeça que pudessem existir e outras que jamais pensei que pudessem vir até mim. Sim, porque por vezes, as coisas vêm até mim, sem as procurar. É como se eu as atraísse e há coisas a que de modo algum consigo resistir..
Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra. Bom e há ainda também as estórias que eu invento, que me nascem, florescem e frutificam na cabeça. São estórias e mais estórias...
Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 27 de Setembro de 2022

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Estremoz – Mercado das Velharias




À minha amiga Manuela Mendes:

Dizem que eu sou um respigador nato, um cão pisteiro, um farejador de coisas velhas. Talvez seja algo de epidérmico, se não mesmo genético. E perante os meus olhos nascem coisas que parece que estavam ali circunspectas, à espera que eu me abeirasse delas. Ainda há dias foi a 1ª edição da "SUBERICULTURA" (1950) e a nova edição (1942) de "POMARES" do Prof. Vieira Natividade, que ali comprei ao preço da uva mijona.
Para fechar com chave de ouro, essa manhã de sábado, comprei ainda ao preço da dita uva, uma "ANTOLOGIA DE FIALHO DE ALMEIDA", organizada por Manuel da Fonseca e com extensa dedicatória autografa, deste último. A minha biblioteca já incorporava outros livros com dedicatórias autógrafas de outros grandes escritores portugueses, nomeadamente alentejanos, como o Conde de Monsaraz ou António Sardinha, mas quanto ao Manuel da Fonseca, o nosso "Manel", estava às escuras.
Quando as minhas mãos nervosas, tactearam o livro descoberto pela cirurgia do meu olhar, senti uma espécie de calafrio na espinha, seguido dum deslumbramento como terão porventura sentido os nossos navegadores, quando aportarem ao novo mundo.
À semelhança do que acontecia com o meu vizinho Sebastião da Gama, que conheci ainda eu era uma criança, sábado é o dia mais belo da semana. Não troco por nada, a ida ao mercado de sábado.
Num dos seus poemas que relembro de memória, o Manel diz: "Domingo que vem, vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida". Pois eu, que sou "sabadeiro", digo para mim mesmo: "Sábado que vem vou comprar as coisas mais belas que um homem pode comprar na vida" e de sexta para sábado, mal durmo, farto-me da dar voltas na cama, à espera que o dia nasça. Então ergo-me, de súpalo e com toda a adrenalina dos meus sessenta e cinco anos, aí vou eu, respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, em passo acelerado, a caminho do mercado de sábado, em Estremoz. E quando muito mais tarde, perto da hora de almoço, regresso a casa com o estômago vazio, a minha alma vai cheia. E aguenta-se uma semana, até ao sábado que vem.
Publicado inicialmente em 4 de Junho de 2011

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Isabel Pires e a Alegoria do Outono

 

Alegoria do Outono (2018). Isabel Pires (1955-  ).

LER AINDA

Folhas secas e frutos maduros
O Outono é a estação do ano compreendida entre o Verão e o Inverno, que corresponde entre nós, aos meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro. Caracteriza-se por um declínio gradual da temperatura e é marcada por tempo chuvoso, ventoso e pouco ensolarado.
Uma das características principais da estação é a mudança da coloração das folhagens das árvores, que passam a apresentar tons amarelados e avermelhados e caem. O Outono é assim a estação da libertação que abre as portas a uma futura renovação na Primavera seguinte.
No Outono, os frutos já estão maduros e começam a cair no chão, pelo que têm lugar as colheitas das culturas de Verão (milho, girassol, etc.), de muitos tipos de frutos (uvas, maçãs, peras, marmelos, etc.) e de frutas secas (castanhas, nozes, avelãs, etc.).

O Outono na Tradição Oral
As colheitas de Outono estão presentes na tradição oral. Em particular, no CANCIONEIRO POPULAR, que põe os meses a falar: “Eu sou o Setembro / Que tudo recolho, / Trigos e milhos, / Palhas e restolho.” e “Eu sou o Outubro, / O mês dos Outonos, / Engrosso as terras / Proveito dos donos.”.
As colheitas de Outono estão igualmente presentes no ADAGIÁRIO. Relativamente a Setembro, o adagiário regista que “Agosto amadura, Setembro derruba” e “Em Setembro, colhendo e comendo”, mas recomenda: “Para vindimar deixa Setembro acabar”. Para além disso, afirma que: “Pelo São Miguel (29/09) os figos são mel” e “Setembro que enche o celeiro, salva o rendeiro”.
No que respeita a Outubro, o adagiário proclama que “Outubro sisudo colhe tudo” e pormenoriza algumas dessas colheitas: - Milho e feijão: “Em Outubro não fies só lã; recolhe o teu milho e o teu feijão, senão de Inverno tens a tua barriga em vão”; - Castanha: “Pelo São Simão (28/10), quem não faz um magusto, não é cristão”; - Fava: “Por São Simão (28/10), fava na mão” - Uva: “ Por São Lucas (18/10) bem sabem as uvas” e “Por São Simão e São Judas (28/10), colhidas são as uvas”.

Referências poéticas
A temática do Outono tem sido abordada por muitos poetas portugueses. Do Outono nos fala Fernando Pessoa[i] no poema “No entardecer da terra”[ii] : “No entardecer da terra / O sopro do longo Outono / Amareleceu o chão. / Um vago vento erra, / Como um sonho mau num sono, / Na lívida solidão.  (…)
Do Outono fala também Florbela Espanca[iii] no soneto “Outonal”[iv]: (…) / “Outono dos crepúsculos doirados, / De púrpuras, damascos e brocados! / - Vestes a terra inteira de esplendor!” (…). No soneto “Ruínas” [v] acrescenta: “Se é sempre Outono o rir das Primaveras, / Castelos, um a um, deixa-os cair... / Que a vida é um constante derruir / De palácios do Reino das Quimeras!” (…).
Do Outono nos fala ainda Miguel Torga [vi]  no poema homónimo: “ Tarde pintada / Por não sei que pintor. / Nunca vi tanta cor / Tão colorida! / Se é de morte ou de vida, / Não é comigo. / Eu, simplesmente, digo / Que há tanta fantasia / Neste dia, / Que o mundo me parece / Vestido por ciganas adivinhas, / E que gosto de o ver, e me apetece / Ter folhas, como as vinhas.”

Alegorias do Outono na Pintura
Em Portugal, pintores como Columbano Bordalo Pinheiro[vii] e José Malhoa[viii], entre outros, utilizaram as características do Outono atrás referidas ao criarem composições alegóricas desta estação do ano.
Essas mesmas características constituem o tema central de telas criadas por grandes nomes da pintura universal, dos quais destaco cronologicamente: Francesco del Cossa[ix], Giuseppe Arcimboldo[x], Pieter Pauwel Rubens[xi], Nicolas Poussin[xii], Rosalba Carriera[xiii], Jacob van Strij[xiv],  Jacob Cats[xv] , Jean-François Millet[xvi] e Frederic Edwin Church[xvii].

Alegoria do Outono na Barrística de Estremoz
Na Barrística de Estremoz, existem exemplares designados genericamente por Primaveras, cuja característica principal é ostentarem um arco com flores apoiado nos ombros e circundando a cabeça. A origem de tais Bonecos remonta pelo menos ao séc. XIX. Para além de serem figuras de Entrudo, são alegorias à estação homónima, que evocam remotos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza, os quais vieram a ser assimilados pela Igreja Católica, que começou a comemorar o Entrudo.
O ano tem quatro estações, pelo que faz sentido existirem alegorias para todas elas. Foi o que pensou a barrista Isabel Pires que criou alegorias para as estações em falta. O presente texto tem por finalidade analisar a Alegoria do Outono de Isabel Pires.

Morfologia da figura
Formalmente e em termos morfológicos a Alegoria do Outono é semelhante à de alguns modelos de Primavera. Assim: 1 - Ostenta um arco ornamentado com o que simula serem folhas secas de uma planta indeterminada e parras secas repartidas em lóbulos pontiagudos que configuram estrelas, tal como o arco da Primavera está enfeitado com flores; 2 - Segura numa das mãos um cacho de uvas e na outra, um cabaz de vime com os frutos da época: diospiros, romãs, marmelos, castanhas, nozes, uvas. Existe aqui uma analogia com o que se passa nalguns modelos de Primavera, que sustentam uma cornucópia numa das mãos e na outra um ramalhete de flores; 3 - A cabeça está adornada com uma grinalda de folhas secas, tal como a cabeça da Primavera pode estar ataviada com plumas, toucados ou chapéus.
Para além destas analogias formais entre a Alegoria do Outono de Isabel Pires e certos modelos de Alegorias das Primavera, há a salientar que a Alegoria do Outono: 1 - Traja um vestido rodado em tom de Bordeaux, com gola verde de inspiração vegetalista e orla bicolor verde-amarela, cores que para além do Bordeaux são igualmente cores de folhas. As mangas do vestido estão decoradas com um fileira de folhas secas dispostas no sentido longitudinal. Uma guirlanda de folhas secas desce do ombro esquerdo em direcção ao cesto e ali se bifurca em duas guirlandas que seguem em direcção à orla do vestido, donde pendem parcialmente; 2 – Calça meias brancas e botas de cor Bordeaux. Estas têm a extremidade do cano com uma orla verde de inspiração vegetalista, da qual pendem folhas secas de cor Bordeaux e amarelo acastanhado; 3 - Assenta numa base circular de cor verde, orlada no topo com girassóis; 4 – O rosto está muito bem definido e é revelador do tratamento fortemente naturalista que a barrista imprime às suas criações. De salientar que os brincos pendentes das orelhas configuram duas folhas, de cor amarela.

Cromatismo da figura
Sob um ponto de vista cromático são dominantes os tons de Bordeaux e de amarelo, característicos das folhas secas e da fruta da época.

Simbolismo da Alegoria
Em termos simbólicos, a Alegoria do Outono, tal como a Alegoria da Primavera, está ligada à renovação da natureza. Assenta numa base verde, cor que simboliza a esperança e a renovação, aqui associadas ao Outono. As parras secas que ornamentam a composição, configuram estrelas, fontes de luz associadas ao simbolismo celeste, nomeadamente a esperança e a renovação. Os girassóis que ornamentam a base, dada a sua mobilidade em relação ao Sol, são um símbolo de instabilidade, aqui associado ao fluir da natureza e à sucessão cíclica das estações do ano.

Epílogo
O Outono é a estação das frutas, das folhas secas, da renovação. É o Inverno que se avizinha. Mas no dizer de Albert Camus[xviii], “Outono é outra Primavera, cada folha uma flor.”. Essa a intuição e também a convicção de Isabel Pires, que teve a sagacidade de criar uma Alegoria do Outono ou melhor, a primeira Alegoria do Outono na Barrística de Estremoz. Para além da qualidade da execução e da criatividade, pelo seu pioneirismo é merecedora de toda a nossa admiração, o que aqui registo e sublinho.
 
BIBLIOGRAFIA
ESPANCA, Florbela. Charneca em Flor. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
ESPANCA, Florbela. Livro de Máguas - Soror Saudade. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
EVANGELISTA, Júlio. Cantares de todo o ano. Colecção Educativa – Série F – N.º 6. Campanha Nacional de Educação de Adultos. Lisboa, s/d.
PESSOA, Fernando. No entardecer da terra in Ilustração Portuguesa , 2ª série, nº 83. Lisboa, 28-1-1922.
TORGA, Miguel. Diário X. Edição do autor. Coimbra, 1968.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 7 de Novembro de 2020

[i] Fernando Pessoa (1888-1935). 
[ii] Ilustração Portuguesa, 2ª série, nº 83. Lisboa: 28-1-1922.
[iii] Florbela Espanca (1894-1932).
[iv] De “Charneca em Flor”.
[v] De “Livro de Máguas - Soror Saudade”.
[vi] De “Diário X”.
[vii] Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929, pintor naturalista e realista.
[viii] José Malhoa (1855-1933), pintor naturalista.
[ix] Francesco del Cossa (c. 1435-c. 1477), pintor italiano, renascentista.
[x] Giuseppe Arcimboldo (1526-1593), pintor italiano, maneirista.
[xi] Pieter Pauwel Rubens (1577-1640), pintor flamengo, barroco.
[xii] Nicolas Poussin (1594-1665), pintor francês, barroco.
[xiii] Rosalba Carriera (1675-1757), pintora italiana, barroca.
[xiv] Jacob van Strij (1756-1815), pintor holandês, barroco.
[xv] Jacob Cats (1741-1799), pintor holandês, rócócó.
[xvi] Jean-François Millet (1814-1875), pintor francês, realista.
[xvii] Frederic Edwin Church (1826-1900), pintor americano, romântico.
[xviii] Albert Camus (1913-1960), escritor franco-argelino.
 


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

ESTREMOZ - O neo-realismo a passar por aqui


Fig. 1 - Capa de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957)
para a 1ª edição (1952) de GANDAIA, romance
neo-realista de Romeu Correia.


Aqui se fala da oferta em 1955 do romance neo-realista
GANDAIA de Romeu Correia
 pela poetisa estremocense Maria Guiomar Ávila (1919-1992),
 à sua amiga e conterrânea,
a poetisa Maria de Santa Isabel (1910-1992). 



Preâmbulo
É conhecido o meu interesse pela arte e pela literatura neo-realistas como expressões de resistência e luta contra o fascismo.
Em Abril do corrente ano criei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, uma secção de POESIA NEO-REALISTA, onde até ao presente momento, divulguei 127 poemas de 24 poetas neo-realistas.
No nº 333, do jornal E, de 26 de Abril de 2024, comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, sob a epígrafe “POESIA E ARTE NEO-REALISTA / A luta contra o regime”, divulguei um conjunto de 6 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas e 13 poemas neo-realistas, qualquer deles a meu ver, notáveis e paradigmáticos.
Recentemente tive oportunidade de partilhar com o público, 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, pertencentes ao meu acervo pessoal. Os mesmos integraram a exposição “NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / COLECÇÃO HERNÂNI MATOS”, que de 15 de Junho a 15 de Setembro esteve patente ao público na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal de Estremoz Prof. Joaquim Vermelho. A mostra integrou-se num conjunto de iniciativas, de índole diversificada e plural, sob a epígrafe "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”, em boa hora promovidas pelo Município de Estremoz.
Paralelamente, como bibliófilo, tenho enriquecido o meu acervo de obras literárias de autores neo-realistas com aquisições no Mercado das Velharias em Estremoz. Ali vão parar livros que já integraram outras bibliotecas e que agora vão fazer outros pessoas felizes. Lá diz a lei de Lavoisier. “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Recentemente adquiri um lote apreciável de obras neo-realistas, entre as quais se situam dois livros que estão na origem do presente texto e no final vão perceber porquê.

GANDAIA – Romance de Romeu Correia
Comprei recentemente o livro GANDAIA [1] (Fig. 1), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1952), editado por Guimarães & Cia. Editora, Lisboa, com capa de Manuel Ribeiro de Pavia.

Sinopse de GANDAIA
“Nesta obra Romeu realça de uma forma muito viva a vida difícil dos tanoeiros, que decidem em boa hora criar uma cooperativa, que acabaria por ser boicotada pelos donos dos armazéns de vinho da Margem Sul...
O neo-realismo continua muito presente neste livro, com Romeu a falar do povo e de todos os seus problemas, mas também da sua ligação ao associativismo, essa marca almadense, neste caso particular, à Incrível Almadense.” [2]

Dedicatória e assinatura de posse
Logo na primeira página tem uma dedicatória, manuscrita a tinta azul: “Para a Maria Palmira, com um grande abraço de amizade da Maria Guiomar Ávila / 16-IV-955” (Fig. 2).
A terceira página ostenta a assinatura de posse: “Maria Palmira” (Fig. 3)

Fig. 2 - Dedicatória de Maria Guiomar a Maria Palmira.

Fig. 3 - Assinatura de posse de Maria Palmira.

Fig. 4 - Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses
 e Vasconcellos Alcaide (1910-1992).

Fig. 5 - Maria Guiomar Ávila (1919-1992).

Quem foi Maria Palmira? Trata-se de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos Alcaide (1910-1992) (Fig. 4), poetisa estremocense que com o pseudónimo literário de Maria de Santa Isabel, publicou: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior (1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997).
O seu avô paterno, Alberto Osório de Castro (1868-1946), foi magistrado, político, escritor e poeta. Passou largos anos em Goa, Moçâmedes, Timor e Luanda. Foi ministro da Justiça do Governo de Sidónio Pais e amigo fraterno do magistrado, professor e poeta Camilo Pessanha, (1867-1936).
A sua tia-avó, Ana de Castro Osório (1872-1935), grande paixão do poeta Camilo Pessanha (1867-1926), foi escritora, jornalista, pedagoga, feminista, maçónica e militante republicana.
Quem foi Maria Guimar Ávila? Trata-se de Maria Guiomar Ávila (1919-1992) (Fig. 5), professora e poetisa, natural de Estremoz, que publicou postumamente o livro de poesia “À janela da Vida” (1998).

OS TANOEIROS – Romance de Romeu Correia
Comprei também recentemente o livro OS TANOEIROS (Fig. 6), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1976), editado por Parceria A. M. Pereira, Lisboa, com capa de H. Mourato. A obra OS TANOEIROS, constitui uma versão refundida de GANDAIA, publicada 24 anos depois, com o título que tinha sido proibido pela Censura.

Fig. 6 - Capa de H. Mourato para a 1ª edição (1976) de
OS TANOEIROS, romance neo-realista de Romeu Correia.

Sinopse de OS TANOEIROS
No Prefácio diz Romeu Correia: “Os Tanoeiros é um romance que trata da decadência desta indústria, quando o vasilhame de madeira começa a sofrer concorrência de novos materiais. Os navios-tanques, os camiões cisternas, os depósitos de cimento, os recipientes de ferro, vão apressar o dobre de finados dos tanoeiros, desses artífices que, durante séculos, prepararam as aduelas de madeira macia, domando-as amorosamente ao fogo, para logo as cintar com arcos de aço. A história, que tem o seu início nos já longínquos anos trinta, termina vinte anos depois, em plena metade do nosso século, tão decisivo quão cruel no seu inexorável progresso técnico.
Aflorando os mil problemas do agregado familiar do homem-tanoeiro, as suas esperanças, lutas e canseiras numa hora de agonia para tão remota e respeitada profissão, este livro ressoará, assim, talvez, dramaticamente, como um requiem por esse velho ofício.”

Dedicatória
A primeira página do livro ostenta uma dedicatória do autor (Fig. 7), manuscrita a tinta preta: “Para a Sr.ª D. Maria Fernanda Andrade, com muita estima do Romeu Correia 14/7/1980”.

Fig. 7 - Dedicatória autógrafa de Romeu Correia a
D. Maria Fernanda Andrade.

Epílogo
Conheci pessoalmente as duas poetisas. Maria Guiomar Ávila morava no nº 18 da rua 5 de Outubro, em Estremoz, no edifício onde após o 25 de Abril funcionou a primeira sede do PPD. Maria Palmira morava na Casa da Horta Primeira na Rua da Levada em Estremoz e era casada com Roberto Augusto Carmelo Alcaide (1903-1979), proprietário dum armazém de tabacos no Largo General Graça, autodidacta, pintor, caricaturista, maquetista, cenógrafo e dramaturgo. Roberto era irmão do tenor lírico Tomaz de Aquino Carmelo Alcaide (1901-1967), ambos meus parentes afastados do ramo dos “Carmelo”.
Não me surpreende que Maria Guiomar Ávila tenha oferecido a Maria Palmira, o livro GANDAIA de Romeu Correia. Pese embora o facto de elas serem distintas senhoras da sociedade local de então, com um posicionamento ideológico bastante diferenciado do de Romeu Correia, eram senhoras cultas, receptivas às novidades literárias da época, muito em especial Maria Palmira de cuja biblioteca pessoal possuo exemplares que o confirmam. Para além disso, o mérito de Romeu Correia como escritor, já tinha sido reconhecido por críticos literários da época, como João Gaspar Simões (1949), António Quadros (1050) e Julião Quintinha (1952).
Creio que agora o leitor está em condições de perceber a razão do título escolhido para o presente texto “ESTREMOZ – O neo-realismo a passar por aqui”.

[1] “Gandaia” é um termo pertencente à gíria popular, cujo significado é: “Acto de remexer o lixo à procura do que nele se pode aproveitar”.
[2] Sinopse recolhida em https://tradestories.pt/carlos-lopes/livro/gandaia .

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Arte pastoril alentejana e Exposição do Mundo Português

 

Colher em madeira. Artefacto de arte pastoril alentejana da autoria de Joaquim Teodoro da Cruz. Orada, 1940.

Há alguns anos atrás, em conversa  amiga e habitual com o artesão oradense João Catarino, foi-me dito por este que estava à venda num antiquário de Borba, uma colher antiga em madeira, bordada com a imagem de Nossa Senhora [1]. Disse-me ainda, mais ou menos isto: “O professor é coleccionador, mas se não a comprar, compro-a eu, que aquilo é coisa antiga, feita por alguém da minha terra”. Como não deixo os meus créditos por mãos alheias, lá fui ao antiquário para “abrir os cordões à bolsa” e comprar a linda colher, cuja descrição passo de imediato a fazer.

Colher de madeira com 17 cm de comprimento, em cujo cabo encimado por uma cruz, figura a imagem lavrada de Nossa Senhora da Orada. Junto à base do manto, as iniciais "JT" do artesão Joaquim Teodoro da Cruz [2], inscritas num coração, o que decerto simbolizará a devoção do artista popular por aquela imagem de Nossa Senhora.

Próximo da zona de ligação do cabo à concha, as inscrições "ORADA" e "1940", distribuídas por duas linhas.

1940 foi o ano da "Exposição do Mundo Português", que teve lugar de 23 de Junho a 2 de Dezembro de 1940. Foi um evento realizado em Lisboa durante o regime do Estado Novo, com o propósito de comemorar simultaneamente as datas da Fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640).

ORADA é a aldeia da naturalidade de Joaquim Teodoro da Cruz, que terá participado na Exposição na qualidade de artesão.

A vila de Orada participou em 30 de Junho desse ano no “Cortejo Histórico do Mundo Português” (https://www.youtube.com/watch?v=yZg3f-4NXac), o qual teve lugar no recinto da Exposição e foi criado e encenado por Henrique Galvão.

A vila da Orada ficara, de resto, classificada em 2.º lugar no concurso "A aldeia mais portuguesa de Portugal"(https://books.openedition.org/etnograficapress/569), organizado em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). A apresentação da vila da Orada ao júri do concurso, decorreu a 2 de Outubro de 1938 e pode ser visualizada no extracto do filme "A Aldeia mais Portuguesa de Portugal" (https://www.facebook.com/watch/?v=1103185636453994), realizado por António de Menezes, em 1938. 


[1] Nossa Senhora da Orada é Padroeira da Freguesia da Orada no concelho de Borba e é venerada na Igreja de Nossa Senhora da Orada, que segundo a tradição terá sido fundada pelo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, o qual no local terá orado antes de partir para a Batalha dos Atoleiros, da qual o exército português saiu vitorioso. De salientar que o condestável era o donatário daquelas terras e a Igreja já aparece referenciada no século XVI.

[2] A identificação do autor a partir das iniciais foi feita após conhecimento de outra colher, identificada por Vitor Tavares Santos (https://www.facebook.com/photo/?fbid=10212487299973993&set=g.1505900599500258), o qual conheceu o artesão quando vivia em Cacilhas no andar superior do antigo Quartel de Bombeiros. A Vitor Tavares Santos os meus agradecimentos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

CICLO DA CORTIÇA - Uma jóia de arte pastoril alentejana

 


Fig. 1

Guardador de memórias de arte pastoril alentejana, sob a epígrafe QUANDO A CORTIÇA SE TRANSFORMA EM ARTE, publiquei recentemente no Facebook, as imagens de 3 quadros em cortiça, pertencentes ao meu acervo de arte pastoril alentejana, os quais mereceram o apreço generalizado de amigos e seguidores.

Uma dessas pessoas foi a minha estimada amiga Manuela Mendes, que há muito assumiu o Compromisso de Salvaguarda da Memória da Fábrica Robinson de Portalegre, que muito justamente considera a verdadeira JOIA da COROA de Portalegre. Como comentário à terceira publicação que eu fiz dos meus quadros de cortiça, perguntou:

- “E este Prof? Um dos muitos exemplares de grande formato feito em Portalegre na primeira metade do séc. XX.”

Referia-se a uma folha de calendário para os meses de Maio e Junho de 1963, impresso em aglomerado de cortiça e editado pela Fábrica Robinson de Portalegre (Fig. 2).
A minha resposta foi a seguinte:

Manuela:

Este quadro (Fig. 1) é de tal maneira extraordinário, que se situa num patamar superior a tudo aquilo que me é dado conhecer.

A moldura é em cortiça.

A orla que ladeia interiormente a moldura é um autêntico filigrana do mesmo nobre material.

O tema do quadro é o registo etnográfico do “Ciclo da cortiça” nas suas diferentes fases em tempos de antanho, com a particularidade de os intervenientes no ciclo estarem representados por figurinhas esculpidas em madeira.
Onde parará esta jóia da arte pastoril alentejana? Quem terá sido o seu criador? São duas perguntas (im)pertinentes, que ficam à espera de resposta.

Se me autorizar a reproduzir a imagem e se não se importar, após adaptação publicarei o presente texto no meu blogue.

Bem-haja. Um forte abraço deste caminheiro e guardador de memórias da arte pastoril alentejana, que admira todo o seu trabalho em prol da preservação da Memória da Fábrica Robinson de Portalegre.

E a autorização chegou.

Hernâni Matos


Fig. 2