quarta-feira, 26 de março de 2025

Os Bonecos de Estremoz na vida de Madalena Bilro


A barrista Madalena Bilro ladeada por Isabel Borda d’Água e José Sadio,
respectivamente directora do Museu Municipal e presidente do Município.

Fotografias de Luís Mendeiros - CME 

Este o título da exposição inaugurada no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, no passado sábado, dia 16 de Julho, pelas 11 horas e que ali ficará patente ao público até ao próximo dia 4 de Setembro.
Ao acto inaugural compareceram cerca de 3 dezenas de pessoas, entre familiares, amigos, admiradores, clientes e oficiais do mesmo ofício, que ali foram testemunhar o apreço que têm pela barrista e pelo trabalho que vem realizando.
O evento foi liderado pelo Presidente do Município, José Sadio, que elogiou o trabalho da barrista, a quem felicitou, bem como salientou a importância desempenhada pela Academia Sénior e pelo Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, na formação da barrista. Anteriormente, usara da palavra, Isabel Borda d’Água, directora do Museu Municipal de Estremoz, que historiou o processo formativo da barrista, cujo êxito em grande parte lhe é devido como formadora. Finalmente, usou da palavra a barrista, que emocionada agradeceu os testemunhos de carinho ali manifestados, bem como o trabalho de excelência dos seus formadores e todo o enquadramento viabilizado pelo Município, pelo CEARTE e pela ADERE.
Para compreender o significado e o alcance da presente exposição, torna-se necessário passar em revista uma súmula da vida de Madalena Bilro.

Infância e juventude
A 9 de Abril de 1959 numa casa da rua Bento Pereira, na freguesia da Matriz, Borba, nasceu uma criança do sexo feminino a quem foi posto o nome de Madalena dos Prazeres Grego Bilro. Filha de Joaquim Álvaro Bilro (agricultor e trabalhador das pedreiras) e de Aldonsa dos Prazeres Grego (doméstica). O casal já tinha dois filhos, João e José, actualmente com 73 e 69 anos, ambos aposentados.
Madalena foi baptizada na Igreja Matriz de Borba, localidade onde fez a Instrução Primária e concluiu o Ciclo Preparatório.
Durante a infância e a juventude, para além de brincar com as crianças da sua idade, ajudava a família nas vindimas, na apanha da azeitona e na recolha de erva em propriedades da sua família. Mas o que mais a fascinava eram os lavores femininos, como o tricot e o croché que aprendeu com as tias e a com a mãe. Com esta última aprendeu mesmo a fazer flores em folha de milho, tecido e papel, parafinado ou não, as quais eram utilizadas para decorar maquinetas de Presépio, enfeitar bolos de casamento ou fazer pequenos raminhos com que as senhoras ornamentavam o vestuário. Tudo isto tinha sido aprendido pelas mulheres da sua família com as freiras que estavam na Misericórdia e que pertenciam à Ordem das Servas do Senhor. Foi assim que Madalena Bilro ingressou no mundo das Artes Tradicionais, por via da Arte Conventual.

Início da actividade profissional
Em 1976 começou a trabalhar na Adega Cooperativa de Borba.
Em 30 de Outubro de 1983, com a idade de 24 anos, casou na Igreja Matriz de Borba com Sebastião Joaquim Faia Martins, de 23 anos de idade, adegueiro na Adega Cooperativa de Borba, adoptando do marido o sobrenome Martins.
Do casamento nasceram dois filhos que são a luz dos seus olhos: João, de 38 anos de idade, Engenheiro Civil e, Ângela, de 29 anos de idade, Terapeuta da Fala. Tem igualmente dois netos que são o seu enlevo: Tomás com 5 anos de idade e Pedro com 2.
Madalena trabalhou durante 36 anos nos mais diversos sectores da Adega Cooperativa de Borba: no armazém, na linha de enchimento, no laboratório, na loja de vinhos, na portaria e nas visitas guiadas. Era uma funcionária muito activa e empenhada em tudo aquilo que fazia, gostando muito em especial de comunicar com o público. Graves problemas com a coluna, levaram-na a aposentar-se por invalidez. Vê então a sua vida desmoronar-se e entra em depressão, devido a inactividade forçada.
Entretanto, Madalena já residia desde 1987 na Vila de Arcos e sendo borbense de nascimento, considerava-se também há muito uma arcoense do coração e como tal era reconhecida pela comunidade local. Aí ouviu falar na Academia Sénior de Estremoz, enquanto espaço de acolhimento e de integração, onde são ministradas inúmeras disciplinas, que os interessados podem escolher, de acordo com os seus interesses. Madalena resolveu então inscrever-se em várias disciplinas da Academia Sénior, sendo uma delas a Barrística, para a qual se sentiu desde logo atraída, dado exigir habilidade manual, sensibilidade e dedicação, qualidades que há muito reunia, desde que começou a trabalhar em Artes Tradicionais com as tias e a mãe. A opção de Madalena foi determinante, uma vez que na sequência da mesma, conseguiu ultrapassar os graves problemas pessoais que a atormentavam.

A génese da barrista
Entre 2014 e 2019 frequentou a Academia Sénior de Estremoz, onde teve aulas de Barrística com Isabel Borda d’Água, dos Serviços Educativos do Museu Municipal de Estremoz.
Nessas aulas tomou conhecimento da História dos Bonecos de Estremoz e aprendeu as técnicas das várias fases de produção dos mesmos, desde a modelação até à decoração e acabamento. Isabel Borda d’Água soube motivá-la com a sua acção pedagógica, pelo que como aluna, Madalena Bilro se vai interessando cada vez mais pela Barrística, de tal modo que a sua actividade acaba por transvasar a sala de aula e lhe passa a ocupar também os tempos livres em sua casa. Madalena compra barro e modela Bonecos que depois com o apoio da professora, coze na mufla do Museu Municipal. São Bonecos que generosamente oferece aqueles que lhe são gratos: familiares, amigos e médicos.
Em 2019 frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que teve lugar no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte. O Curso foi promovido pelo CEARTE - Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património, em parceria com o Município de Estremoz. No Curso aprofundou os conhecimentos de Barrística de Estremoz, com Mestre Jorge da Conceição.
Ainda em 2019 recebeu Carta de Artesão e de Unidade Produtiva Artesanal na área da Cerâmica Figurativa, emitida pelo CEARTE.
Também em 2019 foi reconhecida como artesã produtora de Bonecos de Estremoz. O reconhecimento consta de um certificado atribuído pela Adere-Certifica, organismo nacional de acreditação a quem compete a certificação de produções artesanais tradicionais, com garantia da qualidade e autenticidade da produção.
O ano de 2019 é um ano marcante na vida de Madalena Bilro, que inflecte as características da sua actividade, passando a produzir e a comercializar como artesã certificada. Para tal, adapta uma dependência da sua casa a oficina, onde passa a modelar e a pintar os seus Bonecos, que numa primeira fase são cozidos na mufla do Museu Municipal, até que numa segunda fase passam a ser cozidos em mufla própria, adquirida no início de 2020.

A exposição em si
A exposição visa mostrar o percurso da barrista desde o seu primeiro contacto com o barro, até à actualidade. Para tal, integra 26 figuras ou conjuntos de figuras distribuídos por 3 núcleos de diferentes temporalidades e cuja composição é a seguinte:
1 - FIGURAS PRODUZIDAS NAS AULAS DE BARRÍSTICA DA ACADEMIA SÉNIOR DE ESTREMOZ: Dama-1, Dama-2, Maquineta com Presépio, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, O Amor é Cego.
2 - FIGURAS PRODUZIDAS NO I CURSO DE TÉCNICAS DE PRODUÇÃO DE BONECOS DE ESTREMOZ: Peralta, Senhora de pezinhos, Mulher das galinhas, Nossa Senhora da Conceição.
3 - FIGURAS PRODUZIDAS NA ACTUALIDADE: - Imagens devocionais (Menino Jesus de Oratório, Santo António, Rainha Santa Isabel e São João Baptista); - Presépios (Presépio de 3 figuras – 1, Presépio de 3 figuras – 2); - Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas (Cozinha dos ganhões, Mulher com patos, Pastor do harmónio); - Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico (Mulher a lavar o menino); - Figuras de Carnaval (Bailadeira Grande, Bailadeira Pequena, O Amor é Cego, Primavera, Rei Negro); - Assobios (Cesto com jarros).

Características do trabalho de Madalena Bilro
A modelação é sóbria, mas cuidada. Nela, a barrista dá sempre o melhor de si própria, na busca permanente da perfeição.
O cromatismo das suas figuras é inconfundível. A decoração recorre à utilização de cores e tonalidades suaves e calmas, que nos parecem querer transmitir uma mensagem de Paz, que brota do mais fundo da alma da barrista e que decerto tem a ver com o modo como idealiza o Mundo e a Vida.
Sem sombra de dúvida que as marcas identitárias, indeléveis, da barrista, são o cromatismo inconfundível das suas figuras, aliado a uma representação “sui generis” do olhar das mesmas.
Do binómio modelação-decoração, transparece a entrega total da barrista na criação de cada figura com a magia das suas mãos prendadas, habituadas de longa data a lavores femininos de matriz conventual, cultivados em contexto familiar com sua mãe e suas tias.

Hernâni Matos
Publicado no jornal E nº 294 - 21 de Julho de 2022




A barrista na sua oficina.

terça-feira, 25 de março de 2025

Barristas de Estremoz do presente





ANA CATARINA GRILO (1974- )- 
Carlos Alberto Alves na 45ª Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde
INOCÊNCIA LOPES (1973-   )
CURIOSIDADES - Figurado de Estremoz de Inocência Lopes
Bonecos de Estremoz de Inocência Lopes
IRMÃOS GINJA (1938- , 1949- )
IRMÃS FLORES (1957, 1958- )
NATIVIDADE - uma tipologia de cantarinha enfeitada, criada pelas Irmãs Flores 
EXPOSIÇÃO "IRMÃS FLORES, 50 ANOS EM 50 BONECOS" 
Exposição "Irmãs Flores, 50 anos em 50 Bonecos" 
Figurado de Estremoz em selo
JOANA OLIVEIRA (1978-   )
Joana Santos e o “Ti Manel do tarro”
O Carlos e a Joana: Olha que dois!
A Boniqueira Joana
JORGE CARRAPIÇO (1968 -  )  
Bonecos de Estremoz: Jorge Carrapiço
JORGE DA CONCEIÇÃO (1963- ) 
JOSÉ CARLOS RODRIGUES (1970-  )
José Lacerda no Mercado das Velharias em Estremoz 
Costurar é preciso!
MADALENA BILRO (1959-  )
MANUEL J. BROA (  -  )
MARIA ISABEL CATARRILHAS PIRES (1955-  )
Um singular berço das pombinhas de Ricardo Fonseca
Contributo para uma Simbólica das Figuras de Presépio
SARA SAPATEIRO  (1995-  )
Sara Sapateiro e o aristocrata rural
VERA MAGALHÃES (1966- ) 
TRADIÇÃO E CULTURA - Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães
Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães
Seis esculturas em alto relevo
Vera Magalhães e a escultura em alto-relevo
As Manas Perliquitetes de Vera Magalhães
Auto das damas dos girassóis
Vera Magalhães no Reino de Liliput
A Dama dos Girassóis de Vera Magalhães


Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 15 de Julho de 2021

segunda-feira, 24 de março de 2025

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

domingo, 23 de março de 2025

Púcaros de barro de Estremoz

As Meninas (1656-57). Óleo sobre tela (318 x 276 cm), de Diego Velázquez (1599-1660),
 patente ao público no Museu do Prado, Madrid. A menina Maria Agustina Sarmiento
oferece um púcaro de barro vermelho de Estremoz, à princesa Margarida de Áustria.




Os púcaros de barro de Estremoz foram ao longo dos tempos, fonte de inspiração para autores alentejanos, tanto eruditos como populares. Assim, a nível de poesia erudita, o poeta, historiador, ensaísta, polemista, doutrinador e político monfortense António Sardinha (1) (1887-1925), é autor do poema:

O ELOGIO DO PÚCARO

Tu és a minha companha,
eu tenho-te á cabeceira
ó pucarinho de barro,
enfeite da cantareira.

Amigo certo e sabido,
matas a sede e o calor.
Tu vales mais do que pesas,
não se te paga o valor!

Meu bocadinho de barro,
chiando como um cortiço,
tu dás-te com toda a gente,
não te deshonras por isso!

Prantas a agua fresquinha,
sem ti não passa ninguem.
Mimo de reis e de bispos,
não custas mais que um vintem!

Assim, singelo e sem pompa,
ganhaste fama a Estremoz.
Ah, desgraçado daquele
que nunca a bôca te pôs!

És a cubiça das velhas,
contigo se enche um mercado.
Então a vista que metes,
quando tu és empedrado?!

Quero casar-me. Já tenho
dois pucarinhos pequenos.
Pois, p'ra principio de arranjo,
outros começam com menos!

- Amor, se fôres á feira
traz-me uma prenda galante.
Não tragas nada do ourives,
- um pucarinho é bastante!

Vae alta a febre, vae alta,
- p'ra que é que os médicos são?
Ó pucarinho de barro,
acode a esse febrão!

Eu nunca vi neste mundo,
que é gastador e que é louco,
coisa que tanto valesse,
mas que custasse tão pouco!

Assim, singelo e sem pompa,
tu déste fama a Estremoz!
- Ah, desgraçado daquele
que nunca á bôca te pôs!

Em termos de poesia erudita, é de referir também, de Maria de Santa Isabel (2),(3), o soneto:

PUCARINHOS DE BARRO

Pucarinhos de barro, quem me dera
Sentir, na minha boca, essa frescura
Da vossa água perfumada e pura,
Que me trás o sabor da primavera!

Quanta boca ansiosa vos procura,
Num símbolo de crença e de quiméra:
Simples imagem viva, bem sincera,
Dum mundo de ilusões e de ternura!

Meus santos pucarinhos, milagrosos,
Cumprindo as gratas obras do Senhor,
Dando a beber aos lábios sequiosos:

Minha boca vos beija com fervor,
Como se, noutros tempos luminosos,
Beijasse ainda o meu primeiro amor!

Também o cancioneiro popular alentejano exalta a excelência do púcaro:

Púcaro tão delicado
Que água tão saborosa!
Quem na bebe, é um cravo,
Quem na basa, é uma rosa. (4)

Dava-se água pelo púcaro, o que não era privilégio de todos:

Senhora, que a todos daes
Agua por púcaro novo,
Só a mim é que deixaes
Desconsolado de todo. (5)

Havia quem implorasse água do púcaro:

“M’nina que estás à janella,
Co’ pucarinho na mão,
Dá-lhe volta, se tem agua
Réga-me este coração.” (5)

Termino as referências literárias aos púcaros de barro com um texto do médico, escritor, jornalista e político aljustrelense, Manuel de Brito Camacho (1862-1934). Trata-se de um excerto do conto “O Romana” (6). Nele, o autor evoca a ida na sua juventude a uma feira, onde na secção de loiças:
“Iam-se-me os olhos nos pucarinhos de Estremoz, com incrustrações de pedras brancas, alguns com desenhos de fantasia, reproduzindo animaes duma fauna que se extinguiu m uito antes do diluvio universal. Por força que minha mãe havia de comprar-me um daqueles pucarinhos, e mais um barrelinho para ter agua fresca, no verão, e mais um galo com assobio, de grande crista vermelha, importando tudo bem regatiadinho, em quantia nunca inferior a doze vintens.”.

Publicado inicialmente a 13 de Março de 2013

sábado, 22 de março de 2025

Adágios para o Dia Mundial da Água



AGUADEIRO (Alentejo - Século XIX-XX). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre
tela (44,5 x 41,3 cm). Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto.

À CATARINA, MINHA FILHA:

PRÓLOGO

A comemoração do Dia Mundial da Água, recurso finito, do qual estamos dependentes, passa pela consciencialização pública da importância de que se reveste a conservação, preservação e protecção da água.
Resolvemos dar um contributo para essa consciencialização, recorrendo à tradição oral e mais particularmente ao adagiário português sobre a água. Da nossa colecção de duzentos e noventa e cinco adágios sobre a água, extraímos alguns, visando contribuir para aqueles objectivos e sistematizar também o nosso pensamento sobre o assunto.

SINOPSE DUM ADAGIÁRIO PORTUGUÊS DA ÁGUA

A água é um agente de erosão:
- A água bate na rocha mas quem paga é o mexilhão.
- A água cava a dura pedra.
- A água é branda e a pedra dura; mas, gota a gota, fará fundura.
- Água escava a rocha, amolecendo-a.
- Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura.
- Não há água como a do Norte que até às pedras amolece.
A água tem alguns efeitos nocivos:
- A água arromba os navios.
- A água faz desabar as paredes.
A água é uma bebida de excelência:
- A água é a melhor bebida.
- Água que veja o sol: sem cor, sem cheiro e sem sabor,
- Antes sem luz que sem água.
- Bebedice de água nunca acaba.
- Estar com o bico na água e não beber.
- Ir com muita sede ao pote.
- Na fonte onde hás-de beber, não deites pedras.
- Não bebas água que não vejas, nem assines carta que não leias.
- Não sujes a água que hás de beber.
- Não vá com tanta sede ao pote.
- Ninguém suje a água que tem de beber.
- Nunca digas, desta água não beberei.
- Quando a vasilha é nova e tem água boa, todos querem beber por ela.
- Quando não puderes beber na fonte, não bebas no ribeiro.
- Quando puderes beber na fonte, não bebas no ribeiro.
- Quanto mais água, mais sede.
- Quem bebe água na bica, aqui fica.
- Quem come salgado, bebe dobrado.
- Quem tanta água há-de beber, há mister comer.
- Quem vai à fonte e não bebe... não sabe o que perde.
Os bêbados escarnecem da água:
- A água é boa para lavar os pés.
- A água é para os peixes e o minar para a toupeira.
- A água faz bem, mas só daquela que o vinho contém.
- A água faz criar rãs na barriga.
- Água não quebra osso.
- Água para os peixes, vinho para os homens.
- Com água cantam as rãs.
- Com água ninguém canta.
Todavia, os bêbados são escarnecidos devido à água:
- A água não empobrece, nem envelhece.
- Afoga-se mais gente em vinho do que em água.
- Com água ninguém se embebeda.
- Quem almoça vinho, janta água.
- Quem bebe água não se empenha.
- Quem ceia vinho, almoça água.
Quer-se água corrente para beber:
- Água corrente não faz mal à gente.
- Água corrente não mata a gente.
- Água corrente, água inocente.
- Água corrente, esterco não consente.
- Água corrida. não faz mal à barriga.
Para beber são desaconselhadas as águas paradas:
- A Água detida é má para bebida.
- A água silenciosa é a mais perigosa.
- Água de alagoa nunca é boa.
- Água detida é má para bebida.
- Água detida faz mal à vida.
- Água parada cria limos.
- Água parada: água estragada.
- Água que não soa não é boa.
- Água silenciosa é sempre perigosa.
- Águas paradas, cautela com elas.
- Não há água mais perigosa do que a que não soa.
- Não há pior água que a mansa.
- Não te fies em vilão, nem bebas água de charqueirão.
Aconselha-se a ferver a água:
- Água danificada, fervida ou coada.
- Água fervida alimenta a vida.
- Água fervida ampara a vida.
- Água fervida tem mão na vida.
A Medicina Popular refere-se à água:
- Água ao figo e à pêra vinho.
- Água fria e pão quente, mata a gente.
- Água fria e pão quente, nunca fizeram bom ventre.
- Água fria lava e cria.
- Água fria tem mão na vida.
- Água fria, sarna cria; água roxa, sarna escocha.
- Água gelada e pão quente, não fazem bom ventre.
- Água sobre mel, sabe bem e não faz bem.
- Água sobre mel, sabe mal e não faz bem.
- Com malvas e água fria, faz-se um boticário num dia.
- Come pão, bebe água: viverás sem mágoa.
- Onde a água sobra, a saúde falta.
- Quando Deus quer, água fria é remédio.
- Se queres beber sem receio, bebe água viva.
É variável a preferência por água fria ou água quente:
- A água é fria, mas mais é quem com ela convida.
- A quem tem vida, água fria é mezinha.
- Água quente adivinha outra.
- Água quente escalda a gente.
- Água quente, nem a são, nem a doente.
- Água quente, saúde para o ventre.
A água é um agente de lavagem:
- A água lava tudo.
- A água lava tudo, menos as más acções.
- A água lava tudo, menos as más-línguas.
- A água lava tudo, menos quem se louva e as más-línguas.
- Água suja sempre lava.
- Até ao lavar dos cestos é vindima.
- Lava mais água suja do que mulher asseada.
Com água se apagam fogos:
- O fogo e a água, são maus amos e bons criados.
- Queimada a casa, acudir com água.
- Sobre fogos, água; sobre peras, vinho.
A água é um agente de rega:
- A água é o sangue da terra.
- A água rega, o Sol cria.
A água comanda todo o calendário agrícola:
- A água de Janeiro traz azeite ao olival, vinho ao lagar e palha ao palheiro.
- A água de Janeiro vale dinheiro.
- Água de Janeiro mata o onzeneiro
- Janeiro quente trás o diabo no ventre.
- Por São Vicente (22 de Janeiro), toda a água é quente.
- Água de Fevereiro vale muito dinheiro.
- Água de Fevereiro, mata o Onzeneiro.
- Em Fevereiro entra o sol em cada ribeiro.
- Quando não chove em Fevereiro, nem bom prado nem bom celeiro.
- Água de Março é pior do que nódoa no fato.
- Quando o Março sai ventoso, sai o Abril chuvoso.
- A água com que no Verão se há-de regar, em Abril há-de ficar.
- A água de Abril é água de cuco, molha quem está enxuto.
- A água, em Abril, carrega o carro e o carril.
- Abril frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado.
- Abril, chuvas mil.
- Em Abril águas mil.
- Em Abril, lavra as altas, mesmo com água pelo machil.
- O Abril bem molhado, enche a tulha e farta o gado.
- A água, Maio a dá, Maio a leva.
- Água de Maio, pão para todo o ano.
- Águas da Ascensão, das palhas fazem grão.
- Uma água de Maio e três de Abril valem por mil.
- Chuva de São João (24 de Junho) tira vinho e azeite e não dá pão.
- A água de Junho, bem chovidinha, na meda faz farinha.
- A água de Santa Marinha (18 de Julho), na meda faz farinha.
- Água de Julho, no rio não faz barulho.
- Quando é Junho a valer, pouco costuma chover.
- A água de Agosto faz mal ao rosto.
- Água de Agosto: açafrão, mel e mosto.
- Águas verdadeiras, por São Mateus (21 de Setembro) as primeiras.
- Setembro molhado, figo estragado.
- Dos Santos (1 de Novembro) ao Natal (25 de Dezembro) é Inverno natural.
- Dos Santos (1 de Novembro) ao Natal (25 de Dezembro) ou bom chover ou bom nevar.
- Depois de São Martinho (11 de Novembro), bebe o vinho e deixa a água para o moinho.
- Água de nevão dá muito pão.
A água está presente na pesca:
- Água preta não dá peixe.
- Grandes peixes pescam-se em grandes rios.
- Na água revolta, pesca o pescador.
A água é um bem em movimento:
- A água acode sempre ao mais baixo.
- A água ao moinho de longe vem.
- A água corre para a água.
- A água corre para o mar.
- A água corre para o poço.
- A água corre sempre para o mais baixo.
- A água corredia, não guardes cortesia.
- A água o dá, a água o leva.
- A água, por onde passa, molha.
- Água vem, água vai.
- Águas passadas não movem moinhos.
- Corre a água para o mar e cada um para o seu natural.
A água é um bem com valor:
- Quando a fonte seca é que a água tem valor.
- Só se sente a falta de água, quando o cântaro está vazio.
A água é um bem finito, que deve ser conservado:
- A água da fonte é muita, mas também se acaba.
- A água falta nos meses, mas nunca falta no ano.
- Água que não hás-de beber, deixa-a correr.
- Quem não poupa água e lenha, não poupa o mais que tenha.
A água não podia deixar de estar presente na religião:
- Água benta e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
- Presunção e água benta, cada um toma a que quer.
- Presunção e água benta, cada um toma a que quer; mas a pia se esvazia, quando passa uma mulher.
- Quando a água benta é pouca e os diabos são muitos, não há quem os vença.
Referências também à água e à mulher:
- Água e mulher, só boa se quer.
- Quando uma mulher não sabe o que responder é porque não há mais água no mar.

EPÍLOGO
Mais poderíamos acrescentar, mas esta prosa já vai longa, pelo que preferimos rematá-la, acrescentando:

- Conselhos e água só se dão a quem pedir.

Publicado inicialmente a 22 de Março de 2012