quinta-feira, 17 de julho de 2025

António Cunhal (1910-1932), artista plástico neo-realista


António Cunhal (1910-1932). Semeador. Desenho a
tinta-da-china sobre cartolina. 25 x 16 cm. Assinado
e não datado. Colecção Hernâni Matos.

Um Cunhal menos conhecido
ANTÓNIO CUNHAL (1910-1932), natural de Coimbra, faleceu em Lisboa em 1932, vítima de tuberculose e gangrena pulmonar. Filho de Avelino Cunhal (1887-1966) e irmão de Álvaro Cunhal (1913-2005), advogados, políticos, escritores e artistas plásticos neo-realistas.

Artista plástico
Com 21 anos de idade, António Cunhal expôs 26 trabalhos seus no Salão “PINTURAS E DESENHOS DE ANTÓNIO CUNHAL”, patente ao público entre 1 e 15 de Junho de 1931, na prestigiada Papelaria Progresso, situada na Rua do Ouro 151 a 155, em Lisboa.
Nesse salão esteve exposto “O semeador”, desenho a tinta-da-china sobre cartolina, aqui reproduzido, adquirido por mim em leiloeira, o qual pertenceu à colecção do Dr. Fernando Abranches Ferrão (1908-1985), advogado de defesa de opositores ao regime do Estado Novo, onde se destacam os processos da Revolta da Mealhada (1947), da Comissão Distrital de Lisboa do MUD - Movimento de Unidade Democrática (1948), de Humberto Delgado na sequência das eleições Presidenciais (1958), do Golpe de Beja (1962) e dos estudantes (1965).
“O semeador” está assinado mas não está datado, pelo que será de 1931 ou de data anterior, qualquer delas afastadas dos finais dos anos 30, apontados como período de surgimento do neo-realismo português. Todavia, não só pelo conteúdo temático, mas sobretudo pela estética da representação, sou levado a considerar “O semeador” como uma obra neo-realista e a incluir António Cunhal no rol dos artistas plásticos neo-realistas.
António Cunhal está representado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa e em colecções particulares.

Cinesta de animação
António Cunhal realizou em 1930 com Raul Faria da Fonseca, o filme de animação “A lenda de Miragaia”. O argumento é da autoria de ambos, inspirado no Romanceiro de Almeida Garrett. Baseia-se numa lenda popular que relata como o rei Ramiro II de Leão raptou a princesa moura Zahara e como o seu irmão Alboazar raptou a esposa de Ramiro, a rainha Gaia.
Trata-se do primeiro filme de animação português, recorrendo à técnica inovadora de animação de silhuetas recortadas, as quis foram fotografadas uma a uma para criar o movimento.
O filme, com 400 metros de extensão, era constituído por 24 800 fotogramas, que representavam outros tantos desenhos e movimentos.
“A Lenda de Miragaia”, produção da Ulyssea Film, estreou-se em Lisboa, no Jardim Cinema, a 1 de Junho de 1931.

Epílogo
Talvez a obra de António Cunhal merecesse uma investigação apurada, visando concluir se é ou não um artista plástico neo-realista, tal como eu aqui o proclamo.

Publicado inicialmente em 3 de Fevereiro de 2024

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Ceifeira adormecida - Litografia de Manuel Ribeiro de Pavia


Ceifeira adormecida (1955). Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).
 Litografia sobre papel - prova nº 7. 26 x 36 cm (mancha).
Colecção Hernãni Matos

Ceifeira adormecida (1955). Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).
Litografia sobre papel 19/50. 26 x 36 cm (mancha).
Colecção Hernãni Matos.

No Alentejo de outros tempos, a colheita do trigo recorria à ceifa manual, actividade sazonal dificultada pelo rigor do clima. Ceifeiros e ceifeiras sentiam-no bem no corpo. O trabalho penoso e mal pago, realizava-se de “sol a sol”, interrompido apenas por refeições rápidas e frugais. A “bucha” ao pegar no trabalho, o “almoço” pelas 10 horas da manhã, o “jantar” sensivelmente pelas 2 da tarde, a que se seguia a “sesta” de duas horas para um retemperar de forças. A sesta ocorria à sombra de uma azinheira ou de molhos de trigo e durava até serem acordados pelo manajeiro. A faina prolongava-se até às 8 da noite, altura em que tinha lugar a “ceia”, a última refeição do dia, finda a qual trabalhavam até haver luz e o manajeiro dar a ordem de “solta”. Depois era o descanso nocturno, até ao nascer do sol do dia seguinte.

A sesta dos ceifeiros é um tema recorrente na arte portuguesa. Manuel Ribeiro de Pavia na litografia “Ceifeira adormecida” (Fig. 2 e Fig. 3) patenteia uma ceifeira a descansar, encostada a uma árvore e protegida pela sua sombra. Observe-se que a litografia é anterior à criação da GRAVURA - Sociedade Portuguesa de Gravadores (1956). A prova nº 7 da litografia “Ceifeira adormecida” (Fig. 1) é uma prova de cor com um cromatismo mais vivo que o trabalho final (Fig. 2), o qual teve uma tiragem de 50 exemplares cujo cromatismo é mais sóbrio.

José Malhoa (Fig. 3) no óleo sobre tela “A sesta dos ceifeiros” (1895), mostra um grupo de ceifeiros a descansar à sombra de uma árvore, a qual não aparece representada.

Dordio Gomes (Fig. 4) no óleo sobre tela “A sesta dos ceifeiros” (1918), representa ceifeiros a descansar, protegidos por molhos de trigo. 

 Hernâni Matos

Publicado inicialmente a 16 de Julho de 2024

Fig. 3 - A sesta dos ceifeiros (1885). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (95 x 132 cm).
Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, Lisboa.

Fig. 4 - A sesta dos ceifeiros – Alentejo (1918). Dórdio Gomes (1890-1976).
Óleo sobre tela (74 x 59 cm). Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Sei que não vou por aí!


Foto de Almada Negreiros (1893-1970), na I Conferência Futurista, em Abril de 1917.

O respeito às raízes e à nossa matriz identidária, bem como a verticalidade de carácter, são o que há de mais importante nas nossas vidas.
Não se compram numa grande superfície, nem tão pouco se adquirem em qualquer retiro de avental. Têm a ver com os nossos genes, com o que aprendemos com os nossos pais e avós, bem como aquilo que partilhamos com os nossos companheiros de estrada. São eles os nossos melhores conselheiros. Com eles aprendemos a caminhar e a descobrir caminho, caminhando.
São marcas de quem nunca se rende e não prescinde da sua individualidade, tendo assumidamente a coragem de não se esconder comodamente atrás de um qualquer colectivo. Cartilhas há muitas, algumas das quais castram e subjugam o individual em nome dum colectivo que alguém supostamente mandatado e auto-predestinado, controla. Por mim e em nome da ânsia de liberdade que é meu timbre, sou levado a parafrasear José Régio no “Cântico Negro”:

"Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 15 de Julho de 2013

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Atributos, pormenores e estilo


Mulher a passar a ferro. Jorge da Conceição (1963-  ). Colecção do autor.


Prólogo
A barrística de Estremoz é diversificada, pelo que legitimamente se põe a questão de saber quais as características que os exemplares produzidos ao modo de Estremoz, não podem deixar de ter. Vou procurar dar uma resposta a essa questão num caso concreto.

Atributos
Na barrística de Estremoz, cada um dos chamados “Bonecos da Tradição”, goza de determinados atributos. Estes não são mais que as particularidades invariantes que obrigatoriamente um barrista deve ter em conta na confecção de cada uma dessas figuras. Essas particularidades estão associadas a cada uma dessas figuras e ajudam a identificá-las.
No caso da figura conhecida por “Mulher a passar a ferro” (Figs. 1 a 13) esses atributos são quatro: mesa, peça de roupa, ferro de engomar e mão direita da mulher a segurar o ferro;

Pormenores
Para além das particularidades invariantes atrás referidas, existem outras particularidades variáveis (pormenores) cuja inclusão na manufactura de uma figura, depende do livro arbítrio do barrista. No caso da figura conhecida por “Mulher a passar a ferro”, esses pormenores são os seguintes:
- MESA: pode variar o tipo de mesa, bem como a sua cor e a cor do tampo;
- FERRO DE ENGOMAR: pode ser de diferentes tipos;
- PEÇA DE ROUPA A SER ENGOMADA: de tipo e cor variável;
- PEÇAS DE ROUPA EXSTENTES EM CIMA DA MESA: Em número, tipo e cor variável;
- COBERTURA DO TAMPO DE MESA: pode existir ou não;
- MÃO ESQUERDA DA MULHER: pode estar assente sobre a mesa, segurando ou não a peça de roupa, mas pode estar também apoiada no corpo, em posição variável; 
- VESTIDO DA MULHER: de tipo, cor e componentes variáveis;
- OUTRO VESTUÁRIO DA MULHER: pode trajar avental ou ter um xaile nas costas;
- CABELO DA MULHER: o penteado é variável;
- CABEÇA DA MULHER: a cabeça pode estar a descoberto ou ser protegida por um lenço ou ainda estar ornamentada com uma canoa;
- GEOMETRIA DA BASE: rectangular ou trapezoidal, com as pontas vivas, adoçadas ou aparadas em bisel;
- TOPO DA BASE: verde-escuro simples ou pintalgado de zarcão, branco e amarelo. Em alternativa pode ter uma decoração que simula um chão, como por exemplo, de tijoleira;
- ORLA DA BASE: zarcão, castanho ou pintalgado com as cores da base.

Estilo
O estilo é o modo como cada barrista se exprime, revelando a sua individualidade através de marcas identitárias que lhe são próprias e que se repetem ao longo da sua produção.

Epílogo
A pluralidade de resultados distintos possíveis de obter na confecção de uma figura, mesmo dos chamados “Bonecos da tradição”, é reveladora da riqueza da barrística de Estremoz.

Publicado inicialmente em 6 de Outubro de 2020
Oficinas de Estremoz do séc. XIX. Colecção do autor.

Ana das Peles (1859-1945). Colecção Jorge da Conceição.

Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção Jorge da Conceição.

Sabina da Conceição (1921-2005). Colecção do autor.

Liberdade da Conceição (1913-1999). Colecção Jorge da Conceição.

José Moreira (1926-1991). Colecção do autor.


Maria Luísa da Conceição (1934-2015). Colecção Jorge da Conceição.

Jorge da Conceição (1963-  ). Colecção do autor.

Carlos Alves (1958-  ). Colecção do autor.

Ricardo Fonseca (1986-  ). Colecção do autor.

José Carlos Rodrigues (1970-   ). Colecção do autor.

Luís Parente (?  -   ). Colecção do autor.

Jorge Carrapiço (1968  -   ). Colecção do autor


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domingo, 13 de julho de 2025

Auto da Alma


Cirurgia, um caso grave no hospital (1981). Louis Toffoli (1907-1999).
Óleo sobre tela. (114 x 162 cm). Musée Toffoli Charenton-le-Pont, France.
  

ADVERTÊNCIA AO LEITOR
Para que não haja confusões de tipo algum, fica o leitor avisado de que este “Auto da Alma” não é da lavra do beirão Gil Vicente, poeta e ourives, mas do alentejano Hernâni Matos, escritor, jornalista e blogger.

ENREDO
O enredo do auto desenrola-se na actualidade, em quatro locais distintos:
HOSPITAL - Instituição onde se tratam doentes e onde umas vezes se salvam vidas e outras vezes não.
CÉU – Morada do Senhor e dos anjos, para onde vão as almas dos bem-aventurados, na sequência de se terem separado do corpo após a morte.
INFERNO - Destino da alma humana daqueles que em vida assumiram condutas condenadas pela Igreja e que por isso ali sofrem castigo eterno, supliciados com o fogo por Satanás e pelos diabos menores.
PURGATÓRIO - Local em que as almas daqueles que morrem em estado de graça, mas que ainda são imperfeitas, são preparadas através do fogo purificador para poderem ascender ao céu.
O auto envolve 5 personagens, assim caracterizados:
ALGUÉM - Anestesista de serviço no Hospital.
ALMA - a do paciente submetido a intervenção cirúrgica.
SÃO PEDRO - Barbado e com pele crestada pelo sol da Galileia. Vestido de apóstolo e com um molho de chaves à cinta. Desempenha as funções de porteiro do céu e é robusto, para impedir a intrusão de almas indesejadas.
SATANÁS – Nu, peludo e com a pele avermelhada pelo calor do Inferno. Como anjo caído em desgraça, mantém as asas. Para torturar melhor os condenados ao fogo do Inferno, dispõe de cornos na cabeça, mãos com garras e cascos como um bode.  
CENA I
Após intervenção cirúrgica complexa e demorada, algo corre mal na sala de recobro do Hospital. Ouve-se então Alguém gritar:
- Acabamos de o perder!
A sala de recobro torna-se então num pandemónio, com o pessoal clínico a entrar em parafuso.
CENA II
O corpo do paciente torna-se instável e é abandonado pela alma que, de consciência tranquila se dirige para o céu, porque julga ingenuamente que é esse o seu caminho.
Atingida uma das portas do céu, o acesso é-lhe vedado por São Pedro, que lhe diz:
- Não pode entrar, Irmão!
Espantada, a alma pergunta:
- Então porquê, São Pedro?
A resposta do Santo foi imediata:
- Antes do Irmão aqui chegar, já o Senhor me tinha informado do sucedido lá em baixo. Alertou-me também para o facto de o Irmão não reunir os requisitos necessários para aqui entrar. Consultei então os Santos Registos, nos quais consta que o Irmão foi uma pessoa de bem, respeitador das crenças do próximo e que colaborou com as obras sociais da Igreja. Todavia, a nível de sacramentos isto está muito mal. Confirmei que o Irmão foi baptizado, recebeu o crisma, fez a 1ª comunhão e a comunhão solene e chegou a ensinar doutrina aos mais novos. Todavia, aí pelos 12 anos, deixou de se confessar e de comungar, assim como de frequentar a Igreja. Mais tarde, casou-se apenas pelo registo civil e divorciou-se, vindo a reincidir, ao casar novamente pelo civil. Mais recentemente, o Irmão só frequentava a Igreja para casamentos, baptizados e missas por defuntos. Como vê Irmão, nada disto abona a seu favor. 
Pesarosa, a alma prepara-se para replicar, mas São Pedro é peremptório:
- A lei do Senhor é para cumprir e não pode haver desvios. Foi por a fazer cumprir que passei de pescador a apóstolo, me tornei o 1.º Bispo de Roma e o 1.º Papa. Foi por a fazer cumprir que me tornei Mártir e agora sou porteiro do céu. 
Convencida que dali não leva nada, a alma despede-se, dizendo:
- Assim seja. Terei de procurar outro caminho.
CENA III
Depois de ver recusada a sua entrada no céu, a alma entra em depressão e dirige-se para o Inferno, onde julga que será o seu lugar. Numa das entradas encontra-se Satanás que, ao vê-la, dispara à queima-roupa: 
- Onde pensas que vais? Tira o cavalinho da chuva que aqui não tens cabidela. Era o que faltava!
Incrédula, a alma questiona: 
- Palavra de honra que não estou a perceber nada disto. Não me quiseram lá em cima e agora não me querem cá em baixo?
Resposta de Satanás:
Lá em cima é lá com eles, cá em baixo é comigo. E sempre te digo que é preciso descaramento para fazer de mim parvo e procurar cá entrar.
A alma que gosta de conhecer as linhas com que a cosem, insiste e questiona:
- Mas porquê?
Satanás responde de imediato:
- Em 1.º lugar, porque foste baptizado, recebeste o crisma, fizeste a 1.ª comunhão e a comunhão solene e chegaste mesmo a ensinar doutrina aos mais novos. Apesar de não te confessares e de comungar desde os 12 anos, ainda frequentavas a Igreja para casamentos, baptizados e missas por defuntos. Para além disso foste uma pessoa de bem, respeitador das crenças dos outros e que colaborou com as obras sociais da Igreja. Como estás a ver, tudo isto é contra ti. Mas há mais!   
Em 2.º lugar, tiveste preocupações sociais e lutaste por elas. Mas o mais grave de tudo é que fizeste parte da trupe da Catarina Martins, que defende a igualdade a todos os níveis e quer que os ricos paguem a crise. E isso não posso tolerar, já que os ricos constituem a maioria residente no Inferno, pelo que me cabe a mim zelar pelos seus interesses, mesmo depois de mortos.
Em terceiro lugar e por aquilo que conheço de ti, eras capaz de sabotar o fogo dos caldeirões, fomentar a greve entre os diabos menores e virá-los mesmo contra mim. Até eras capaz de me serrar os cornos, aproveitando alguma distracção minha ou quando estivesse a dormir.
Por isso, põe-te na alheta!
E a alma assim fez.
CENA IV
Mais pesarosa que antes, a alma dirige-se para o Purgatório, a ver se ao menos consegue ingressar ali. Com grande surpresa sua, logo à entrada vê um cartaz que diz: ENCERRADO POR FALTA DE HÓSPEDES. Para onde ir então?
CENA V
Na sala de recobro do hospital, após porfiados esforços do pessoal clínico, o paciente regressa à vida. Alguém exclama:
- Já cá o temos outra vez!
Nesse preciso momento, a alma regressa ao corpo. Terminara a sua peregrinação por territórios de rejeição. Já não era a mesma. Tinha muito que contar. Agora o seu lugar era ali, para o que desse e viesse.
MORAL DO AUTO
Preso por ter cão e preso por não ter.
Publicado pela 1ª vez em 13 de Julho de 2019

 São Pedro (Entre 1610 e 1612) . Peter Paul Rubens  (1577–1640). Óleo sobre
tela (107 x 82 cm). Museo del Prado, Madrid.

 O Inferno (c. 1510-1520). Mestre português desconhecido. Óleo sobre madeira
de carvalho (119 x 217,5 cm). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Um anjo salva as almas do purgatório (c. 1610). Lodovico Carraci (1555-1619).
Óleo sobre tela (44 x 51 cm). Pinacoteca, Vaticano.

sábado, 12 de julho de 2025

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O amor é cego



O Amor é cego. Jorge da Conceição (1963 - ). Colecção Hernâni Matos.

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018