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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Os talêgos (3ª edição)


Esta é a 3ª edição do post, cuja 1ª edição é de 27 de Fevereiro de 2010, a que se seguiu uma 2ª edição a 7 de Novembro de 2010. Novamente foi ampliado com considerações de natureza linguística e de literatura oral, bem como pela adição de seis novas ilustrações e de mais três fontes bibliográficas.


APONTAMENTOS ETNOGRÁFICOS
OS talêgos eram sacos multicolores, de tamanho variável, confeccionados pelas mulheres com as sobras dos panos usados na confecção de saias, blusas e aventais ou mesmo de roupa velha que se tinha deixado de usar. Tinham um cordão ou nastro que corria dentro de uma bainha e que os permitia fechar. Podiam ser forrados ou ser singelos. Alguns eram rebuscados na sua concepção e manufactura, a qual podia incluir pompons e borlas. Outros haviam que eram simples, sendo alguns, até, manufacturados com um único tecido.
Os talêgos eram o providencial modo de transportar aquilo que de que precisávamos. Ia-se às compras de talêgo, o qual era lavado sempre que necessário. Havia um talêgo para ir aviar a mercearia e outro para ir ao pão, bem como outro para ir ao grão, ao feijão ou ao milho. Usávamos também um talêgo para guardar os magros tostões que tínhamos e ainda outro para guardar a existência usada no jogo do botão.
Os camponeses guardavam as sementes em talêgos e os moleiros recebiam talêgos de trigo, centeio ou milho, que devolviam com farinha, após terem subtraído a maquia devida à moagem. Era também nos talêgos que se levava comida para o local de trabalho.
Em nossas casas, nas arcas, cómodas e guarda-fatos havia pequenos talêgos com alfazema, que pelo seu cheiro afugentava traças, moscas, mosquitos e demais insectos. Nesses mesmos locais, existiam por vezes talêgos maiores, nos quais se acondicionava a roupa mais delicada ou mais antiga e que inspirava mais cuidados de preservação.
A pobreza, a falta de oportunidades de vida, a adversidade do clima, as catástrofes, a política repressiva, fizeram com que ao longo dos tempos, o povo português tivesse de emigrar, visando a melhoria das suas condições de vida. Para transportar os seus bens, a maioria das vezes, uma parca bagagem, lá estavam o talêgo e mais tarde, a mala de cartão.
O talêgo era a embalagem reciclável inventada pelo sabedoria popular, que sempre soube encontrar formas criativas de lutar contra a adversidade e a falta de meios. Depois de puído e roto pelo uso e pelas lavagens sucessivas, era remendado por mãos hábeis de mulheres, que assim lhe prolongavam a longevidade. E mesmo depois de serem abatidos ao serviço como “talêgos”, continuavam ter préstimo. Serviam de rodilha ou de esfregão, até tal ser possível. Só depois se deitavam fora, para serem degradados pela terra-mãe e renascerem sob outra forma.
Actualmente, a luta contra o desperdício e o consumismo, pela melhoria da nossa qualidade de vida e pela salvação do planeta, passa pela implementação da política dos 3 RRR:
 - Reduzir o lixo que se produz;
- Reutilizar as embalagens mais que uma vez;
- Reciclar os componentes do lixo, separando-os na origem.


Por isso impõe-se o regresso da utilização do talêgo na nossa vida quotidiana, sempre que formos às compras. O planeta e a melhoria da nossa qualidade de vida assim o exigem.
Não queremos abandonar o tema que temos estado a abordar, sem tecer algumas considerações de natureza linguística, bem como sublinhar igualmente algumas notas de literatura oral:
CONSIDERAÇÕES DE NATUREZA LINGUÍSTICA
Em primeiro lugar convém esclarecer que “talêgo” é a forma regionalista do substantivo “taleigo”, devida a um fenómeno fonético que consistiu na monotongação do ditongo “ei”, que se transformou assim em “ê”, o que teve repercussões no grafismo da palavra. [10]
Nos dicionários consultados, que abrangem o período de 1721[4] a 2001[2], existem verbetes sobre as palavras “ataleigar”, “taleiga”, “taleigada”, “taleigão”, “taleigo” e “taleiguinho”. Vejamos o que sobre estas palavras dizem os diferentes dicionários:
ATALEIGAR - Puxar as calças para cima da cintura. [9] (1922)
ATALEIGAR – Encher muito. [25] (1993)
TALEIGA – Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados, designa:
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [4] (1721)
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [3] (1789)
- Saco, de maiores ou menores dimensões, e destinado especialmente à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do lat. Talica) [8] (1913).
- Saco pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do latim “talica”) [12] (s/d)
- Saco, bolsa, surrão. “Taleiga” é sinónimo de “teiga”. (Do árabe “ta’lîqâ”, saco). [15] (1977)
- Saco, pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. [24] (1988)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais (Do árabe “ta'liqa”, saco) [19] (1996)
- Saco pequeno e largo usado normalmente no transporte de cereais e de farinha. Medida antiga de azeite, equivalente a dois cântaros. Medida antiga de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do árabe “ta'liqa”, saco.) [2] (2001)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do árabe “ta'lïqa”, saco). [20] (s/d)
TALEIGADA - Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [4] (1721)
- A porção que se leva numa taleiga. Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [3] (1789)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia (De taleiga). [8] (1913).
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia: uma taleiga de trigo. [12] (s/d)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia. [24] (1988)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo). [19] (1996)
- Conteúdo de uma taleiga. Porção que enche uma taleiga (De taleiga + suf. -ada). [2] (2001)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo+-ada). [20] (s/d)
TALEIGÃO – Adjectivo e substantivo masculino. O mesmo que latagão (indivíduo robusto, forte, desempenado , e geralmente novo). [12] (s/d)
TALEIGO - Substantivo masculino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- É um saco pequeno, como aquele em que o soldado leva às costas, pão de munição ou outra virtualha. Um taleigo leva dois alqueires de trigo (Deriva do castelhano “Talega” e este segundo Covarrubuias deriva do Grego). [4] (1721)
- Saco estreito e longo que leva dois alqueires. [3] (1789)
- Taleiga pequena. [8] (1913).
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida. O mesmo que barça. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco prlos homens de armas das hostes em campanha na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [12] (s/d)
- Substantivo masculino e adjectivo, diminutivo de taleigão. [12] (s/d)
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida: O mesmo que barca. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco pelos homens de armas das hostes em campanha, na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [24] (1988)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena. (De taleiga) [19] (1996)
- Saco pequeno, estreito e comprido: Taleiga de dimensões reduzidas. Cesto usado para transportar comida. Medida antiga, equivalente a dois alqueires, usada para secos. Saco que era usado na caça de altanaria para levar o falcão. Saco que continha a comida para três dias, usado pelos homens de armas na Idade Média. Víveres contidos nesse saco. [2] (2001)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena (De taleiga). [20] (s/d)
TALEIGUINHO – Substantivo masculino. Taleigo pequeno. (De taleigo e sufixo diminutivo -inho). [12] (s/d)
NOTAS DE LITERATURA ORAL
De acordo com o cancioneiro popular:
“Tenho um saco de cantigas,
E mais uma taleigada:
O saco é p’ra esta noite,
Taleiga p’ra madrugada.” [18]
A palavra “Taleigo” não figura, pelo menos actualmente na Onomástica Portuguesa como nome próprio. Assim o revela a consulta à lista dos vocábulos admitidos como nomes próprios, disponibilizada pelo Instituto dos Registos e do Notariado [13]. Todavia, a palavra é conhecida como sobrenome de nome próprio. A referência mais antiga que conhecemos figura num documento simples da Chancelaria Régia de D. Afonso V (liv. 14, fl. 85v), datado de 13 de Junho de 1466, o qual certifica que o monarca perdoou os 9 meses de degredo no couto de Marvão a Mem Rodrigues Taleigo, lavrador, morador em Évora Monte, o qual pagou 600 reais brancos para a Piedade. [6]
No Alentejo são conhecidas alcunhas em que figura a palavra “taleigo” ou palavras dela derivadas [22]:
- TALEGA - o visado faz comentários do estilo: "Grande talega!" (Marvão).
- TALEGUEIRO – o atingido anda sempre com um taleigo (Sines).
- TALEIGADAS (Avis).
- TALEIGO - Alcunha concedida a um sujeito baixo e gordo (Cuba e Portel).
- TALEIGUINHO - o receptor pendurou um taleigo num sobreiro (Santiago do Cacém) ou então é um indivíduo de baixa estatura (Aljustrel e Portei).
- TALEIGUINHO DA BUCHA - o receptor é baixo e gordo (Moura).
- TALEIGUINHO DAS ISCAS – o receptor quando ia à caça, levava sempre um taleiguinho com iscas (Aljustrel).
O adagiário português relativo ao taleigo é escasso:
- “Fazenda em duas aldeias, pão em duas talegas” [4]
- “O fidalgo, o galgo e o talego de sal, junto do fogo os hão de achar” [4]
- “O taleigo de sal quer cabedal” [5]
São conhecidas as seguintes imagens metafóricas usadas na gíria portuguesa:
Dar ao taleigo = Falar = Dar à língua = Parolar = Conversar [24], [25]
Dar aos taleigos = Parolar = Dar à língua [8]
Dar ao(s) taleigo (s) = Conversar demoradamente [23]
Dar ao(s) taleigo (s) = Dar á língua [19]
Dar ao(s) taleigo(s) = Conversar = Dar à língua [2]
No calão:
Talega = Grande Porção = Grande Peso = Saco de pano [25]
Taleiga = Carga excessiva = Grande quantidade [17]
Taleiga = Coisa Grande [14]
Taleiga = Naco = Pedaço de haxixe [21]
Taleiga = Saco Grande [25]
Taleigão = Latagão [25]
Taleigo = Prisão” [14], [25]
Taleigo = Saco pequeno [1], [25]
Na toponímia:
TALEGA = Freguesia do bispado de Elvas [16]
TALEIGÃO = Freguesia do concelho e distrito de Goa, Índia Portuguesa.
QUINTA DA TALEIGA = Lugar do concelho de Portalegre.
Os pregões usados pelos pregoeiros eram outra forma de literatura oral. Através deles se proclamava qualquer coisa, como por exemplo, aquilo que se tinha para vender. Era o caso do vendedor de picão que nos anos cinquenta do século passado percorria, todo enfarruscado, as ruas de Elvas, quando o frio de rachar aconselhava o uso da braseira. O pregão:
“Ah! Bom pi-cão”! "
anunciava a preciosa e sazonal mercadoria contida em taleigos transportados no dorso de pacientes asnos.
NOTA FINAL
Depois desta "taleigada" de considerações suscitadas pelo substantivo "talêgo" em termos linguísticos e de literatura oral, achamos por bem atar os cordões e dar o presente texto por terminado. Pelo menos por agora.
BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[2] – ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. II Volume. Editorial Verbo. Lisboa, 2001.
[3] – BLUTEAU, Raphael; MORAES SILVA, António de. Diccionario da Língua Portugueza. Tomo Segundo. Officina de Simão Thaddeo Ferreira. Lisboa, 1789.
[4] – BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. V. Officina de Pascoal da Sylva. Lisboa, 1721.
[5] – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
[6] – DIRECÇÃO-GERAL DE ARQUIVOS [http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=listShow&searchMode=as&sort=id&order=ASC]
[7] - FERREIRA, Diogo Fernandes. Arte da Caça de Altaneria. Vol. I. A Liberal. Lisboa, 1899.
[8] - Figueiredo, Cândido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa (2 vol.). Clássica Editora. Lisboa, 1913.
[9] - Figueiredo, Cândido de. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. (2 vol.). Editora Portugal-Brasil Limitada, 1922.
[10] – FLORÊNCIO, Manuela. Dialecto Alentejano – contributos para o seu estudo. Edições Colibri. Lisboa, 2001.
[11] - GAMA, Eurico. Os Pregões de Elvas. Edição de Álvaro Pinto. Lisboa, 1954.
[12] – GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vol. 30. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
[13] – INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO. Vocábulos admitidos e não admitidos como nomes próprios [http://www.irn.mj.pt/sections/irn/a_registral/registos-centrais/docs-da-nacionalidade/vocabulos-admitidos-e/downloadFile/file/2010-09-30_-_Lista_de_nomes.pdf?nocache=1287071845.45]
[14] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[15] – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 5. 3ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1977.
[16] - NIZA, Paulo Dias de. Portugal Sacro-Profano. Parte II. Oficina de Miguel Manescal da Costa. Lisboa, 1768.
[17] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[18] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[19] - PORTILLO, Lorenzo. Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube. Ediclube. Alfragide, 1996.
[20] – PORTO EDITORA. Grande Dicionário. Porto Editora. Porto, 2004.
[21] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[22] – RAMOS, Francisco Martins e SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[23] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[24] – SILVA, António de Morais. Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa. Vol. V. 4ª edição. Editorial Confluência. Mem Martins, 1988.
[25] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[26] - VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das Palavras, Termos e Frases. Edição Critica de Mário Fiúza. Vol. 2. Livraria Civilização. Porto, 1966.

Publicado em 17 de Maio de 2011

VIAJANTES A SEREM RECEBIDOS NUMA ESTALAGEM. O que está apeado transporta um taleigo suspenso de um pau. Iluminura do  “Tacuinum  Sanitatis” (Finais do séc. XIV), livro medieval sobre o bem-estar, com base na al Taqwin Taqwin تقوين الصحة ("Quadros de Saúde"), tratado do século XI da autoria do médico árabe Ibn Butlan de Bagdá,  o qual pertence à Biblioteca Casanatense, em Roma.

ABRIL - FÓLIO 9v, Iluminura do “Livro de Horas de D. Manuel “, Séc. XV. No pé de página, à beira-rio, duas levadas movem duas azenhas. À esquerda da do lado esquerdo uma mulher aproxima-se, transportando à cabeça um talêgo com grão para ser moído, o mesmo se passando do lado direito, onde um homem carrega um talêgo de grão às costas. Simultâneamente um homem montado num burro com talêgos de farinha, parece fazer-se ao caminho.

MARÇO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. No segundo plano, à direita, um camponês dobrado sobre um taleigo, retira daí sementes, que de seguida irá semear. Ainda no segundo plano à esquerda, um camponês que poda a vinha, tem junto a si, no chão, uma enxada, um chapéu e um taleigo.


OUTUBRO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. Em primeiro plano, um camponês semeia a terra. Próximo de si, um taleigo com sementes.

  
PADARIA. COLÓNIA SUÍÇA DE CANTAGALO – BRASIL (1835). Jean Baptiste Debret (1768-1848). Pormenor de Litografia. Firmin Didot Frères,  Paris.

O EMIGRANTE (1918). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela ( 80 x 104 cm). Colecção particular.

Ilustração de Alfredo Roque Gameiro (1864 - 1935) para “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Diniz (1839-1871).

OS EMIGRANTES (1926). Domingos Rebelo (1891 - 1975). Óleo sobre tela. Museu Carlos Machado, Ponta Delgada.

TIPOS SALOIOS (MERCÊS-RINCHOA). Leal da Câmara (1876-1948). Ilustração de bilhete-postal editado pela Casa-Museu Leal da Câmara, Rinchoa.

 
SALOIOS EM LISBOA - Stuart Carvalhais (1887-1961). Tinta da China aguarelada sobre papel (25 x 30 cm). Colecção particular.

MOLEIRO COM DOIS BURROS CARREGADOS DE TALEIGOS – Capa da revista “Ilustração Portuguesa” nº 730 de 16 de Fevereiro de 1930.

SERRA DO CAMULO - MULHER COM CAPUCHA (1937). Aguarela de Alberto de Souza (1880-1961), reproduzida em bilhete-postal ilustrado nº 17 da "Série B" - Costumes Portugueses, tendo impresso no verso um selo do tipo "TUDO PELA NAÇÃO" de $25 (azul) ou de 1$00 (vermelho) e emitido pelos CTT, em 1941.


DENTRO DO MOINHO – aguarela de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970).

CONFRATERNIZAÇÃO INFANTIL – Laura Costa. Desenho policromo reproduzido em bilhete-postal de Boas Festas dos CTT, emitido em 1944 com selo de $30 do tipo Caravela e impresso em off-set na litografia Maia, no Porto.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O amor é cego



O Amor é cego. Jorge da Conceição (1963 - ). Colecção Hernâni Matos.

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Adagiário do Verão


Verão. Gravura de Paul van Somer II (activo ca.1670 – 1714).

O Verão, estação caracterizada por elevadas temperaturas, decorre de cerca de 21 de Junho até por volta de 23 de Setembro. O adagiário de Verão é assim o somatório dos adágios de Junho, Julho, Agosto e Setembro, que já foram inventariados nos respectivos meses. Daí que aqui só se apresentem aqueles em que figura explicitamente a palavra Verão:
- A água com que no Verão se há-de regar, em Abril há-de ficar.
- A água que no Verão há-de regar, de Abril e Maio há-de ficar.
- A burra de vilão, mula é no Verão.
- A formiga faz as suas provisões no Verão, ajunta no tempo de ceifa o seu alimento.
- A Inverno chuvoso Verão abundoso.
- Ande por onde andar o Verão, chega sempre pelo S. João;
- Ande por onde andar o Verão, há-de vir no S. João.
- Março, marçagão, de manhã Inverno, à tarde Verão.
- Março, marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão.
- Nem no Inverno sem capa, nem no Verão sem cabaça.
Nem o Inverno sem capa, nem o Verão sem cabaça.
- No Verão acabam as ceias e começam os serões.
- No Verão ardem os montes e secam as fontes.
- No Verão o sol dá paixão.
- O Verão colhe e o Inverno come.
- Orelha de homem, nariz de mulher e focinho de cão, nunca viram o Verão.
- Outubro suão, negaças de Verão.
- Pão de hoje, carne de ontem, vinho do outro Verão, fazem um homem são.
- Quem no Verão colhe, no Inverno come.
- Sol nascente desfigurado, No Inverno, frio, no Verão, molhado.
- Uma (só) andorinha não faz o Verão.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 23 de Julho de 2018

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Adagiário dos Santos Populares Portugueses

 



As actividades agro-pastoris e pescatórias estão associadas ou são balizadas por determinadas datas, tanto do calendário juliano como do calendário hagiológico. Daí não ser de estranhar que os nomes dos Santos Populares integrem o adagiário português.

Santo António (13 de Junho)
- Dia de Santo António vêm dormir as castanhas ao castanheiro.
- Não peças água a Luzia e a Simão, nem sol a António e a João, que eles tudo isso te darão.

São João (24 de Junho)
- A chuva de S. João, bebe o vinho e come o pão.
- A chuva de S. João, tolhe o vinho e não dá pão.
- Água de S. João, tira o vinho e não dá pão.
- Ande o Verão por onde andar, pelo S. João cá vem parar.
- Até S. Pedro, o vinho tem medo.
- Cavas em Março e arrenda pelo São João, todos o sabem, mas poucos o dão.
- Chuva de S. João, acaba com o vinho e não ajuda o pão.
- Chuva de S. João, talha vinho e não dá pão.
- Chuva pelo S. João, bebe o vinho e come o pão.
- Chuvinha de S. João, cada pinga vale um tostão.
- Do Natal a São João, seis meses são.
- Em Abril queima a velha o carro e o carril, uma camba que ficou, ainda em Maio a queimou e guardou o seu melhor tição para o mês de São João.
- Em dia de São Pedro, vê o teu olivedo e se vires um bago espera por um cento.
- Galinhas de S. João, pelo Natal poedeiras são.
- Galinhas de São João, pelo Natal ovos dão.
- Guarda pão para Maio, lenha para Abril e o melhor tição para o S. João.
- Lavra pelo S. João e terás palha e pão.
- Lavra pelo S. João se queres ter pão.
- Lavra pelo São João se queres ter palha e pão.
- Maio louro, mas nem muito louro e São João claro como olho-de-gato.
- Março amoroso, Abril chuvoso, Maio ventoso, São João calmoso, fazem o ano formoso.
- Março chuvoso, S. João farinhoso.
- Março duvidoso, S. João farinhoso.
- Março molinhoso, S. João farinhoso.
- Não peças água a Luzia e a Simão, nem sol a António e a João, que eles tudo isso te darão.
- Ouriços do S. João, são do tamanho de um botão.
- Pelo S. João, a sardinha pinga no pão.
- Pelo S. João, ceifa o teu pão.
- Pelo S. João, deve o milho cobrir o cão.
- Pelo S. João, figo na mão, pelo S. Pedro, figo preto.
- Pelo S. João, lavra e terás palha e pão.
- Pelo S. João, perdigoto na mão.
- Pelo S. João, semeia o teu feijão.
- Pelo São João, foice na mão.
- Pintos de S. João, pela Páscoa ovos dão.
- Porco, no São João, meão; se meão se achar, podes continuar; se mais de meão, acanha a ração.
- Quando Jesus se encontra com João, até as pedras dão pão.
- Quando o vento ronda o mar na noite de S. João, não há Verão.
- Quem quiser bom melão, semeia-o na manhã de São João.
- S. João e S. Miguel passados, tanto manda o amo como o criado.
- Sardinha de S. João, já pinga no pão.
- Se bem me quer João, suas obras o dirão.
- Se queres ter pão, lavra pelo São João.
-Tem o porco meão pelo S. João.

São Pedro (29 de Junho)
- Até São Pedro, há o vinho medo.
- Dia de São Pedro, tapa o rego.
- Dia de São Pedro, vê o teu olivedo; e, se vires um grão, espera por cento.
- Nevoeiro de São Pedro põe em Julho o vinho a medo.
- Pelo São Pedro vai ao arvoredo; se vires uma, conta um cento.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Santo António na tradição oral


Capa da revista ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA nº 16 de 11 de Junho de 1906.

PRÓLOGO
É vasta a literatura de tradição oral portuguesa referente a Santo António. Debruçar-nos-emos aqui sobre o adagiário, tradições e superstições populares, orações populares e cancioneiro popular alentejano.

ADAGIÁRIO PORTUGUÊS.
Não é extenso, mas existe algum adagiário relativo a Santo António:

- “Água de Santo António tira o pão à gente e dá o vinho ao demónio.”
- “Ande o calor por onde andar, pelo Santo António, há-de chegar.”
- “Dia de Santo António, vêm comer as cerejas ao castanheiro.”
- “Entre António e João planta teu feijão.”
- “Não há sermão sem Santo António, nem panela sem toucinho.”
- “Nem Deus com um gancho, nem Santo António com um garrancho.”
- “Ovelha que é do lobo, Santo António Antônio não guarda.”
- “Santo António tira a dor, mas não tira a pancada.”

TRADIÇÔES E SUPERSTIÇÕES POPULARES
- No dia de Santo António deve-se colher um raminho de erva-pinheira, para pendurar em casa. Se este reverdecer, tal facto é indício de fortuna. [2]
- Para que Santo António opere o milagre de casar uma rapariga solteira, é preciso que uma sua imagem seja roubada a outra pessoa. [2]
- Rezar um responso a Santo António faz com que a pessoa ou o animal responsado não consiga andar para diante, mas apenas para trás, pelo que volta ao ponto de partida. [2]
- Na véspera do dia de Santo António, é costume ornamentar as portas ou as sacadas das casas com canas verdes. [7]

ORAÇÕES POPULARES ALENTEJANAS
Um tipo de oração popular é a encomendação (recomendação) que se faz a Jesus, à Virgem Maria ou a um Santo, para eles livrarem o encomendante de qualquer bicho ou pessoa que lhe queira fazer mal, assim como de qualquer influência maléfica ou demoníaca que o possam afectar. Vejamos uma “Encomendação a Santo António”:

“Santo António se levantou,
Caminho e carreira andou,
Nossa Senhora encontrou,
Ela lhe perguntou:
- Aonde vais, António?
- À vossa Santa busca vou.
- Pois tu, António, irás
E na terra ficarás,
O meu corpo me guardarás
De mau lobo e de má loba,
De mau cão e de má cadela,
De mau homem e de má mulher
E de tudo mau que houver,
Que eu nunca tenha perca
Nem dano nem prejuízo algum.
Em louvor da Virgem Maria
Um Padre Nosso e uma Ave Maria.” [5]

Um outro tipo de oração popular é o responso, entendido como uma oração a um Santo, visando o aparecimento de coisas desaparecidas ou que não ocorram males que se temem. Vejamos um “Responso de Santo António”:

“Santo António se levantou,
seu sapatinho calçou,
seu bordãozinho pegou,
seu caminho caminhou,
Jesus Cristo encontrou.
Jesus Cristo lhe perguntou:
- Onde vais, Beato António?
- Senhor, convosco vou.
- Comigo não virás,
na terra ficarás
guardando o que está perdido,
que à mão do dono seja restituído.
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]

Este responso reza-se três vezes, depois das quais, as coisas desaparecidas, aparecem.

CANCIONEIRO POPULAR ALENTEJANO
O Povo não esquece a data festiva do Santo António:

“A treze do mês de Junho
Santo António se demove,
S. João a vinte e quatro,
e S. Pedro a vinte e nove.“ [6]

Pelo Santo António, S. Pedro e S. João é cantada a seguinte cantiga popular:

“Santo António, S. Pedro e S. João,
Santinhos padroeiros,
Do meu terno coração.
Olhai por mim,
Protegei-me, dai-me sorte,
Que eu serei vossa devota
Quer na vida quer na morte.” (Évora) [3]

O Povo considera que Santo António pertence a uma admirável geração:

“S. Francisco é meu primo,
Santo António é meu irmão,
Os anjos são meus parentes,
Ai que linda geração!” (Beja) [4]

Tem-no, naturalmente, na mais elevada estima:

“Ailé,
Senhor Santo António,
É o melhor cravo
Do meu oratório.“ [6]

O Santo é invocado para guardar olivais:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guarda lá minha azeitona
Do biquinho dos pardais.“ [6]

Igualmente é invocado para guardar amores fugitivos:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guardai-o meu lindo amor,
Que cada vez foge mais.“ [6]

Santo António é casamenteiro. Por isso, ele ou ela imploram:

“Ó meu amor, pede a Deus,
E eu peço a Santo António
Que nos deixe juntar ambos
No livro do matrimónio.“ (Alcáçovas) [4]

O homem confessa o objecto da sua fé:

“O sol bate de chapa,
Faz a maçã coradinha;
Tenho fé em Santo António
Que inda hás-de vir a ser minha.“ (Odemira) [4]

Por seu lado, a mulher suplica ao Santo que a case com determinado homem:

“Ó meu rico Santo António,
Eu bem alto aqui to digo;
Casai os rapazes todos,
O Josezinho comigo!“ (Alcáçovas) [4]

Chegam a chamar namoradeiro ao Santo:

“Santo António me acenou
De cima do seu altar,
Olha o maroto do santo,
Que também quer namorar." [6]

Apontam-lhe mesmo, certos episódios:

“Santo António, com ser santo,
Foi sempre um grande gaiato,
Foi à fonte com três moças,
recolheu, trazia quatro.“ [6]

Chegam ao ponto de lhe fazer determinadas insinuações:

“Senhor Santo António
Tem duas ladeiras:
Umas das casadas,
Outra das solteiras.“ (Moura) [4]

Por chalaça, Santo António é invocado pelas mulheres para escarnecer dos homens:

“Santo António de Lisboa,
Venha ver o que cá vai,
Deu a rabugem nos homens,
Como dá nos animais.“ [6]

Os homens respondem na mesma moeda:

“Santo António da Terrugem
Venha ver o que cá vai,
Anda a rabugem nas moças,
Té o cabelo lhes cai.“ [6]

No conceito popular, o Santo é portador da mais alta patente militar, daí que digam:

“Santo António de Lisboa
Não quer que lhe chamem santo,
Quer que lhe chamem António,
General, mar’chal de campo.“ [6]

Pelo poder que lhe é atribuído, não é de estranhar que Santo António seja invocado para livrar os mancebos da vida militar:

“Sant’Entóino é bom rapaz,
Que livrou seu pai da morte.
Também livrará meu bem
Quando for “tirar as sortes””. (Mina de S Domingos) [4]

Igualmente é invocado para ajudar a vencer desafios ainda maiores:

“Santo António é bom filho,
Que livrou seu pai da morte;
Ajudai-nos a vencer
Esta batalha tão forte.“ [6]

Como o ramo de loureiro era utilizado para sinalizar a porta das tabernas, houve quem ironizasse a decoração do altar do Santo:

“No altar de Santo António
‘Stá um ramo de lòreiro;
Olha que pouca vergonha,
Fazer de um santo vendeiro!“ (Évora) [4]

Os homens chegaram ao ponto de o acusar de reservar o vinho para as mulheres:

“Santo António de Cabanas
Tem uma pipa no monte,
As mulheres bebem vinho,
Os homens água da fonte.“ [6]

Chega a ser encarado como vendedor, a quem se solicita que seja pródigo no avio:

“Santo António vende peras,
Vende peras a vintém,
Lá irá o meu menino,
Santinho, aviai-o bem.“ [6]

A invocação da sua intercessão não conhece limites:

“Ó meu padre Santo António,
Vestidinho d’estamenha;
A quem quer ajudar
O vento lhe ajunta a lenha.“ [6]

O povo que tem convicções firmes e gosta de coisas rijas, considera que o Santo é mesmo um Santo com força nas canelas:

“Santo António da Terruge’
Feito de pau de azinho,
Tem mais força no canelo
Que um barrasco no focinho.“ (Terrugem) [4]

EPÍLOGO
Julgamos que dentro da literatura de tradição oral, as orações populares e o cancioneiro são reveladores da religiosidade própria do homem alentejano, em consonância com a sua própria identidade cultural.

(Texto publicado inicialmente a 15 de Junho de 2011) 

BIBLIOGRAFIA
[1] – ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Edição de Álvaro Pinto (Revista de Portugal). Lisboa, 1955.
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Leite. Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983.
[5] – POMBINHO JÚNIOR, A.P. Orações Populares de Portel. Edições Colibri-Câmara Municipal de Portel. Lisboa, 2001.
[6] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
[7] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

domingo, 25 de maio de 2025

Roda: Amor - O ramo mora no aro


Roda (1965). José Manuel Espiga Pinto. Acrílico sobre Madeira. 122 x 180 x 5 cm.
Fotografia  de Leonardo Espiga Pinto, obtida no de urso da exposição “Espiga Pinto –
- Memórias do Alentejo”, promovida pela Galeria Howard’s Folly e o Legado de Espiga 
Pinto, no espaço daquela Galeria em Estremoz, por ocasião da celebração do 85º aniversário
 do nascimento do artista. A roda é um dos principais elementos recorrentes da iconografia
de Espiga Pinto, transversal a todas as fases da sua obra.

LER AINDA


A roda será porventura o maior invento de todos os tempos. O homem terá começado por arrastar pedras e árvores sobre troncos de árvores, para mais tarde o começar a fazer sobre estrados assentes em rolos de madeira. O transporte de materiais tornou-se então mais fácil. Hoje sabemos que o atrito de rolamento é inferior ao atrito de escorregamento, mas em termos práticos, isso foi descoberto há milhares de anos.
Depois dessa primeira descoberta, os rolos terão sofrido nas extremidades, a aplicação de discos toscos, percursores das rodas, servindo os rolos de eixos. Quer os eixos quer as rodas sofriam movimento de rotação e movimento de translação. Este último era um inconveniente, por que o eixo se deslocava ao longo do estrado, obrigando a ajustes sucessivos. Mais tarde, o eixo é preso ao estrado e as rodas passam a girar livremente, exteriormente ao estrado. Nos modelos primitivos, as rodas eram baixas e os estrados próximos do chão. A necessidade de elevar o estrado em relação ao solo, levou ao alteamento das rodas, que eram maciças e grossas devido ao peso dos materiais transportados. E assim o foram durante séculos, até que para se tornarem mais leves foram abertos nas rodas, dois óculos arredondados. Mais tarde, a roda maciça viria a ser aberta em partes mais largas, o que está na origem da roda radiada, na qual raios de madeira unem um aro periférico ao centro, apoiado na cabeça saliente do eixo. Mais tarde, o aro de madeira periférico viria a ser protegido por um aro de ferro. A roda transmite de maneira amplificada para o eixo de rotação, qualquer força aplicada no aro periférico, reduzindo a transmissão da velocidade. Analogamente, a roda transmite de maneira reduzida para o aro periférico, qualquer força aplicada no seu eixo de rotação, amplificando a transmissão da velocidade.
Os carros de tracção animal alentejanos, puxados a muares ou a cavalos, dos mais leves e andarilhos do nosso país, movem-se facilmente com rodas radiadas com diâmetros de 1,80 m a 1, 50 m.
Na literatura oral são múltiplas as referências, à roda. São assim conhecidas as seguintes adivinhas, cuja solução é fornecida no final, entre parêntesis:
- Qual é coisa, qual é ela, que é redonda como o Sol, tem mais raios do que uma trovoada e anda sempre aos pares? (A roda radiada);
- Qual é coisa, qual é ela, que a roda disse para o carro? (Vamos dar uma voltinha.);
- Qual é a roda, qual é ela que quando um carro está a fazer a curva para a direita, roda menos? (A roda suplente).
São igualmente conhecidos os seguintes provérbios sobre rodas:
- Uma roda toca a outra.
- A vida é uma roda, tanto anda como desanda.
- A roda da fortuna tanto anda como desanda.
- A roda da fortuna anda mais que a do moinho.
- A roda da fortuna nunca é uma.
- Cada um dança, conforme a roda onde está.
- A pior roda é a que mais chia.
- Rodas e advogados precisam de ser untados.
Há de resto, expressões populares portuguesas, em que figura o termo “roda”:
- Roda! – Deixa-me!;
- À roda - À volta;
- Roda da fortuna – Frase que significa que a fortuna não pára;
- Roda dos Expostos – Espécie de armário giratório em que se expunham as crianças que se queriam enjeitar;
- Roda do tempo – A sucessão dos anos da vida.
Termino com duas quadras populares recolhidas por António Tomaz Pires (1850-1913) e coligidas nos seus ”Cantos Populares Portugueses” (1902-1910), onde aparece o termo “roda”:

“Já corri o mar à roda
C’uma fita larga e estreita,
Para dar um nó redondo
Nessa cintura bem feita.”

“Senhores que estão à roda,
Vossês hão de perdoar,
Que esta menina picou-me
E eu quero-me despicar.”

(Publicado inicialmente em 25 de Fevereiro de 2010)