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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Estória da amizade entre um oleiro e o seu barbeiro, na Vila de Redondo, no ano de 1941


Borracha. F.R.C., oleiro. Redondo, 1941.

Ao meu amigo Dr. António Carmelo Aires,
seguramente o maior coleccionador
e investigador da cerâmica de Redondo

Antelóquio
Recentemente, ao fim da tarde, localizei à venda na Internet, uma peça olárica de Redondo, a qual já lá estava há quatro horas. O meu interesse por ela foi “tiro e queda”, que é como quem diz “amor à primeira vista”. Instantes depois estava comprada e paga, “não fosse o diabo tecê-las”, o que a acontecer não seria a primeira vez e decerto também não seria a última. É que o tempo é uma variável muito importante a ter em conta, já que outros se podem antecipar. Vários foram os factores que contribuíram para a minha forte motivação em a comprar. O leitor irá perceber porquê.

Leitura da peça
O exemplar olárico de Redondo que é objecto do presente estudo, configura uma “borracha”, recipiente em couro para transporte de líquidos, em particular de vinho. O mesmo dispõe de uma abertura para entrada e saída de líquido, a qual pode ser vedada com uma rolha. Dispõe ainda de duas alças, uma, próximo da embocadura e outra, do lado oposto, junto ao fundo. Estas alças visam permitir prender a elas um cordão ou tira de couro, permitindo transportar a borracha a tiracolo. A borracha funciona assim como cantil.
O engobe exterior e interior da peça é numa tonalidade creme, a qual pretende imitar a cor do couro. A superfície da “borracha” foi esgrafitada e pintada em tricromia com as cores tradicionais da cerâmica de Redondo: verde, amarelo e ocre castanho.
A peça, de morfologia periforme, encontra-se decorada em cada uma das duas faces, por um grupo de ilustrações legendadas, que nos relatam uma estória.
Numa das faces, encontram-se ilustrados e identificados por um número, dez utensílios de barbeiro, de meados do séc. XX: 1 – taça da espuma, 2 – pincel da barba, 3 – cabaça do pó de talco, 4 – navalha da barba, 5 – assentador de navalhas, 6 – pente, 7 – tesoura, 8 – máquina de cortar cabelo, 9 – frasco de perfume, 10 – escova de tirar os cabelos. Por debaixo deste conjunto de ilustrações, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Desconheço o significado da sigla SM na última linha. Todavia, é possível concluir que estamos em presença de uma “borracha” em barro vidrado, oferecida e dedicada por um oleiro de Redondo (F. R. Cte) a um barbeiro (J. Falé), decerto o seu barbeiro, residente naquela Vila.
Na outra face da “borracha” encontram-se três ilustrações. Na parte de cima, um cacho de uvas com duas parras. Na parte debaixo e à direita, um homem (supostamente o barbeiro) de boné na cabeça e sentado numa cadeira, não se sabe se por já não ser capaz de se ter em pé. Com a mão direita leva um copo de vinho à boca, enquanto que com a mão esquerda segura uma garrafa de vinho parcialmente cheia, assente na sua perna esquerda. Esta ilustração tem à sua esquerda, logo abaixo do cacho de uvas com parras, uma outra ilustração. Trata-se de uma tripeça na qual assenta um barril, de cuja torneira escorre vinho que está a encher uma garrafa. A mensagem parece óbvia: O barbeiro é um grande bebedor, de tal modo que ainda não tendo despejado uma garrafa, já se encontra outra a encher, para não haver perda de tempo. Na parte debaixo e à esquerda, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “VIVA / A PARÓDIA / VIVA / 9-5-1941”. As quatro linhas desta inscrição estão cobertas de ocre castanho, como que simulando que o oleiro tivesse entornado vinho quando confeccionava a peça. Nesse sentido, a peça materializa a auto-crítica do oleiro, que se assume igualmente como grande bebedor e amante da “paródia”, tal como o seu amigo barbeiro.

Epítome
Do exposto se conclui que a peça em estudo constitui aquilo que se pode considerar uma ”Jóia da Coroa”. Com efeito, é de uma tipologia pouco vulgar, está datada, tem oitenta anos, é uma peça com dedicatória, falante e ilustrada, que conta com humor a estória de amizade entre um oleiro e o seu barbeiro na Vila de Redondo. Em suma: é uma peça única, pela qual fiquei desde logo apaixonado e mais confortado desde que a paguei. É com peças destas que vão crescendo e se vão edificando a pulso, passo a passo, colecções modestas como a minha e que assim se vão consolidando.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 24 de Fevereiro de 2022


segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Carlos Alves e a cozinha dos ganhões

 

Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958-  ). Vista de frente. 

Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958-  ). Vista de trás. 

Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958-  ). Vista de cima

Ao barrista Carlos Alves:
Eu hoje acordei com o sete metido na cabeça.
O sete é como que um número mágico. De acordo
com o Génesis, Deus criou o mundo em seis dias e
descansou no sétimo, tornando-o um dia santo.
E o número sete passou a simbolizar perfeição e
conclusão. Perfeição que eu encontro na tua recriação
da Cozinha dos Ganhões, depois de estar concluída.
Utilizei então o número sete para lavrar uma estrofe
de quatros versos heptassilábicos, onde falo da tua
obra, aproveitando para realçar que eram pobres
os comeres dos ganhões:

A Cozinha dos Ganhões
tem ganharia à mesa.
Eram parcas refeições
e não havia sobremesa.

LER AINDA:


Prólogo
A terminologia “cozinha dos ganhões” usada na designação da figura sobre a qual incide o presente estudo, impõe que seja feita a sua explicitação, para o que me irei socorrer de textos meus, já anteriormente publicados.
Ganhões
“Os "ganhões" eram assalariados agrícolas indiferenciados, que se ocupavam de tarefas como lavras, cavas, desmoitas, eiras, etc., com excepção de mondas, ceifas e gadanhas, que eram efectuadas por pessoal contratado sazonalmente pelos lavradores.
O conjunto dos ganhões era designado por "ganharia" ou "malta" e tinha por dormitório a chamada "casa da ganharia" ou "casa da malta", casa ampla que podia acomodar vinte a trinta homens, em tarimbas improvisadas ao longo das paredes.
No monte, as refeições da ganharia tinham lugar na chamada “cozinha dos ganhões”. Aí se sentavam em burros[i] dispostos ao longo de uma mesa comprida e estreita. A cozinha dispunha igualmente de uma lareira espaçosa onde se podia cozinhar em panelas de ferro. A comida era bastante frugal: açorda acompanhada com azeitonas, olha[ii] com batatas e hortaliças, sopas de cebola acompanhadas com azeitonas, olha de legumes com toucinho e morcela ou badana, gaspacho acompanhado com azeitonas ou batatas cozidas temperadas com azeite e vinagre.” (1)
“A mesa da cozinha dos ganhões era posta pelo abegão[iii] e pelo sota, que se sentavam cada um à sua cabeceira da mesa. A entrada dos ganhões na cozinha só se verificava depois do abegão ter bradado para o exterior: “Ao almoço!”, ”À ceia!” ou “Ao jantar!”, conforme a refeição de que se tratava. A malta acudia logo à chamada, tirava o chapéu e sentava-se à mesa sempre no mesmo lugar. O que era para comer já tinha sido previamente vazado pelo abegão e pelo sota, em grandes alguidares, conhecidos por “barranhões”. Só faltava migar as sopas de pão, o que cada um fazia puxando da navalha que trazia consigo. Lá diz o adagiário: "Sopa de ganhão, cada três um pão."
Amolecidas as sopas, o abegão dava ordem de comer, soltando um “Com Jesus!”. De cada barranhão comiam quatro a seis ganhões, cada um dos quais metia sempre a colher no mesmo local do barranhão, já que "Não há guerra de mais aparato que muitas mãos no mesmo prato."
O abegão e o sota comiam cada um deles em sua tigela, mais pequena que o barranhão e que era unicamente para cada um deles.” (2)
“No início do século passado, ainda persistia o costume de no final da refeição, o abegão juntar as mãos e dizer “Demos graças a Deus.” A malta punha então as mãos e pelo menos aparentemente, todos rezavam e só deixavam de o fazer, quando o abegão se benzia, dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Nessa altura benziam-se e só depois se retiravam.” (2)
A figura
Estamos em presença de uma figura composta que representa a refeição de três assalariados rurais (ganhões) sentados em torno de uma mesa assente numa base rectangular simulando o chão, cujo topo é cinzento cor de laje e a orla cor de zarcão.
Os ganhões têm como traços comuns estarem sentados em “burros”, usarem na cabeça um chapéu aguadeiro[iv] negro e calçarem botas com diferentes tons de castanho.
O da esquerda com cabelo e suíças grisalhas configura ser idoso, o do centro com cabelo e bigode negros aparenta meia idade, enquanto o da direita com cabelo castanho parece ser um jovem imberbe.
Trajam de maneiras distintas: O da direita veste calças azuis, enverga uma camisa azul claro com botões da mesma cor e por cima dela um pelico castanho em pele de ovelha, debruado com couro castanho claro e com uma abotoadura provida de alamares em couro, algo mais escuro que o debrum. O do centro veste calças cinzentas cingidas à cintura com um cinto negro, camisa branca com botões da mesma cor e colete negro com abotoadura frontal de igual cor, apresentando costas em cinzento, de largura regulável por meio de um cinto e de uma fivela dessa mesma cor. O da direita traja calça castanha com cinto de tonalidade mais escura e camisa verde claro com botões de igual cor.
Todos têm à sua frente uma malga em barro vermelho vidrado, com açorda e ovo escalfado. O da frente parece levar uma colher de madeira à boca e tem do seu lado direito um copo de barro vidrado, supostamente contendo vinho. O da direita pega com a mão esquerda num copo como o anterior e tem uma colher de madeira assente na mesa junto à mão direita. O da direita pega numa colher de madeira com a mão esquerda e tem a mão direita próxima de um copo igual aos demais.
Sobre a mesa e à frente, da esquerda para a direita veem-se sucessivamente um chouriço cortado, uma navalha aberta e um pão igualmente cortado.
Análise contextual da figura
A criação da figura “cozinha dos ganhões” remonta segundo creio a José Moreira (1926-1991) e posteriormente a figura tem conhecido várias recriações por parte doutros barristas, todas elas ingénuas. Analisemos sob o ponto de vista da ingenuidade, a recriação de Carlos Alves:
- O chapéu aguadeiro de uso corrente pelos assalariados rurais alentejanos nos finais do séc. XIX e primórdios do século XX, é encarado em termos de traje como uma marca identitária alentejana. Todavia, os ganhões tal como vimos atrás, por uma questão de respeito e por prática religiosa, tiravam o chapéu da cabeça antes de se sentarem à mesa para comerem;
- A figura representa três ganhões e na prática estes eram em número superior, sentados de um lado e outro duma mesa comprida e estreita;
- Os ganhões não comiam de uma malga de uso individual, mas comiam vários de um barranhão de uso colectivo;
- Não era fornecido vinho às refeições, as quais eram modestas não incluindo chouriço ou queijo e mesmo ovo escalfado na açorda. De tal maneira que em certa ocasião, o ganhão e poeta popular Jaime da Manta Branca (1894-1955) foi levado a desabafar perante um lauto almoço do patrão com amigos: “Não vejo senão canalha / De banquete p'ra banquete / Quem produz e quem trabalha / Come açordas sem azête.”. Consta-se que a proeza lhe saiu cara e foi preso pela GNR. Estava-se em pleno Estado Novo.
O trabalho do barrista
A modelação e a decoração das figuras por parte deste barrista têm evoluído no sentido de uma maior minúcia, o que inclui também a representação de texturas. Deste modo, na decoração do presente conjunto e para além do sóbrio e harmonioso cromatismo naturalista dominante, foram representadas texturas[v] de alguns componentes: lã do pelico, cabelo e apêndices capilares, miolo do pão, veios da madeira e cortiça dos bancos. O artífice está a percorrer o seu próprio caminho e consolida o seu próprio estilo, o qual já é revelador de forte carácter artístico como barrista.
Na sequência da divulgação da presente figura por Carlos Alves no Facebook, comentou o consagrado barrista Jorge da Conceição: ”Continua a desenvolver o teu estilo e a dar consistência aos teus traços identitários que estás no bom caminho.”. É um comentário que provindo de quem vem, me apraz aqui registar.

BIBLIOGRAFIA
1 - MATOS, Hernâni. A novela Belmonte e a Poesia Popular de Estremoz. [Em linha]. [Editado em 27 de Novembro de 2013]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2013/11/a-novela-belmonte-e-poesia-popular-de.html [Consultado em 16 de Maio de 2021].
2 - MATOS, Hernâni. Cozinha dos ganhões. [Em linha]. [Editado em 26 de Abril de 2011]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2011/04/cozinha-dos-ganhoes.html [Consultado em 16 de Maio de 2021]. 

Publicado inicialmente a 19 de Maio de 2021
                                                                                                                                                                    


[i] Bancos rústicos confeccionados com pernadas de sobreiro.
[ii] Comida em cuja confecção podem entrar legumes frescos, legumes secos, batata, enchidos, carne.
[iii] A ganharia tinha como mandante o “abegão“, que só recebia ordens do grande lavrador, que o tinha como seu representante em todas as tarefas agrícolas. Era ele que dava as ordens para começar a trabalhar, comer ou parar e que tratava da acomodação e pagamentos da ganharia. O abegão trabalhava e comia juntamente com os ganhões, mas dormia em casa própria com o “sota“, que era coadjutor e substituto do abegão em tudo que podia e sabia.
[iv] O chapéu aguadeiro, típico no Alentejo de antanho, é um chapéu com copa semi-esférica e aba circular, larga e revirada integralmente para cima. A designação resulta de no caso de chover muito, reter a água da chuva, pelo que exigia ser revirado para baixo.
[v] Na barrística de Estremoz, a textura representada há mais tempo é a da pele de ovelha. No decurso do tempo outras se lhe foram adicionando numa perspectiva de fidelidade da representação naturalista. A título meramente exemplificativo, o barrista Jorge da Conceição já representou nas suas criações, texturas de materiais como: lã, cabelo, fio, pão, vime e cortiça.

sábado, 1 de novembro de 2025

A génese da arte pastoril


COLHER EM MADEIRA - Artefacto de arte pastoril alentejana
da autoria de Joaquim Teodoro da Cruz. Orada, 1940.
Colecção Hernâni Matos.


Ao meu Amigo António Carmelo Aires,
distinto coleccionador de arte pastoril,
no dia do seu aniversário.

 

O Alentejo é terra de vagares. Na charneca, o tempo cresce e recresce para o pastor de ovelhas. Nesse contexto, os palpites de alma fazem das suas. Logo um impulso criador detona e pelas redes neuronais é transmitido às mãos calejadas. Estas manobram com destreza uma navalha afiada com a qual entalha, grava ou filigrana, o material nativo que recolheu na Terra Mãe, mesmo ali à mão de semear.

Com a magia dum alquimista, transmuta a madeira, a cortiça e o chifre, em autênticas Obras de Arte, graças a um nato saber-fazer, aliado a um refinado bom gosto, pautado por ideias ancestrais que lhe povoam a mente.

Cruzes, estrelas, flores, signo-saimões, hexafólios e corações, integram a simbologia, a maioria das vezes apotropaica ou mesmo sagrada, com que lavra a superfície dos materiais e que nos transmitem mensagens e estórias codificadas que o artífice compôs, visando homenagear o destinatário ou a destinatária da sua Obra: a conversada, a mulher amada, o patrão ou a patroa que lhe asseguram o ganha-pão.

Não se trata, pois, de artefactos confeccionados para matar o tempo, como alvitra a proclamação rifoneira: “Quem não tem que fazer, faz colheres”. Pelo contrário, são manufactos criados graças à generosidade do tempo que cresce e recresce nesta terra de vagares.


BORSAL - Estojo em cortiça para protecção do machado corticeiro. Autor desconhecido.
Colecção Hernâni Matos.

TABAQUEIRA EM CHIFRE E MADEIRA. Joaquim Carriço Rolo (1935-2023).
Colecção Hernâni Matos.

ARTEFACTO BIFUNCIONAL - Constituído por uma carretilha e 3 chavões móveis
ao longo de uma argola circular. Colecção Hernâni Matos.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Marcas de autor nos Bonecos de Estremoz de Mário Lagartinho

 

Mulher a vender chouriços. Mário Lagartinho (1935-2016).


LER AINDA

1. Preâmbulo
No meu livro BONECOS DE ESTREMOZ [1] foi feita a inventariação das marcas de autor dos barristas de Estremoz: Aclénia Pereira, Afonso Ginja, Ana das Peles, Ana Lagartinho, António Lino de Sousa, Armando Alves, Carlos Alves, Fátima Alves Lopes, Fátima Estróia, Guilhermina Maldonado, Irmãos Ginja, Irmãs Flores, Isabel Carona, Isabel Pires, João Fortio, João Sousa, Jorge Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Inácia, Maria José Cartaxo, Maria Luísa da Conceição, Mariano da Conceição, Mário Lagartinho, Matias António da Silva, Matilde Ginja, Miguel Gomes – Célia Freitas, Paulo Cardoso, Quirina Marmelo, Ricardo Fonseca, Sabina da Conceição Santos, Sónia Mateus, Vasco Fonseca.
Foram então catalogadas 121 marcas de 33 barristas, cuja imagem foi reproduzida, acompanhada da respectiva descrição. Tratou-se do maior número de marcas até então inventariado. Todavia e por precaução afirmei: “Estou convicto que a listagem de autores e respectivas marcas aqui apresentadas não está completa e, como tal, não é definitiva. O futuro o confirmará ou não.“ E dá-se o caso que veio a confirmar a confirmar. De facto, o estudo paciente, como é meu timbre, de exemplares da barrística de Estremoz que fui adquirindo, revelaram a existência de novas marcas de autor. 

2. Marcas de autor de Mário Lagartinho
A este propósito, merecem especial destaque as marcas de autor de Mestre Mário Lagartinho, que em 2018 eram em número de 3 e que actualmente passaram a ser 14 (12 das quais pertencentes a exemplares da minha colecção particular).

MARCA MANUSCRITA

FIGURAS

FIGURAS EM QUE FOI IDENTIFICADA

M. L.

1

Rei mago em pé (Belchior) e Rei mago em pé (Gaspar) – Figuras de presépio de trono

M. L / ESTR

2

Nossa Senhora ajoelhada – Figura de presépio de trono

M.L. / E. P.

3

Mulher a vender chouriços

ML / ES

4

Pastor ofertante das pombas – Figura de presépio de trono

M. L. / Estrems

5

Pastor ofertante com um borrego ao colo, Pastor ofertante ajoelhado e Rei mago em pé (Baltasar) – Figuras de presépio de trono

Mário / Lagartinho / Estremoz

6

Pastor das migas e São José ajoelhado – Figura de presépio de trono

Mario / Lagartinho / Estremoz 86

7

???

Mário / Lagartinho / Estremoz 93

8

Mulher dos perus

Mário / Lagartinho / Estremoz / Portugal

9

Nossa Senhora ajoelhada - Figura de presépio com base poligonal

Mario / Lagartinho / 88 Estremoz

10

Senhora de pezinhos com base

Mario / Lagartinho 80 / mL

11

Mulher a vender chouriços

Mario LAG / M.L.

12

Trono

CARIMBO

FIGURAS

FIGURA EM QUE FOI IDENTIFICADA

Carimbo “ESTREMOZ”, inserido no contorno de marca denteada de “carica”.

13

Matança do porco

MARCA MISTA (manuscrita e carimbo)

FIGURAS

FIGURA EM QUE FOI IDENTIFICADA

Carimbo “ESTREMOZ” / Marca manuscrita “M. L.”.

14

Pastor do harmónio

O estudo efectuado sobre as marcas de autor de Mestre Mário Lagartinho está sintetizado no quadro acima. Dele foi possível extrair várias conclusões:
- As marcas de autor são de 3 tipos: marcas manuscritas, carimbos e marcas mistas;
- A marca datada mais antiga é de 1980 e a mais recente é de 1993, datas que se inserem no período de tempo que medeia entre os anos 70 e 90 do século XX, no decurso do qual Mestre Mário Lagartinho foi simultaneamente oleiro e bonequeiro;
- As marcas 1, 2, 4, 5, 6, 12 são coevas e pertencem às figuras de um presépio de trono e ao próprio presépio de trono. Significa isto que as 10 peças de um presépio de trono apresentam pelo menos 6 marcas diferentes. Digo pelo menos, uma vez que não foi possível identificar a marca aposta no berço do Menino Jesus, já que que a mesma não é perfeitamente legível, visto se encontrar coberta de tinta;
- Não foi possível sequenciar temporalmente as marcas não datadas. Porém, a decoração dos Bonecos e a patine dos mesmos, levam a admitir que as mascas 3 e 13 estarão entre as marcas mais antigas conhecidas.

3. O seguro morreu de velho

É considerável o incremento ocorrido no número de marcas de autor de Mestre Mário Lagartinho catalogadas no decurso do período 2018-2025. Todavia, tal como proclama o velho rifão "O seguro morreu de velho", por precaução é de admitir que o número de marcas já catalogadas possa não ser definitivo. 

Hernâni Matos

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14




[1] MATOS, Hernâni. BONECOS DE ESTREMOZ. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 
Outono de 2018.
[2] Cortesia de Diogo Galhofo.


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 28 de Outubro de 2022