GANHÃO (Início do séc. XX).
Cliché de Faustino António Martins, Lisboa.
COZINHA DOS GANHÕES (1911).
Herdade das Pinas, de D. Theodoro Rodrigues, Estremoz.
A GANHARIA
Os “ganhões“ eram assalariados agrícolas indiferenciados, que se ocupavam de tarefas como lavras, cavas, desmoitas, eiras, etc., com excepção de mondas, ceifas e gadanhas. A sua actividade está registada no cancioneiro popular:
“Eu sou um ganhão da ribêra,
Da ribêra sou ganhão.
Lavro com dois bois vermelhos
Que fazem tremer o chão. [3]
“Bom arado e bom tomão
Faz’uma bela intanchadura;
Boa junta e bom ganhão
Deitam um rego à d’reitura”. [3]
Numa lavoura existiam duas espécies de ganhões: os de pensão e os rasos. Os primeiros ajustados ao ano, pelo S. Mateus e os segundos por temporada de faina agrícola, ganhando estes menos que aqueles.
O conjunto dos ganhões era designado por “ganharia“ ou “malta“ e tinha por dormitório a chamada “casa da ganharia “ ou “casa da malta“, casa ampla que podia acomodar vinte a trinta homens, em tarimbas improvisadas ao longo das paredes. A casa da ganharia tinha sempre uma lareira espaçosa, onde à noite, os ganhões se sentavam nos burros, bancos improvisados com pernadas de azinheira ou de sobreiro. Aí se enxugavam de eventuais molhas, se aqueciam e conversavam pelo serão fora.
A ganharia tinha como mandante o “abegão“, que só recebia ordens do grande lavrador, que o tinha como seu representante em todas as tarefas agrícolas. Era ele que dava as ordens para começar a trabalhar, comer ou parar e que tratava da acomodação e pagamentos da ganharia. Era ele quem determinava o ritmo de tudo:
“Cá ‘stou á porta da rua,
Sem manta nem cassação;
Oh rapazes, vão lá fora,
Que lá vem o abegão.” [6]
O abegão dava o apoio necessário aos ganhões:
“Corri matos e charnecas,
Eu mais o meu abegão,
Para achar um par d’aivecas
À minha satisfação.” [6]
A condição de abegão era cobiçada pelas raparigas casadoiras:
“Belo monte da Gramicha
Que já não tem abegão
Eu hei de p’ra lá mandar
O amor do meu coração.” [6]
O abegão trabalhava e comia juntamente com os ganhões, mas dormia em casa própria com o “sota“, que era coadjutor e substituto do abegão em tudo que podia e sabia. A condição de sota também era invejada. Daí que estes fossem capazes de dizer às moças:
“Sou sota no taboado,
Na Pina dou-te partido;
Se eu não sou do teu agrado
Diz-me qual é o motivo.” [6]
Algumas gostariam de ter um sota por padrinho de casamento:
“No dia em que eu casar
É que levanto a bandeira,
O meu padrinho há de ser
O sota lá da Padeira.” [5]
AS REFEIÇÕES DA GANHARIA
No monte, as refeições da ganharia tinham lugar na chamada cozinha dos ganhões. Aí se sentavam em burros dispostos ao longo de uma mesa comprida e estreita. A cozinha dispunha igualmente de uma lareira espaçosa onde se podia cozinhar em panelas de ferro.
No Outono, no Inverno e na Primavera, as refeições da ganharia consistiam em almoço (antes do nascer do sol), merenda (ao meio-dia) e ceia (ao anoitecer).
Normalmente o almoço, ao levantar, constava de açorda acompanhada com azeitonas. A merenda, no local de trabalho, consistia em pão e queijo, um para cada homem e pão à descrição. A ceia, ao regressar do trabalho, baseava-se em olha com batatas e hortaliças, condimentadas em dias alternados com toucinho ou azeite. No dias de azeite, cada homem recebia meio queijo e azeitonas.
No Verão, as refeições da ganharia constavam de almoço (às sete da manhã), jantar (ao meio-dia) e merenda ou ceia, conforme se comia respectivamente ao sol-posto ou à noite. O almoço constava de sopas de cebola acompanhadas com azeitonas e meio queijo por cabeça.
“Triste vida a dum ganhão
agarrado ao rabanejo,
de manhã é calatrão [a]
ao meio dia pão e queijo.” [7]
de manhã é calatrão [a]
ao meio dia pão e queijo.” [7]
O jantar consistia em olha de legumes com toucinho e morcela ou badana. A merenda ou ceia compunha-se de gaspacho acompanhado com azeitonas e meio queijo por homem. Em vez do gaspacho também podiam ser batatas cozidas temperadas com azeite e vinagre.
A mesa da cozinha dos ganhões era posta pelo abegão e pelo sota, que se sentavam cada um à sua cabeceira da mesa. A entrada dos ganhões na cozinha só se verificava depois do abegão ter bradado para o exterior: “Ao almoço!”, ”À ceia!” ou “Ao jantar!”, conforme a refeição de que se tratava. A malta acudia logo à chamada, tirava o chapéu e sentava-se à mesa sempre no mesmo lugar. O que era para comer já tinha sido previamente vazado pelo abegão e pelo sota, em grandes alguidares, conhecidos por “barranhões”. Só faltava migar as sopas de pão, o que cada um fazia puxando da navalha que trazia consigo. Lá diz o adagiário: "Sopa de ganhão, cada três um pão."
Amolecidas as sopas, o abegão dava ordem de comer, soltando um “Com Jesus!”. De cada barranhão comiam quatro a seis ganhões, cada um dos quais metia sempre a colher no mesmo local do barranhão, já que "Não há guerra de mais aparato que muitas mãos no mesmo prato."
O abegão e o sota comiam cada um deles em sua tigela, mais pequena que o barranhão e que era unicamente para cada um deles.
"A hora de comer é a da fome" e por isso, as refeições corriam sem pressas, em silêncio e ordeiramente, com cada um concentrado no acto de comer, já que "Quem não é para comer não é para trabalhar."
Durante as refeições, se alguém precisava de pedir qualquer coisa, batia com a navalha na mesa. Se alguém batesse no barranhão era para pedir a rodilha para se limpar.
Quando todos tinham deixado de comer, o abegão punha-se imediatamente de pé, o que correspondia a dar ordem de retirar, o que cada um fazia, voltando a pôr o chapéu na cabeça. No exterior ou na casa da malta era então chegada a altura dos fumadores puxarem da onça de tabaco e do livro de papel, para enrolarem um cigarro que acenderiam com fuzil e isca:
“O regalo do ganhão
É comer em prato cheio,
Beber vinho, se lh’o dão,
Fumar do tabaco alheio.” [6]
No início do século passado, ainda persistia o costume de no final da refeição, o abegão juntar as mãos e dizer “Demos graças a Deus.” A malta punha então as mãos e pelo menos aparentemente, todos rezavam e só deixavam de o fazer, quando o abegão se benzia, dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Nessa altura benziam-se e só depois se retiravam.
A CONDIÇÃO DE GANHÃO
A vida de ganhão era uma vida dura e humilde, saída em sina a homens robustos, com escassa possibilidade de, por mérito próprio, conseguirem ascender à condição de sota ou de abegão. Daí o pendor negativo do pensamento de alguns deles:
“Por me ver’s de pau e manta
Não cuides que sou pastor,
Sou um pobre ganhão
Do conde de Vila-Flor.” [6]
“Triste vida a de um ganhão,
Andar sempre a trabalhar!
Dá-lhe Deus uma doença,
Vai morrer ao Hospita!” [6]
Alguns queixavam-se dos pais das moças em idade de casar:
“Já não há quem queira dar
Uma filha a um ganhão.
Pensam que lhe há de vir
Das ilhas um capitão…” [3]
Outros desiludiam as próprias moças:
“Tenho vida de ganhão,
Não te posso assistir:
De dia ganho o meu pão,
De noite quero dormir.” [3]
Todavia, alguns tinham consciência de classe, que se traduzia em profunda crítica social:
“Mais vale um ganhão
Todo roto e esfrangalhado,
Que valem trinta pandilhas
Dos que usam marrafa ao lado.” [3]
“Mais vale um ganhão
Sem manta nem nada,
Que trinta peraltas
De bota engraxada.” [7]
E que pensavam as moças casadoiras? Nem todas pensariam o mesmo. Umas diziam que:
“Eu não quero amor ganhão,
Que não quero ser ganhoa,
Quero o amor hortelão,
Que eu quero ser horteloa.” [6]
Algumas iam mesmo mais longe.
“Ò moças não queiram
casar com ganhões,
não ganham avondo [b]
p’ra comprar botões.” [7]
Porém, outras tinham opinião contrária:
“Todas me lavam a cara,
Do meu amor ser ganhão:
É bonito, eu gosto dele,
É honrado e ganha pão.” [6]
Algumas lamentavam-se da sua sina:
“Eu nasci num berço d’oiro,
Quem havia de dizer
Que nos braços d’um ganhão
Havia de vir morrer!” [6]
O que é um facto, é que a avaliação predominante, não era favorável aos ganhões:
“Quem tiver filhas bonitas,
Não as deixe ir a funções,
Que são rodilhas de todos,
Onde se limpam ganhões.” [6]
Já que “Todo o preto tem o seu dia”, anualmente o ponto alto da vida de um ganhão era a ida às Festas do S. Mateus, a Elvas:
”Ó feira de S. Matheus,
Onde as ganharias vão
A gastarem o dinheiro
Da temporada do v’rão.”
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[a] - Sopas de cebola.
[b] - O bastante.
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[a] - Sopas de cebola.
[b] - O bastante.
Publicado inicialmente em 26 de Abril de 2011
BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CAPELA E SILVA, J. A . Ganharias. Imprensa Baroeth. Lisboa, 1939.
[3] - LEITE DE VASCONCELLOS, J. Cancioneiro Popular Português, vol. I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1971.
[4] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[5] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[6] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[7] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[8] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.
Este belo blog passa a estar pendurado na lapela do "Cantigueiro".
ResponderEliminarEspero não ter sido inconveniente...
Saudações.
gosto. o meu pai teria adorado a sua prosa. ele tinha tb uns escritos assim mas da beira alta. Partiu antes de os estruturar, talvez um dia eu pegue. ainda bem que dá voz à memória
ResponderEliminaro anónimo de há pouco é a adelaide, mas não consegui enviar de outra forma.
ResponderEliminarBelíssimo, amigo Hernâni, e emocionante. Emocionou-me a beleza da sua escrita, tanto como a rudeza e a tristeza daqueles tempos... E hoje, mesmo sabendo que os tempos são outros e que imperioso é que o sejam, não posso deixar de lamentar as lamentações que se ouvem por aí...
ResponderEliminarUma escrita bem organizada e muito elucidativa da vida dos ganhões. Vida rude e muito cheia de trabalho duro...E abandonavam as suas casas e família para um lugar onde as condições de vida...eram dificies e pouco motivadoras...E chegavam a ser discriminados pela própria sociedade,que os considerava pessoal menor...A vida passada no antigamente não era um mar de rosas...Sofria-se por trabalhar horas a mais...e sofria-se por falta de condições de conforto e de condições ludicas...E o Professor através do seu belo texto e da pesquisa efectuada,dá-nos conhecimento de uma época que não sabiamos ter existido,nem imaginávamos tão dura para os homens que tinham de lutar por trabalho,para poderem sobreviver. Obrigada por partilhar connosco momentos tão dificies na vida das pessoas,mas que nos ajudam a situar-nos no tempo...e na história dos nossoa antepassados.Abraço.Ana Carita.
ResponderEliminarCARO HERNÂNI: PARABÉNS POR ESTE BONITO TEXTO. FOI A TRABALHAR NO DURO, QUE NOSSOA PAIS, NOSSOS AVÓS NOS DEIXARAM TONELADAS DE OURO QUE HOGE JÁ NÃO TEMOS! PORQUÊ? SE VOLTASSEM ESTAVAM EMPENHADOS TANTO QUE TRABALHARAM. RESPEITOSOS CUMPRIMENTOA José Maria Dias.
ResponderEliminarPS-- CONSULTE, madeiraiarte.fotosblogue.com, FAECEBOOK- artesanato rural alentejano, YOUTUB- madeiraiarte.
Caro Hernâni,
ResponderEliminarA realidade que você descreve, não me é totalmente estranha, pois sou oriundo da Beira Baixa de uma zona aonde os naturais de chamam raianos.
Toda essa descrição se pode aplicar na integra na zona das minhas origens, tendo eu presente muitas imagens reais na minha memória.
Os tempos descritos eram dificeis, pois os ganhões não tinham direitos nenhuns; só tinham o dever de trabalhar do nascer ao por do sol.
Cumprimentos
Abilio Pires
Abílio:
EliminarAssim era.
Obrigado pelo seu comentário
Cumprimentos.
Excelente !!
ResponderEliminarFiz-me eco do seu blog e convidei um conjunto de amigos meus - daqueles que gostam de conhecer aquilo que vale a pena conhecer - a lerem-no tambem.
Cumprimentos
Horácio:
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Agradeço igualmente a divulgação do meu blogue junto dos seus amigos.
Espero não desmerecer de futuro o interesse manifestado.
Os meus cumprimentos.
Sempre oportuno. E eu sempre a aprender. Obrigada.
ResponderEliminarEu é que agradeço pelo interesse manifestado em me ler, que espero não desmerecer no futuro.
EliminarMais uma vez, estou a aprender com o que escreve, e como escreve, descreve a vida difícil por que o povo passava. Tinha uma ideia errada de quem eram os ganhões.
ResponderEliminarEstamos quase a um passo do mesmo, com tudo o que se está a passar neste País. Gente há já com fome e as crianças, estão como é óbvio, a passar mal. Obrigada por mais uma lição.
Céu
Céu:
EliminarObrigado pelo seu comentário.
Há que resistir, lutar e procurar acumular forças. E sobretudo muita unidade na acção.
O amigo Hernâni Matos com os ensinamentos que dá a conhecer aos seus interlocutores, presta um serviço de muito agrado a quem tem o privilégio de acesso aos seus blogs; isso vê-se pelo numero cada vez maior de comentaristas que se manifestam. Se é verdade que muita gente se delicia com o que escreve, também não será menor a sua satisfação em saber o acolhimento que as pessoas lhe dedicam. Eu sou um admirador de tudo que escreve, respeitante aos trabalhos, que antes se faziam, através da força dos animais e que hoje são feitos através de máquinas poderosas para todos os serviços do campo. São outros os tempos , contudo vieram de algum modo tornar a vida do campo mais fácil e menos penosa, para as pessoas que não tiveram outra forma de angariar o seu sustento e de seus filhos. Grato pelo que escreve e me dá gosto de ler. Agora uma quadra mais dedicada aos ganhões;
ResponderEliminarEu fui ganhão na Romeira Se todos fossem para lavrar
E fui lavrar no Formos ilho Como são para por defeitos
Por causa duma fagueira Nunca iriam faltar
Deixei fugir um novilho No Mouchão regos direitos
Amigo Fonseca:
EliminarMuito obrigado pelos seus sempre bem fundamentados argumentos.
Um abraço.
Como eu gosto de "" esgravulhar" na NET e encontrar estes tesouros!. Obrigada e parabéns au autor.
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário.
EliminarVolte sempre.