“Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”
Luís de Camões (c.1524 – 1580)
Preâmbulo
Ao Vitorino Salomé agradeço a força do título da sua canção “Vou-me Embora Vou Partir”, a qual integra o álbum “Semear Salsa Ao Reguinho”, lançado em 1975 e que curiosamente termina com o verso “Eu hei-de ir, hei-de voltar com o tempo”.
Mudar de vida
Há uns tempos atrás e com alguma surpresa da minha parte, o Pedro deu-me conhecimento de que se ia retirar das lides filatélicas. Como tal, não voltaria a candidatar-se ao cargo de Presidente da Federação Portuguesa de Filatelia.
Disse cá para comigo “O Pedro está farto da rapaziada e das “guerras do alecrim e da manjerona” e resolveu mudar de ares”. Lembrei-me de imediato do poema “Viver sempre também cansa”, do José Gomes Ferreira “O sol é sempre o mesmo e o céu azul / ora é azul, nitidamente azul, / ora é cinzento, negro, quase-verde.../ Mas nunca tem a cor inesperada.”. O cineasta Paulo Rocha se fosse vivo, dar-lhe-ia razão e diria que ”É preciso “Mudar de vida”.
O Pedro disse-me então que gostaria de dispor de um texto meu, o qual sinalizasse o nosso relacionamento e o modo como eu encaro o seu trabalho de 4 décadas, ao leme da Federação Portuguesa de Filatelia. A finalidade era publicá-lo conjuntamente com outros depoimentos no último número da Filatelia Lusitana, tendo-o como Director. De imediato acedi ao seu honroso convite.
Como não tenho vocação para Tedéus nem tão pouco jeito para epitáfios, fi-lo da única maneira que o sei fazer e como é meu timbre, sem formalismos e meio a sério, meio a brincar. Assim o exige a nossa amizade e o nosso gosto pela vida.
Eu e o Pedro
Oitentão, conheci o Pedro há cerca de quatro décadas atrás, era eu ainda um rapaz, com a particularidade de ser dirigente dum clube filatélico de província. O Pedro, então com menos uns centímetros de barriga, era já um Deus Nosso Senhor, lá nos píncaros da Avenida Almirante Reis. De vez em quando eu tinha a ousadia de metralhar a Direcção da Federação com alguns ofícios batidos numa velha “Olímpia”, cuja fita padecia de excesso de tinta. Se não os pus vesgos, andou lá perto disso.
Entre mim e o Pedro, tudo apontava para que o nosso relacionamento interpessoal não funcionasse, já que o nosso horóscopo nos sinaliza a ambos como pertencentes ao signo do Leão com ascendente de Touro. Tudo indicava que o nosso relacionamento viesse a “fazer faísca”. Tal não aconteceu, quem sabe se por termos consciência desse risco. Cada um no seu galho, lá nos fomos respeitando e aturando um ao outro, às vezes sabe-se lá como. O que é certo é que resultou e que cimentámos uma amizade que tem resistido ao tempo e se tem fortalecido apesar das nossas diferenças. É que o direito à diferença é um direito constitucional que legitima que os amigos não tenham que ser o clone um do outro. Para além disso, a amizade não goza da propriedade transitiva. A pode ser amigo de B e B pode ser amigo de C e estas condições não implicam que A tenha que ser necessariamente amigo de C. No nosso caso, somos ambos laicos e republicanos. Todavia ele ufana-se com o verde, é leão e chuta à direita. Pelo contrário, eu sou águia, assumidamente vermelho e chuto à esquerda.
A convite do Pedro, algures no século passado, integrei uma Direcção da Federação Portuguesa de Filatelia, sufragada pelos votos dos clubes federados. Creio que ele terá identificado em mim, qualidades que poderiam fazer a diferença na sua equipa. Julgo que não o desiludi, apesar de na primeira reunião de Direcção ter apanhado um “cagaço” quando avistei junto a ele, uma monumental pilha de papéis e papeletas, dos quais havia que tomar conhecimento e relativamente a alguns tomar decisões. Para tal, era tudo visto, tintim por tintim e branco no preto. Formatado aos processos regimentais federativos, lá fui andando e crescendo como dirigente filatélico, numa caminhada comum, no decurso da qual aprendi muito.
As reuniões da Direcção
As reuniões da Direcção eram matinais e por vezes maiores que a légua da Póvoa, apenas interrompidas quando algumas barrigas como a minha, começavam a dar horas. Chegados a este ponto, as intervenções eram mais curtas, a ver se o Pedro dava ordem de “soltura”. Quando esta acontecia, lá íamos nós a caminho do restaurante Chilgamba, ali mesmo na Avenida Almirante Reis. O almoço era um dos pontos altos desse dia. Púnhamos as conversas em dia, falava-se de colecções, das últimas peças adquiridas e das exposições que aí vinham. Findo o repasto, lá retornávamos à casa mãe, a sede da Federação, a ver se a pilha de papéis e de papeletas, organizadas pelo Pedro, chegava ao fim. Alcançado este, lá nos despedíamos uns dos outros, regressando cada um ao seu porto de abrigo, até à próxima reunião de Direcção, para desempenharmos a missão que assumíramos cumprir, tendo o Pedro como timoneiro.
Contactável até na casa de banho
Certa vez, o Pedro pregou-me uma “rabecada”. Tinha um assunto urgente a tratar comigo e eu não lhe atendia o telefone. Quando conseguiu que eu o atendesse, perguntou-me de rompante “Só agora é que me atende o telefone?”, ao que eu respondi “Só agora é que pude. Estava na casa de banho e não tinha o telefone comigo.”. A resposta não se fez esperar e foi fulminante “Hernâni, desculpe, mas um dirigente filatélico tem que estar sempre contactável, mesmo na casa de banho”. Apeteceu-me dizer-lhe “Deixe estar chefe, que vou deixar de ter dores de barriga”. Todavia não fui por aí. Disse-lhe simplesmente “Tem razão, Pedro”. E o que é um facto, é que a partir daí, o meu telemóvel passou a ser meu companheiro de estrada, quer a caminhada fosse timbrológica ou não.
A minha entrada para Jurado
Como expositor filatélico tive sempre o saudável hábito de questionar os Jurados sobre as classificações que me eram atribuídas, ousadia que me saiu cara. Candidatei-me a Jurado nacional e fui chumbado com perguntas de algibeira. Duas vezes a Inteiros Postais e uma vez a Maximafilia. É claro que fiquei “piurso”, mas as coisas ficaram por ali ou melhor não ficaram mesmo por ali. Presumo que o Pedro não tenha gostado da coisa e lá terá dito com os seus botões ”Porra! Vou acabar com esta tourada. Este gajo tem currículo filatélico e “percebe da poda”. Há que convidá-lo para o corpo de Jurados.”. E assim foi. Passei a integrar o corpo de Jurados nacionais da Federação Portuguesa de Filatelia nas classes de Inteiros Postais, Maximafilia e Literatura Filatélica. Mais tarde, o Pedro subscreveu a minha candidatura a Jurado FIP de Inteiros Postais, tendo sido certificado como tal na Exposição FIP de Valência, em Espanha. Cumulativamente, Steve Washburn, team leader da Comissão FIP de Inteiros Postais, cooptou-me como membro não eleito para integrar o Bureau da Comissão. Fui até hoje o único Jurado português que integrou um Bureau da FIP. Vejam lá em que deram os meus chumbos. Julgo ser oportuno e legítimo citar aqui dois provérbios populares portugueses "Não há fome que não dê em fartura" e "Quem ri por último, ri melhor".
Breve perfil biográfico do Pedro
Como filatelista, o Pedro viu as suas colecções obterem no decurso dos anos, as mas elevadas recompensas nas classes de Filatelia Tradicional, História Postal, Inteiros Postais, Classe Aberta e Literatura Filatélica. Por decisão do Congresso Federativo, foi-lhe outorgado em 2010, o Galardão de Filatelista Eminente, a mais elevada distinção da Filatelia de Portugal.
Escritor e jornalista filatélico, subscreve vasta colaboração em revistas e catálogos de exposições filatélicas, tanto em Portugal como no estrangeiro. É autor de várias obras nos domínios da História Postal, da História da 1ª República e da História de Cernache de Bonjardim, localidade que o viu nascer.
É Presidente da Federação Portuguesa de Filatelia (FPF) desde 1987 e foi Presidente da Federação Europeia de Sociedades Filatélicas (FEPA) no período (2001-2009), assim como Director das respectivas revistas “Filatelia Lusitana” e “FEPA News”.
Entre as inúmeros prémios e distinções que lhe foram atribuídas, é de salientar a outorga em 2019 da Medalha da FEPA “FOR EXCEPTIONAL SERVICE TO ORGANISING PHILATELY”, a mais alta distinção concedida a filatelistas europeus e atribuída uma vez por ano a um único filatelista. É igualmente de destacar a atribuição em 2022 da Medalha da FEPA “FOR EXCEPTIONAL PHILATELIC STUDY AND RESEARCH 2022”, pela publicação da obra OS CORREIOS PORTUGUESES 1853-1900 NOS 500 ANOS DO CORREIO EM PORTUGAL, considerado o melhor livro de 2022. Finalmente é ainda de realçar que a revista FILATELIA LUSITANA de qual é director, foi distinguida pela Academia Europeia de Filatelia com a Medalha de Imprensa para a melhor revista europeia de 2022.
É um gestor nato, trabalha por objectivos, tem uma visão estratégica das coisas, capacidade de liderança e de trabalho em equipa, espírito de missão e grande capacidade de resiliência.
Liderou a filatelia portuguesa durante quatro décadas, estruturando-a, disciplinando-a e estabelecendo parcerias eficazes com os Correios de Portugal, os quais asseguraram desde sempre o patrocínio dos eventos filatélicos nacionais, independentemente de serem simples mostras ou exposições do mais alto nível, como foi o caso da Exposição Filatélica PORTUGAL 98, comemorativa do 500º Aniversário da Chegada de Vasco da Gama à Índia, que foi igualmente o tema central da EXPO 98. Foi ainda o caso da Exposição Filatélica PORTUGAL 2010 - Exposição Mundial de Filatelia, integrada nas comemorações do 1º Centenário da República Portuguesa. Da PORTUGAL 98 e da PORTUGAL 2010, foi o Pedro o grande e principal obreiro.
Nos areópagos filatélicos internacionais e na condição de Presidente da FPF e da FEPA, o Pedro tem sido uma figura considerada e atentamente escutada, como tive oportunidade de constatar no Congresso FIP de Valência e no Congresso FEPA de Antuérpia.
Quer queiram ou não os seus detractores - que os tem - o Pedro é um grande Senhor da Filatelia a nível mundial e o seu prestígio como dirigente, transvasa o mero âmbito da Filatelia Nacional.
São profundas as marcas que deixa no terreno filatélico e enorme o seu legado. A sua memória como dirigente filatélico de excelência, perdurará no tempo e pairará nos ares, muito para além dos céus da Avenida Almirante Reis e da Rua Cidade de Cardiff. Nesta última se situa a actual sede da Federação Portuguesa de Filatelia, a qual integra o legado patrimonial que nos deixa.
Cronologia filatélica portuguesa
A civilização ocidental e cristã utiliza a era cristã, de acordo com a qual a contagem do tempo se faz tomando como referência a data do nascimento de Cristo. Daí que em termos cronológicos se utilizem as designações A.C. (antes de Cristo) e D.C. (depois de Cristo). Com a saída do Pedro do cargo que vem desempenhando há largos anos, a filatelia portuguesa na sua narrativa, usará inescusavelmente as designações A.P. (antes de Pedro) e D.P. (depois de Pedro).
O sucessor de D. Pedro
Apesar de “nuestros hermanos” o tratarem por D. Pedro, a ética laica e republicana que professa e integra a sua matriz identitária, indicia que não deixará sucessor ao cargo. Todavia, tal não impede que haja quem se perfile no horizonte filatélico como seu sucessor. Da outra margem da filatelia não sei nada e não tenho notícias há muito tempo. Todavia, eles saberão de si. O Pedro também. Sai, mas andará por aí.
Até sempre, Pedro!
Na antecâmara da sua retirada da cena filatélica, quero-lhe agradecer o privilégio da sua amizade e desejar-lhe as maiores felicidades na sua vida futura, votos que são igualmente extensivos à Ana, a sua adorável esposa, que igualmente me concedeu e à Fátima minha companheira, o privilégio da sua amizade. Bem hajam por isso.
Até sempre, Pedro!
Publicado a 28 de Dezembro de 2025
in Filatelia Lusitana, Série III, nº 50, Lisboa, Dezembro de 2025.
