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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Academia do Bacalhau


DISCURSO DO BACALHAU
(Proferido no dia 1 de Dezembro de 2012, no decurso
do XII Aniversário da Academia do Bacalhau de Estremoz,
no Teatro Bernardim Ribeiro desta cidade.)

A história que eu vou contar é uma história singela e cuja origem é muito antiga. É anterior ao tempo da outra senhora e mais velha que o tempo dos afonsinhos. É uma história que tem quase cinco mil milhões de anos, que é a idade estimada para o planeta Terra.
Quem nos conta a história é o Génesis, o primeiro livro do Antigo Testamento, que a tradição judaico-cristã atribui a Moisés. No seu capítulo I, de uma forma narrativa dá-nos uma visão mitológica da Criação do Mundo. Aí, nos versículos 20. e 21., é-nos referido o que Deus fez no quinto dia da Criação:
Versículo 20. Deus disse: “Que as águas fiquem cheias de seres vivos e os pássaros voem sobre a Terra, sob o firmamento do céu”.
Versículo 21. Deus criou as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem na água, conforme a espécie de cada um, e as aves de asas conforme a espécie de cada uma. E Deus viu que era bom.
Aqui termina o relato necessariamente sucinto do cronista bíblico, o qual por motivos compreensíveis se esgota aqui. É a altura adequada para nós entramos em acção, como cronistas assumidos de tempos tão antigos, que já não cheiram a naftalina, porque este hidrocarboneto aromático teve mais que tempo para sublimar. É caso para perguntarem:
- Há quanto tempo?
É uma pergunta sem resposta. E sabem porquê. É que se

“O tempo pergunta ao tempo
Quanto tempo o tempo tem.
O tempo responde ao tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto tempo o tempo tem.”

Apenas vos sabemos dizer que o personagem principal desta história se chama “bacalhau” e tem gostos que estão nos antípodas dos prazeres dos alentejanos. Estes protegem-se do frio, por dentro e por fora. Como? Bebem uns tintos e vestem capote. Sim! Porque um homem tem duas almas: a alma interior e a alma exterior. E o bacalhau? O bacalhau gosta de águas frias e por isso se instalou com armas e bagagens na Noruega, na Islândia e na Terra Nova. Aí os portugueses pescam bacalhau desde o século XV. Há sinais de consumo importante de bacalhau em Portugal desde o século XVI, sendo o peixe preferido dos pobres, a par da sardinha. Entretanto, o estatuto culinário do bacalhau mudou. De alimento popular passou a prato sofisticado, submetido a preparações muito elaboradas.
Actualmente a gastronomia do bacalhau é vasta e multifacetada. Há mais de mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau, espelhando cada uma delas a suprema criatividade de sabores e saberes dos seus criadores, alquimistas de serviço, cuja matéria-prima principal são postas demolhadas do fiel amigo. A título meramente exemplificativo, permitimo-nos salientar alguns pratos consignados pelo uso: Açorda de bacalhau, Bacalhau à Brás, Bacalhau à espanhola, Bacalhau à Gomes de Sá, Bacalhau à lagareiro, Bacalhau à minhota, Bacalhau à Zé do Pipo, Bacalhau assado na brasa com batatas a murro, Bacalhau assado no forno, Bacalhau com broa, Bacalhau com natas, Bacalhau espiritual, Bacalhau na brasa, Empadão de bacalhau, Ensopado de bacalhau, Migas de bacalhau, Pastéis de bacalhau, Punheta de bacalhau, Pataniscas de bacalhau, Rissóis de bacalhau, Salada de bacalhau e Tiborna de bacalhau.
São pratos de lamber os beiços e chorar por mais. Todos têm um elo comum, o serem confeccionados com o “fiel amigo”. As razões desta designação assentam no facto de apesar de a costa portuguesa fornecer peixe, a maioria deste deteriorava-se rapidamente, só penetrando no interior espécies como a sardinha salgada, o polvo seco e no Sul, atum de barrica. Daí que entre nós, o bacalhau passasse a ser o peixe salgado e seco mais consumido. De resto, como “fiel amigo” que não apodrecia nas longas viagens marítimas, ele desempenhou um papel importante na alimentação dos homens de quinhentos, que com a força da raça desta nação lusitana, souberam dar Novos Mundos ao Mundo.
Decerto que também há razões históricas para o consumo do bacalhau. Ele está associado a ancestrais prescrições cristãs que impunham a abstinência do consumo de carne e de produtos de origem animal muitos dias do ano, com particular destaque para os 40 dias da Quaresma e para os 30 dias do Advento antes do Natal.
É sabido que somos sacerdotes da memória dos nossos ancestrais, o que nos tornou arqueólogos da oralidade da língua com a missão explícita de escavar os múltiplos géneros da nossa literatura popular. Daí que vos apresentemos aqui “pela rama” e “a talhe de foice”, alguns frutos dessas escavações.
Quanto a adagário, recolhemos dois provérbios:
- Dia de S. Silvestre (31 de Dezembro), não comas bacalhau que é peste.
- Bacalhau quer alho.
Vejamos agora o que nos diz o cancioneiro popular. António Thomaz Pires, de Elvas, no seu “Cancioneiro popular político” refere o bacalhau numa alusão ao Remechido, algarvio da guerrilha miguelista:

Isto é bem bom,
Está menos mau,
Tudo Remechido
Sabe a bacalhau.

Pires de Lima no “Cancioneiro de Vila Real” recolheu a seguinte quadra:

Ó Castedo, Ó Castedo
‘stás assente num calhau.
Mataram minha mulher
Com bolos de bacalhau.

Finalmente o “Cancioneiro da Serra d'Arga” cataloga esta quadra bastante brejeira:

A mulher para ser boa,
Tem que ter pernas de pau,
A barriga de manteiga,
As mamas de bacalhau.

O bacalhau é um termo muito usado na gíria popular. Vejamos então:
- Apertar o bacalhau a alguém = Cumprimentar uma pessoa com um aperto de mão
- Bacalhau = Açoite de correias com que no Brasil se castigavam os escravos negros
- Bacalhau = Mulher ordinária
- Bacalhau = Órgão sexual feminino
- Bacalhau = Pessoa muito magra
- Bacalhau basta = Qualquer coisa serve
- Bacalhau de porta de tenda = Pessoa demasiado magra
- Bacalhaus = Colarinhos largos e muito engomados, pendentes sobre o peito
- Bacalhaus = Orelhas grandes e separadas do crânio
- Bacalhauzada = Aperto de mão = Prato de bacalhau com batatas
- Bacalhoada = Grande porção de bacalhau
- Bacalhoada = Guisado de bacalhau
- Bacalhoada = Surra ou pancada com bacalhau
- Bacalhoeiro = Bisbilhoteiro = Falador
- Bacalhoeiro = Grosseiro
- Bacalhoeiro = O que vende bacalhau
- Bacalhoeiro = Que gosta muito de bacalhau
- Cadeiras de Bacalhau = Cadeiras de pinho
- Cheirar a bacalhau = Tresandar a suor por falta de higiene
- Comer bacalhau = Apanhar chicotadas de bacalhau
- Ficar em água de bacalhau = Ficar em nada; frustrar-se
- Magro como um bacalhau = Extremamente magro
- Meter o bacalhau em alguém = Espancar = Censurar
- Pesar bacalhau = Cabecear de sono
- Rabos de bacalhau = Abas da casaca
Em termos de alcunhas alentejanas há a registar as seguintes:
- BACALHAU – outorgada a quem gosta muito de comer bacalhau. É muito vulgar no Alentejo:
- BACALHAU SUECO – alcunha atribuída em Grândola a uma mulher que cheira mal.
A nível de antroponímia, “Bacalhau” é sobrenome ou nome de família que tem a ver com a ascendência do utilizador. Referindo-me só a personalidades recentes temos:
- A escritora Marisa Bacalhau, que ainda há pouco apresentou na Cozinha dos Ganhões, o seu livro “Gaturamo – Os Regimentos da Europa na Reconquista do Rio Grande do Sul”;
- Ana Bacalhau vocalista do grupo Deolinda.
Eu também conheci em Estremoz, nos anos 60, um ardina chamado Bacalhau, vendedor de jornais pela cidade. Curiosamente, o Bacalhau que gostava da pinga era um trinca-espinhas e trabalhava para um Sardinha que fazia dois dele.
No que concerne a toponímia, “Bacalhau” é também um nome muito usado. Vejamos algumas dessas utilizações:
- Avenida Prof. Dr. José Bacalhau (Espinhal);
- Bacalhau Novo, lugar da Freguesia de Benfica do Ribatejo, concelho de Almeirim;
- Bacalhau Velho, lugar da Freguesia de Benfica do Ribatejo, concelho de Almeirim;
- Jardim do Bacalhau (Beja);
- Poço do Bacalhau, lugar da Freguesia da Fajã Grande, Flores, Açores;
- Quinta do Bacalhau (Lisboa);
- Rua António Bacalhau (Alcácer do Sal);
No que respeita a anedotas, destacamos apenas esta:
Numa rua do Porto, um cego passa em frente a uma mercearia daquelas que têm por hábito pendurar peças de bacalhau à porta. Ao passar bate com a cabeça num bacalhau, o que a leva a dizer:
- Desculpe-me minha senhora!
Dá mais dois passos e exclama de seguida:
- Puxa! Carago! Esta mulher é mesmo alta!
No que toca a lengalengas respigámos várias, das quais aqui apresentamos duas:

ANA RITA, PIROLITA
Anarita, pirollita
Bacalhau, sardinha frita
Quantas patas tem o gato?
Um, dois, três, quatro

Ó MARIA COTOVIA
Ó Maria Cotovia,
Fecha a porta,
Já é dia,
Vem aí
O bicho mau
Que te papa
O bacalhau.
Tapa a tua
Chaminé
Com a ponta
Do teu pé.
Tapa também
A janela
Com a colcha
Amarela.
E assim
O bicho mau
Não te papa
O bacalhau.

Também o adivinhário regista a presença do bacalhau. Vejamos alguns exemplos:
- Porque é que a água do mar é salgada? (RESPOSTA: Porque tem bacalhau de molho).
- Qual é a coisa, qual é ela
Compra-se cru,
Faz-se cozido
E vende-se cru. (RESPOSTA: Bacalhau).
- Qual a parte da mulher que cheira bacalhau? (RESPOSTA: O nariz).
PREPAREM-SE QUE ESTA É TERRÍVEL!
- Sabem quais são os três alimentos que fazem mal à saúde?
(RESPOSTA: O bacalhau, que tenrabo.
A couve que tentalo.
E o feijão verde que tenfio.)
Depois de tanta brejeirice é altura de falar mais a sério, mais em termos institucionais. Há dois tipos de associações centradas no bacalhau:
- A Confraria Gastronómica do Bacalhau, sediada na cidade de Ílhavo, a “Capital do Bacalhau”. Tem por objectivos: divulgar as ementas à base de bacalhau, dinamizar as várias maneiras de o confeccionar, bem como divulgar a história da epopeia da faina maior.
- As Academias do Bacalhau, espalhadas pelo mundo da Lusofonia, que reúnem pessoas que independentemente da sua etnia, posição social ou grau de cultura, se congregam sem finalidades políticas, religiosas, comerciais ou lucrativas, para fomentar, encorajar e desenvolver laços de amizade, cooperação, confraternização entre elas, bem como a defesa do prestígio e expansão da Portugalidade, o que passa pela difusão da cultura e valores tradicionais portugueses, assim como pela assistência moral e material aos mais carenciados.
Não queremos terminar sem deixar de apresentar dois apontamentos:
Um deles é para vos dar a conhecer uma receita conhecida por “Bacalhau à Salazar”. Trata-se de bacalhau cozido com batatas, temperado com vinagre, alho e pimenta. De acordo com o inspirador do prato, não leva azeite, pois se o bacalhau for gordo é um desperdício e se for magro, um desperdício é. Trata-se de um prato que não admite reclamações, pois de contrário, a coisa pode dar para o torto.
O outro apontamento é um apontamento de natureza estatutária. Eu quero aqui propor uma alteração aos Estatutos da Academia do Bacalhau de Estremoz. Proponho que o Presidente deixe de se chamar Presidente e se passe a chamar “Bacalhau-Mor”! Estão de acordo? Sim? Está aprovado.
Para a Academia do Bacalhau de Estremoz e para o meu amigo Chico Ramos que teve a coragem de aqui me trazer, sem saber bem onde isto podia ir parar, peço uma calorosa salva de palmas.

Publicado inicialmente em 3 de Dezembro de 2012

domingo, 9 de novembro de 2025

Os pisadores, artefactos de arte pastoril

 

1. Pisador. Colecção Hernâni Matos.


Um pisador é um utensílio em madeira usado em culinária com recurso a gral ou não e que permite triturar, moer e misturar substâncias sólidas. É recorrendo a um pisador que se prepara o piso utilizado na confecção da açorda alentejana, usando sal grosso, alho, coentros ou poejos.

Os pisadores, artisticamente trabalhados à navalha numa peça única, esculpidos e/ou com incisões superficiais na madeira (Fig. 1 a Fig. 6), constituem graciosos exemplares de arte pastoril.

 Hernâni Matos


2. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

3. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

4. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

5. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

6. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O prazer da gastronomia alentejana


Cozinha dos ganhões. Irmãs Flores. Fotografia de José Cartaxo.

COZINHA DOS GANHÕES
Há muito que foi sobejamente demonstrado que o Alentejo é uma região com uma identidade cultural própria. Assim o atesta a sua paisagem singular, o carácter do seu povo, o trajo popular, a arte popular, o cancioneiro popular, o cante, a casa tradicional e é claro a gastronomia, que anualmente está em grande destaque em Estremoz, na Cozinha dos Ganhões, que em Novembro de 2010 vai ter a sua XVIII edição.
Na Cozinha dos Ganhões é possível partilhar com os outros, o prazer da gastronomia alentejana.
GASTRONOMIA ALENTEJANA
É sabido que o Alentejo é a região do borrego e do porco e estes são recursos com elevada cotação na bolsa de valores gastronómicos. Daí que na Cozinha dos Ganhões, o borrego e o porco imperem como reis e senhores. Ensopado de borrego, cozido de borrego com grão, borrego assado no forno, segredos de porco, lombo de porco assado, migas com carne de porco e carne de porco à alentejana são pratos definidores da nossa identidade cultural, como o são a açorda, o gaspacho, a sopa de cação, a sopa de beldroegas ou a nossa doçaria conventual.
A gastronomia alentejana é património culinário legado pelos nossos ancestrais: pré-históricos, fenícios, celtas, romanos, visigodos, mouros e ganhões. É património para mastigar, para saborear e para lamber os beiços, a comer e a chorar por mais, pois barriga vazia não conhece alegrias... Por isso, apetece gritar bem alto: - Viva o património mastigável! - Viva!
A gastronomia alentejana envolve as matérias-primas usadas na preparação dos pratos de culinária alentejana, a culinária alentejana propriamente dita e os vinhos alentejanos.
No que respeita às matérias-primas usadas na preparação dos pratos de culinária alentejana, podem-se classificar em cinco tipos:
1 – Vegetais [1]: batatas, túberas, cogumelos, alabaças (labaças ou catacuzes), arrabaças, cardinhos (tengarrinhas) acelgas (celgas), saramagos, cunetas, pimpalhos, beldroegas, espinafres, nabiças, espargos, couve, repolho, tomate, abóbora, mogango, pepino, pimento, feijão, feijão-frade, grão, favas, ervilhas e azeitonas.
2 – Carne e ovos - carne, bofe, fígado, gordura, coração e pés de porco, chispe, entrecosto, chouriço, farinheira, morcela, toucinho, mioleira, carne de borrego, caça e ovos.
3 – Pescado - bacalhau, cação e pexelim.
4 – Temperos [2] - sal, massa de pimento, alho, cebola, azeite, vinagre, poejo, coentros, salsa, hortelã, salva, manjerona, orégãos, murta, tomilho, hortelã da ribeira, louro, colorau, cominhos, cravinho e pimenta.
5 - Pão – O alentejano é pãozeiro, gosta de comer tudo com pão. Come-se pão quando se tira uma bucha com queijo ou chouriço, para enganar a fome a meio da manhã ou a meio da tarde. O pão é de resto acompanhamento obrigatório de qualquer refeição e matéria-prima essencial à confecção de alguns pratos da nossa gastronomia (migas com carne de porco, açorda, sopa de cação, sopa da panela, etc.). E o melhor pão alentejano é naturalmente o do tipo conhecido por pão caseiro, como aquele que antigamente era cozido nos fornos dos montes, alimentados por labaredas de esteva.
No que concerne à culinária alentejana, o fogo permite criar sabores, por detrás dos quais estão sábias operações de alquimia doméstica como o cozer, o grelhar, o assar, o alourar, o refogar, o fritar e o gratinar. Através delas se busca atingir o sabor criado pelo fogo e nelas, mais que magia iniciática de pedra filosofal demandada, o sabor encontrado constitui um prazer simultaneamente onírico e telúrico.
No que se refere aos vinhos alentejanos, estes fazem parte integrante da gastronomia, para acompanhar aquilo que se come. A paisagem e o solo alentejano e em particular, os de Estremoz, são dádivas que a natureza se encarregou de conceder em termos de condições perfeitas para a plantação e exploração da vinha. Os solos são argilosos, argilo-calcários ou de origem xistosa.
Os vinhos tintos, em maioria, nascem de castas nacionais como Aragonês, Trincadeira Preta, Castelão, Tinta Caiada, Touriga Nacional e Alicante, mas são ainda utilizadas castas internacionais como Syrah, Cabernet Sauvignon, Alicante Bouschet, Petit Verdot e Merlot.
Os vinhos brancos, em minoria, nascem de castas como: Antão Vaz, Arinto, Roupeiro e Rabo de Ovelha.
A vindima é manual, com rigorosa selecção de cachos, de modo a originar vinhos de excepção. A pisa é feita a pé, em lagares. A fermentação realiza-se em cubas inox, seguida de transfega para pipas de carvalho francês, onde os melhores lotes vão estagiar.
As adegas alentejanas utilizam tecnologia moderna baseada em métodos tradicionais antigos. São várias gerações de sabedoria, ao serviço da arte da vinicultura, produzindo vinhos de alta qualidade.
A variedade de vinhos alentejanos torna o seu consumo adequado a quase todos os tipos de pratos da nossa gastronomia, fazendo ponte com eles, constituindo como que uma espécie de binómio prato-vinho. 
[1] - “…os alentejanos, motivados pelas fomes periódicas, foram obrigados a aprender a comer a ervas que os campos lhes oferecem. Poejos, alabaças, espargos, beldroegas, arrabaças, acelgas, saramagos, cardinhos, orégãos, etc” – ALVES, Aníbal Falcato – Os Comeres dos Ganhões. Porto: Campo das Letras, 1994.
[2] - Para “…compensar a magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas.” – Helder Pacheco in prefácio a ALVES, Aníbal Falcato – Os Comeres dos Ganhões. Porto: Campo das Letras, 1994.

Publicado inicialmente em 7 de Setembro de 2010

Pastor debaixo da árvore. Irmãs Flores. Fotografia de José Cartaxo.

Coqueira. Irmãs Flores. Fotografia de José Cartaxo.

Mulher a cozinhar. Irmãs Flores. Fotografia de José Cartaxo.

domingo, 22 de outubro de 2023

Adagiário das castanhas

 

MULHER DAS CASTANHAS (1938) - Ana das Peles (1869-1945).
Ex-colecção Azinhal Abelho. Colecção Hernâni Matos.


À Catarina, minha filha,
que nesta época anda envolvida
na apanha da castanha na sua quinta.

Anualmente entre Junho e Julho, os castanheiros ficam floridos e a estas flores sucedem-se os ouriços, que encerram as castanhas, as quais começam a cair no início do Outono, em Setembro e Outubro.
É vasto o adagiário das castanhas:

- A castanha amarela em Agosto tem a tinta no rosto.
- A castanha é de quem a come e não de quem a apanha.
- A castanha e o besugo em Fevereiro não têm sumo.
- A castanha em Agosto a arder e em Setembro a beber.
- A castanha tem três capas de Inverno: a primeira mete medo, a segunda é lustrosa e a terceira é amarga.
- A castanha tem uma manha: vai com quem a apanha.
- A castanha veste três camisas: uma de tormentos, outra de estopa e outra de linho.
- A noz e a castanha é de quem a apanha.
- Ao assar as castanhas, as que estouram são as mentiras dos presentes.
- Arreganha-te, castanha, que amanhã é o teu dia.
- As castanhas apanham-se quando caem.
- As castanhas para o caniço e o boneco para o porco.
- As folhas de castanheiro andam sete anos na terra e depois ainda voam.
- Carregadinho de castanha, vai o burrinho para Idanha.
- Castanha assada, pouco vale ou nada, a não ser untada.
- Castanha bichosa, castanha amargosa.
- Castanha peluda, castanha reboluda.
- Castanha perdida, castanha nascida.
- Castanha que está no caminho é do vizinho.
- Castanha quente só com aguardente, comida com água fria causa “azedia”.
- Castanha semeada, p´ra nascer, arrebenta.
- Castanhas boas e vinho fazem as delícias do S. Martinho.
- Castanhas caídas, velhas ao souto.
- Castanhas do Marão, a escolher se vão.
- Castanhas do Natal sabem bem e partem-se mal.
- Castanheiro para a tua casa, corta-o em Janeiro.
- Com castanhas assadas e sardinhas salgadas não há ruim vinho.
- Crescem os reboleiros, morrem os castanheiros.
- Cruas, assadas, cozidas ou engroladas, com todas as manhãs, bem boas são as castanhas.
- Dá-me castanhas, dar-te-ei banhas.
- De bom castanheiro, boa acha.
- De bom castanheiro, bom madeiro.
- De castanha em castanha (roubando) se faz a má manha.
- De castanheiro caído todos fazem lenha.
- Desde que a castanha estoira, leve o diabo o que ela tem dentro.
- Do castanho ao cerejo, mal me vejo.
- Em ano de muito ouriço não faças caniço.
- Em minguante de Janeiro, corta o teu castanheiro.
- Em Setembro, antes de chover, o souto o arado quer ver.
- Folha amarela do castanheiro cai ao chão.
- Mais vale castanheiro, que saco de dinheiro.
- No dia de S. Martinho, come-se castanhas e bebe-se vinho.
- No dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
- No dia de S. Martinho, mata o teu porco, chega-te ao lume, assa castanhas e prova o teu vinho.
- No dia de São Julião, quem não assar um magusto não é cristão.
- O castanheiro, para plantar, precisa ir na mão, o carvalho às costas e o sobreiro no carro.
- O céu é de quem o ganha e a castanha de quem a apanha.
- O ouriço abriu, a castanha caiu.
- Oliveira do meu avô, castanheiro do meu pai e vinha minha.
- Os ouriços no São João são do tamanho de um botão.
- Pelo S. Martinho castanhas assadas, pão e vinho.
- Pelo São Francisco, castanhas como cisco.
- Quando gear, o ouriço vai buscar.
- Quando o sol aperta, o ouriço arreganha.
- Quem castanhas come, madeira consome.
- Quem não sabe manhas, não come castanhas.
- Raiz de castanheiro, dá bom braseiro.
- Sete castanhas são um palmo de pão.
- Temporã é a castanha, que em Agosto arreganha.

BIBLIOGRAFIA
- BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. I a X. Officina de Pascoal da Sylva. Coimbra, 1712-1728.
- CHAVES, Pedro. Rifoneiro Português. Imprensa Moderna, Lda. Porto, 1928.
- DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Evora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
- MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
- ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.

Publicado inicialmente em 22 de Outubro de 2023

MULHER DAS CASTANHAS (1906) – Ilustração de Raquel Roque
Gameiro para capa da revista “Serões”, de Novembro de 1906.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Aníbal e a preservação da (tua) memória



Reportagem de NOEL MOREIRA, 
publicada no jornal E, nº 316, de 7 de Julho de 2023,
de onde foi transcrita com a devida vénia

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No passado Domingo, 02 de Julho de 2023, decorreu no Auditório da Biblioteca Municipal de Estremoz a Sessão Evocativa a Aníbal Falcato Alves, promovida e dinamizada pela Comissão Concelhia de Estremoz do Partido Comunista Português. O anfiteatro foi pequeno para todos os que quiseram partilhar as suas histórias e vivências com o Aníbal, para os que simplesmente quiseram saber mais sobre este estremocense ou simplesmente prestar-lhe uma homenagem.
A sessão abriu com um momento cultural intitulado “Palavras de Abril”, a cargo do Grupo Cénico da Sociedade Operária de Instrução e Recreio “Joaquim António de Aguiar”, seguindo-se as intervenções dos convidados: José Emídio Guerreiro (sociólogo e ex-Presidente da Câmara Municipal de Estremoz) e de Abílio Fernandes (economista, militante do PCP, antigo deputado da Assembleia da República e ex-Presidente da Câmara Municipal de Évora), com quem o Aníbal partilhou momentos e histórias. Passou-se posteriormente a palavra aos que assistiram à sessão: todos os presentes poderiam intervir, partilhando as suas experiências, histórias ou aprendizagens com Aníbal Falcato Alves, através de curtas intervenções.
Como fiz questão de afirmar publicamente na sessão evocativa, nunca tive o privilégio de me cruzar com o Aníbal, visto que aquando da minha chegada a Estremoz, em 2009, o Aníbal já tinha falecido há mais de uma década. Apesar de quase três décadas decorridas, escutei nesta sessão histórias sobre ele, daquilo que tinha sido a sua intervenção social e política (até estudos sobre o eucaliptal e gestão de água na Serra d’Ossa realizou), do seu trabalho na preservação da memória do povo alentejano, da sua obra e da sua luta contra o regime fascista e a sua importância no pós-25 de Abril na região. Aquando da decisão da Comissão Concelhia em promover esta sessão evocativa, comecei a conhecer mais sobre a vida e obra deste ilustre estremocense, a sua história (e as suas histórias), as suas lutas, a sua intervenção e no fim de tudo isto fiquei a admirar profundamente o Aníbal Falcato Alves.


E quem foi o Aníbal? Qualquer coisa que possa escrever sobre ele nas páginas deste jornal soar-me-á sempre a pouco, face a tudo o que fui conhecendo, lendo e escutando, mas também face à emoção que cada um colocava na voz quando falava dele, face àquilo que ele fez por Estremoz e pelo Alentejo, pelo esforço para o acesso inclusivo à cultura, pela luta da liberdade enquanto muitos se refugiavam nas suas casas, no conforto podre do silêncio imposto pela ditadura fascista. Mas não posso deixar de tentar fazer aqui uma pequena resenha do que foi o Aníbal, socorrendo-me do conjunto de testemunhos daqueles que com ele conviveram de perto e daquilo que li… Arrisco fazê-lo, mesmo sobre pena de não conseguir atingir a sua dimensão enquanto homem, estremocense, alentejano, comunista, resistente antifascista, homem da cultura, mas não posso deixar de o fazer sobre pena de deixar passar em branco este momento, esta sessão solene.
Nascido em Estremoz, em 1921, Aníbal Falcato Alves foi mais do que um intelectual da cultura, mais do que professor, mais do que um resistente antifascista, mais do que um promotor do Alentejo, da sua cultura, gastronomia, património oral e das suas raízes, mais do que um amante de cinema, da literatura e da arte, mais do que um comunista. Aníbal Falcato Alves foi tudo isto numa única pessoa.
Bem cedo, com apenas 10 anos, Aníbal Falcato Alves começou a trabalhar como caixeiro, num pequeno estabelecimento da sua família. Começou por trabalhar sem qualquer salário e citando quem o conheceu, usando o seu humor refinado, dizia que “todos os anos o patrão lhe aumentava o salário para o dobro”. Acabou mais tarde por abrir o seu próprio negócio – uma Livraria e Papelaria na rua 5 de Outubro, onde não vendia apenas livros; o Aníbal permitia a consulta e leitura dos livros aos mais novos e aos que tinham menos posses, mas também clandestinamente transacionava livros proibidos pela censura fascista da ditadura de Salazar, semeando a inquietação, a resistência à ditadura, a liberdade, no fundo os ventos que mais tarde acabariam por dar origem à afirmação da Revolução dos Cravos. Citando Hernâni Matos, a Livraria do Aníbal era muito “mais que simples loja era um espaço de convívio e de resistência”.


Mas a sua apetência para as artes manuais acompanhava-o. Tirou o curso de canteiro artístico e durante vinte anos (1971 - 1991) foi professor de trabalhos manuais. Aqui influenciou várias gerações de estremocenses, desde os alunos aos colegas, desde os mais pequenos aos graúdos. E claro, Aníbal utilizou a sua apetência para as artes como ferramenta para primeiro combater o fascismo e depois semear os ventos de liberdade vindos com o 25 de Abril de 1974. O Aníbal foi artista plástico, ceramista, pintor, o que o levou a expor em mais de 30 exposições individuais e coletivas por todo o país. Mas o seu legado vai muito para além das obras da sua autoria. É talvez na recolha, preservação e salvaguarda dos hábitos, dos costumes, tradições e do património do Alentejo e das suas gentes, seja ele gastronómico, material (caso dos bonecos de Santo Aleixo ou do artesanato) ou imaterial, que a obra do Aníbal ganha destaque e se eterniza na espuma dos dias que hoje correm. Introduzo aqui a obra escrita do Aníbal, que se focou na preservação deste património oral e das tradições do Alentejo, tendo sido autor de duas obras principais: (1) “Comeres dos Ganhões” (nas suas múltiplas edições desde 1985), onde se inclui a recolha das receitas dos ganhões, hoje incluída na “gastronomia típica alentejana”, e um conjunto de relatos sobre a natureza e origem dessa gastronomia (não, não é um mero livro de receitas como alguns querem fazer crer); (2) “Rezas e Benzeduras” (publicado em 1998), uma coletânea de orações, ensalmos e benzeduras, muitas delas resultantes dos trabalhos de recolha com o etnólogo Michel Giacometti; no fundo a transcrição para papel da cultura popular alentejana. Em nenhuma das obras o Aníbal descurou do enquadramento sociopolítico dos quais resulta este património, atitude politicamente ativa que de alguma forma lhe corria no sangue.


É esta pro-atividade, obviamente acompanhada da sua visão plural e igualitária do mundo, com forte intervenção social, que o fez ser também um cidadão diferenciado, tendo sido um dos promotores do certame gastronómico anual “Cozinha dos Ganhões”, que hoje tanto orgulha Estremoz e os estremocenses, apesar de hoje já pouco restar da sua essência primordial – a vivência e memória gastronómica dos ganhões alentejanos. Foi também fundador do Cine Clube de Estremoz, então um dos mais importantes do país, tendo tido ainda um papel fundamental na constituição dos cineclubes de Elvas e Portalegre, e foi membro fundador do Círculo Cultural de Estremoz.
Falar de Aníbal Falcato Alves e não falar da sua intervenção política é quase que um desrespeito pela sua memória. Como já mencionado atrás, foi pela cultura que Aníbal combateu o fascismo, quer pela transação de livros considerados ilegais pelo regime fascista, quer pela sua obra, quer pela sua intervenção no Cine Clube de Estremoz. O Aníbal teve uma destacada participação na luta clandestina contra o regime, tendo-se tornado militante do Partido Comunista Português em pleno período da ditadura fascista. Para além disso integrou e participou ativamente nas campanhas do General Norton de Matos e Humberto Delgado, opositores ao regime fascista de Salazar. Apesar de tudo isto, a teia do fascismo, nomeadamente a polícia política do regime (PIDE), nunca o conseguiu demover nem prender, apesar das numerosas tentativas, denúncias e queixas apresentadas, como comprovam os documentos da PIDE presentes na Torre do Tombo. Depois do 25 de Abril teve também um papel destacado na organização dos trabalhadores rurais durante a reforma agrária, o que lhe permitiu também um profundo conhecimento do mundo rural, o que teve uma influência clara em toda a sua obra escrita. A transversalidade do Aníbal resulta de um profundo conhecimento do mundo real, das dificuldades sentidas e das vivências das gentes. Na sua vasta e ativa vida conviveu de perto com trabalhadores das pedreiras, agricultores ou artistas plásticos, analfabetos e professores, artistas de renome e ilustres desconhecidos…É portanto fácil aceitar a sua transversalidade perante as mais diversas camadas da sociedade civil quando também foi transversal na ação de consciencialização da população, lutando contra a alienação das massas, lutando pela liberdade, lutando por uma vida melhor e mais igualitária para todos.
Aníbal Falcato Alves faleceu em Junho de 1994, tendo deixado Estremoz e o Alentejo mais pobres.
A sessão evocativa decorrida no passado domingo mostrou de forma cabal a transversalidade e unanimidade da figura do Aníbal, com largas dezenas de pessoas de Estremoz, do Alentejo, do país a deslocar-se ao Auditório da Biblioteca Municipal de Estremoz para estarem presentes nesta sessão evocativa, apesar do calor tórrido que se fazia sentir nesse dia. Uma coisa é certa, a memória do Aníbal e do seu legado estão bem vivos na cabeça de todos aqueles que com ele conviveram, e a sua ação e obra vai muito para além daquilo que produziu fisicamente; ele mudou consciências, ele influenciou vivências, ele trabalhou para uma sociedade melhor e mais justa!
Pela preservação da memória do Aníbal e do seu legado é portanto fundamental que a ação não morra dentro das paredes da sala daquele auditório. Foi neste sentido que os eleitos da CDU apresentaram na sessão ordinária da Assembleia Municipal de Estremoz do passado dia 29 de Junho de 2023 a moção intitulada “Aníbal Falcato Alves: uma vida e obra dedicada à cultura Alentejana e à luta pela liberdade”, a qual foi aprovada por unanimidade dos presentes, e na qual se solicita ao Executivo Municipal que: (1) reedite e promova da obra “Os Comeres dos Ganhões: memória de outros sabores”; (2) promova uma exposição da obra plástica de Aníbal Falcato Alves, podendo a mesma ser incluída nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril no concelho.
Também da sessão evocativa saiu a proposta da edição de uma obra onde se compile as mais diversas memórias e relatos das pessoas que conviveram de perto com o Aníbal Falcato Alves, de forma a deixar vivo o seu legado e a memória coletiva da sua ação enquanto professor, Homem, intelectual da cultura, resistente antifascista e comunista.
Se uma das grandes obras do Aníbal foi a preservação da memória do Alentejo, a nossa tarefa hoje é preservar a memória do Aníbal!

Noel Moreira
Publicado a 6 de julho de 2023
Publicado no jornal E, nº 316, de 7 de Julho de 2023



Hernâni Matos

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Hoje há perdiz


Prato covo, de grandes dimensões (40 x 28 x 10 cm), de aba larga, ligeiramente
côncava.  Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia
verde-amarelo-- ocre castanho, sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador
desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.
 
Ao meu amigo António Carmelo Aires,
afamado caçador, reputado gastrónomo
e ilustre investigador da cerâmica de Redondo.

Entradas
A afirmação que escolhi como título do presente escrito tem um triplo alcance.
Por um lado, o prato que foi objecto da minha atenção e estudo, ostenta no fundo uma perdiz como elemento decorativo principal.
Em segundo lugar, porque da visualização do mesmo ressalta a existência de marcas de uso que a lavagem não conseguiu remover. São elas as falhas de vidrado e a patine conferida pela gordura nela entranhada. Já no tardoz, a patine assume a forma de uma camada negra entranhada no fundo do prato, configurando partículas de carvão, fixadas por gordura e que indiciam que o prato, de considerável covo, tenha sido usado na confecção de assados em forno de lenha. E, dada a decoração do prato, não me repugna nada admitir que possa ter sido usado para fazer assados de perdiz e tenha sido sempre esse o seu uso. Quem sabe até, se em casa de algum caçador.
Em terceiro lugar, porque entendi fazer uma abordagem etnográfica do tema “perdiz”, centrada na sua gastronomia e em múltiplos aspectos da sua tradição oral.

O prato
Prato covo, de grandes dimensões (40 x 28 x 10 cm), de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.
A aba encontra-se enfeitada com sucessivos pedúnculos num total de onze, com geometria sinusoidal achatada, ladeados de folhas verdes e que culminam em botões a ocre castanho (decoração olho-de-boi), orientados no sentido anti-horário.
O fundo está decorado com uma perdiz a olhar para a esquerda, pousada num ramo do qual saem dois pedúnculos com folhas e flores, que a ladeiam.

Gastronomia
A carne de perdiz tem muito baixo teor de gordura.
 É uma carne muito muito saborosa, macia e dietética que pode ser cozinhada fervida, estufada, frita, assada e recheada. A composição da carne de perdiz e as suas propriedades tornam-na uma carne de uso aconselhado em culinária. O conteúdo calórico é mínimo, pelo que a tornam indicada para pessoas que sofrem de obesidade. A composição inclui enzimas que aceleram o metabolismo e removem o colesterol. Regula o nível de hemoglobina no sangue, relaxa e fortalece o sistema nervoso, melhora a memória e aumenta a concentração e ajuda a tratar doenças respiratórias. É afrodisíaca. Normaliza o trato digestivo em caso de envenenamento, obstipação e diarreia. Regula os níveis de biotina, a qual regula o metabolismo do açúcar e trava a progressão da diabetes.
Existe um número considerável de pratos em cuja confecção entra a perdiz. Destaco alguns dos mais conhecidos e afamados: açorda de perdiz, arroz de perdiz à Fialho de Almeida, canja de perdiz, cataplana de perdiz e cogumelos silvestres, confit de perdiz, perdiz à algarvia, perdiz à castelhana (receita de Bulhão Pato), perdiz à Convento da Cartuxa, perdiz à Convento de Alcântara, perdiz à Montemor, perdiz assada, perdiz com couve, perdiz com repolho, perdiz de escabeche, perdiz estufada, perdiz fria à moda de Coimbra, perdiz frita à caçador, perdiz na cerveja, raviolli de perdiz, sopa de castanhas e perdiz, tigelada de perdiz.

Adagiário
O adagiário da perdiz incide sobre a gastronomia da ave e sobre o desenvolvimento e caça da mesma, incidindo então sobre quase todos os meses do ano:
- A perdiz e o frade, de manhã ou à tarde.
- A perdiz é perdida, se quente não é comida.
- A perdiz, com a mão no nariz.
- Antes pardal na mão que perdiz a voar.
- Caça à perdiz com o vento pelo nariz e às narcejas pelas costas o vejas.
- Das aves, boa é a perdiz, mas melhor a codorniz.
- Do peixe a pescada, da ave a perdiz, da carne a vitela.
- Do peixe a pescada, da carne a perdiz.

- Em Abril, cheio está o covil.[1]
- Em Agosto espingardas ao rosto [2]
- Em Fevereiro, recocaneiro. [3]
- Em Janeiro acasala com o seu parceiro. [4]
- Em Janeiro, nem galgo lebreiro, nem açor perdigueiro.
- Em Maio chocai-o. [5]
- Em Março, três ou quatro. [6]
- Enquanto não é tempo de muda, caçai comigo aos perdigotos.
- Fevereiro couveiro faz a perdiz ao poleiro.
- Maio, Maio, pio pio pelo mato.
- Não há carne perdida, senão lebre assada e perdiz cozida.
- O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz.
- Perdigão Gordo, pássara magra.
- Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha.
- Perdiz açorada, meia assada.
- Perdiz derreada, perdigotos guarda.
- Quando a perdiz canta, bom prado tem.
- Quem a truta come assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- Quem aos trinta anos come lebre assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- São João, leva-os ao pão.
[7]
- São Tiago(ua) leva-os à água. [8]
Actualmente a caça à perdiz só está autorizada no início de Outubro, mas antigamente começava a 15 de Agosto. Os caçadores tinham então memorizada uma sequência de adágios sobre perdizes, relativos a cada mês do ano e através dela sabiam reconhecer a fase da evolução das perdizes desde o acasalamento até à abertura da caça. Uma tal sequência, à laia de lengalenga podia ser esta: “Em Janeiro acasala com o seu parceiro; Em Fevereiro, recocaneiro; Em Março, três ou quatro; Em Abril, cheio está o covil; Em Maio chocai-o; São João, leva-os ao pão; São Tiago(ua) leva-os à água; “Em Agosto espingardas ao rosto”. Todavia a sequência podia ter composição diferente.

Cancioneiro
É diminuto o cancioneiro popular da perdiz. Todavia entendi dele seleccionar a quadra “Debaixo da trovisqueira / Saiu a perdiz cantando; / Deixemos falar quem fala, / É mundo, vamos andando.” (5), seguida desta outra “A perdiz anda no monte, / Come da erva que quer; / É como o moço solteiro / Enquanto não tem mulher.” (9) e ainda de outra “A perdiz canta no bosque, / Na charneca o lavrador. / Eu só canto quando vejo / Os olhos do meu amor.” (10)

Lengalengas
Localizei apenas 3 lengalengas onde intervém a perdiz e delas destaquei a seguinte: “Serapico, pico, pico / Quem te fez tamanho bico? / Foi a velha do capuz / Que anda lá com uma luz / À procura da perdiz / Para a filha do juíz / Que está presa pelo nariz!”

Adivinhas
A consulta de diversos livros de adivinhas, apenas me permitiu identificar uma em cuja formulação entra a perdiz como personagem: “Um atirador disparou sobre três perdizes e matou uma. Quantas ficaram?” A resposta, para alguns algo imprevista e da qual está ausente o cálculo mental é “Não ficou nenhuma, que as outras fugiram”.

Alcunhas alentejanas
É reduzido o número de alcunhas alentejanas em que intervém a perdiz: PERDIZ (alcunha outorgada a indivíduo que caça muitas perdizes (Avis e Estremoz), PERDIZ CHUMBADA (denominação atribuída a indivíduo que em criança apanhou uma perdiz à mão, mas ela já estava chumbada (Alter do Chão)), PERDIZEIRO (o visado consegue caçar muitas perdizes).

Toponímia
Também é escasso o número de presenças da perdiz na toponímia portuguesa. Apenas localizei os seguintes topónimos: BECO DAS PERDIZES (arruamento de Albufeira), CAMINHO DAS PERDIZES (arruamento em Arruda dos Vinhos), FONTE DAS PERDIZES (fonte de água potável no concelho de Ourém), FONTE DAS PERDIZES (lugar do concelho de Grândola), MONTE DAS PERDIZES (lugar da zona norte do Parque Florestal de Monsanto), MONTE DAS PERDIZES (quinta agrícola do sítio do Quatrim - Quelfes, Olhão, com alojamento turístico), PARQUE DAS PERDIZES (parque de Paço de Arcos), QUINTA DO VALE DA PERDIZ (lugar nas proximidades de Torre de Moncorvo), RUA DA PERDIZ (arruamento de Ponte de Lima), VILAR DE PERDIZES (freguesia do concelho de Montalegre, celebre pela realização dos Congressos de Medicina Popular, impulsionados pelo padre Fontes desde 1983 e que ali atraem bruxos, cartomantes, curandeiros e videntes).

Gíria popular
É parca a gíria popular sobre a perdiz. Todavia foi-me possível identificar alguns termos: OLHO DE PERDIZ (calosidade redonda e pequena entre os dedos dos pés), OLHO DE PERDIZ (padrão de tecido de lã), OLHO DE PERDIZ (qualidade de madeira utilizada em mobiliário), OLHO DE PERDIZ (variedade de batata de polpa e pele amarelas, com manchas vermelhas), OLHO DE PERDIZ (variedade de figo arredondado e adocicado, de tamanho médio e coloração arroxeada), PÉ DE PERDIZ (arbusto medicinal cuja raiz tem acção anti-inflamatória, cicatrizante, anticancerígena, antimicótica, antibacteriana e antiviral, sendo utilizada no combate de inúmeras doenças), PÉ DE PERDIZ (casta de videira de uva branca), PÉ DE PERDIZ (variedade de pera), PERDIZ (peça teatral que deu prejuízo), PERDIZ (receita que não cobre a despesa), PERDIZ DE ALQUEIVE (sapo), PERDIZADA (bando de perdizes), SALTO DE PERDIZ (salto de sapato alto, vermelho, muito usado pelas elegantes no séc. XVIII).

Desenlace
Coleccionar não é só juntar exemplares daquilo que se decidiu coleccionar. Pelo contrário, exige uma observação minuciosa e atenta, bem como um estudo profundo desses exemplares, independentemente da sua origem, natureza, composição, tipologia e função. Foi o que se passou com o prato de Redondo que foi objecto do presente escrito. Encontrei-o disponível no mercado de antiguidades e entre nós estabeleceram-se, de imediato, fortes laços de empatia, já que o prato começou a falar comigo. Na sequência da sua aquisição e porque sou um contador de estórias, tinha que falar do prato, relatando as estórias que ele tinha para me contar. Foi o que procurei fazer com espírito de missão, missão que não terminou aqui e que será prosseguida inescapavelmente com o surgimento do próximo objecto olárico, igualmente capaz de estabelecer comigo um relacionamento empático.

BIBLIOGRAFIA
(1) - AMIGOS DE CAPELINS. A perdiz [Em linha]. Disponível em: https://amigosdecapelins.blogspot.com/2020/11/662-fauna-das-terras-de-capelins-perdiz.html [Consultado em 22 de Setembro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - COMIDA SAUDÁVEL PERTO DE MIM. Perdiz [Em linha]. Disponível em: https://pt.healthy-food-near-me.com/partridge-description-of-meat-benefits-and-harm-to-human-health/ [Consultado em 18 de Setembro de 2022].
(4) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(5) - COUTINHO, Artur. Cancioneiro da Serra de Arga. Edição do autor. Viana do castelo, 1980.
(6) – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(7) - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas. 6ª edição. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1988.
(8) - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
(9) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Português. 2ª ed. A. Rodrigues & CV. Editores. Lisboa, 191.
(10) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. II. Typographia Progesso. Elvas, 1905.
(11) - VÁRIOS. Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 21. Lisboa, Rio de Janeiro, s/d.

 


[1] Significa que durante o mês de Abril a perdiz continuava a pôr ovos, que podiam atingir a dezena e meia e enchiam o ninho.
[2] Expressa que em Agosto, os perdigotos já estavam bem-criados, pelo que podiam ser caçados.
[3] Revela que em Fevereiro, o casal perdiz-perdigão recocava, isto é, manifestava um cantar manso e terno.
[4] Indica que é em Janeiro que uma perdiz acasalava com um perdigão, ficando juntos até à criação dos perdigotos.
[5] Diz-nos que no mês de Maio, as perdizes chocavam os ovos e nasciam os perdigotos.
[6] Significa que em Março, a perdiz começara a pôr ovos e o ninho já devia ter 3 ou 4.
[7] São João comemora-se a 24 de Junho, mês das colheitas por os cereais estarem maduros, alimentando as perdizes e os perdigotos. Este o sentido do adágio.
[8] São Tiago comemora-se a 25 de Julho, mês em que os perdigotos já estavam crescidos e voavam por cima de cursos de água, onde iam beber. Tal o sentido do adágio.