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A afirmação que escolhi como título do presente escrito tem um triplo alcance.
Por um lado, o prato que foi objecto da minha atenção e estudo, ostenta no fundo uma perdiz como elemento decorativo principal.
Em segundo lugar, porque da visualização do mesmo ressalta a existência de marcas de uso que a lavagem não conseguiu remover. São elas as falhas de vidrado e a patine conferida pela gordura nela entranhada. Já no tardoz, a patine assume a forma de uma camada negra entranhada no fundo do prato, configurando partículas de carvão, fixadas por gordura e que indiciam que o prato, de considerável covo, tenha sido usado na confecção de assados em forno de lenha. E, dada a decoração do prato, não me repugna nada admitir que possa ter sido usado para fazer assados de perdiz e tenha sido sempre esse o seu uso. Quem sabe até, se em casa de algum caçador.
Em terceiro lugar, porque entendi fazer uma abordagem etnográfica do tema “perdiz”, centrada na sua gastronomia e em múltiplos aspectos da sua tradição oral.
O prato
Prato covo, de grandes dimensões (40 x 28 x 10 cm), de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.
A aba encontra-se enfeitada com sucessivos pedúnculos num total de onze, com geometria sinusoidal achatada, ladeados de folhas verdes e que culminam em botões a ocre castanho (decoração olho-de-boi), orientados no sentido anti-horário.
O fundo está decorado com uma perdiz a olhar para a esquerda, pousada num ramo do qual saem dois pedúnculos com folhas e flores, que a ladeiam.
Gastronomia
A carne de perdiz tem muito baixo teor de gordura. É uma carne muito muito saborosa, macia e dietética que pode ser cozinhada fervida, estufada, frita, assada e recheada. A composição da carne de perdiz e as suas propriedades tornam-na uma carne de uso aconselhado em culinária. O conteúdo calórico é mínimo, pelo que a tornam indicada para pessoas que sofrem de obesidade. A composição inclui enzimas que aceleram o metabolismo e removem o colesterol. Regula o nível de hemoglobina no sangue, relaxa e fortalece o sistema nervoso, melhora a memória e aumenta a concentração e ajuda a tratar doenças respiratórias. É afrodisíaca. Normaliza o trato digestivo em caso de envenenamento, obstipação e diarreia. Regula os níveis de biotina, a qual regula o metabolismo do açúcar e trava a progressão da diabetes.
Adagiário
O adagiário da perdiz incide sobre a gastronomia da ave e sobre o desenvolvimento e caça da mesma, incidindo então sobre quase todos os meses do ano:
- A perdiz e o frade, de manhã ou à tarde.
- A perdiz é perdida, se quente não é comida.
- A perdiz, com a mão no nariz.
- Antes pardal na mão que perdiz a voar.
- Caça à perdiz com o vento pelo nariz e às narcejas pelas costas o vejas.
- Das aves, boa é a perdiz, mas melhor a codorniz.
- Do peixe a pescada, da ave a perdiz, da carne a vitela.
- Do peixe a pescada, da carne a perdiz.
- Em Abril, cheio está o covil.[1]
- Em Agosto espingardas ao rosto [2]
- Em Fevereiro, recocaneiro. [3]
- Em Janeiro acasala com o seu parceiro. [4]
- Em Janeiro, nem galgo lebreiro, nem açor perdigueiro.
- Em Maio chocai-o. [5]
- Em Março, três ou quatro. [6]
- Enquanto não é tempo de muda, caçai comigo aos perdigotos.
- Fevereiro couveiro faz a perdiz ao poleiro.
- Maio, Maio, pio pio pelo mato.
- Não há carne perdida, senão lebre assada e perdiz cozida.
- O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz.
- Perdigão Gordo, pássara magra.
- Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha.
- Perdiz açorada, meia assada.
- Perdiz derreada, perdigotos guarda.
- Quando a perdiz canta, bom prado tem.
- Quem a truta come assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- Quem aos trinta anos come lebre assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- São João, leva-os ao pão. [7]
- São Tiago(ua) leva-os à água. [8]
Actualmente a caça à perdiz só está autorizada no início de Outubro, mas antigamente começava a 15 de Agosto. Os caçadores tinham então memorizada uma sequência de adágios sobre perdizes, relativos a cada mês do ano e através dela sabiam reconhecer a fase da evolução das perdizes desde o acasalamento até à abertura da caça. Uma tal sequência, à laia de lengalenga podia ser esta: “Em Janeiro acasala com o seu parceiro; Em Fevereiro, recocaneiro; Em Março, três ou quatro; Em Abril, cheio está o covil; Em Maio chocai-o; São João, leva-os ao pão; São Tiago(ua) leva-os à água; “Em Agosto espingardas ao rosto”. Todavia a sequência podia ter composição diferente.
Cancioneiro
É diminuto o cancioneiro popular da perdiz. Todavia entendi dele seleccionar a quadra “Debaixo da trovisqueira / Saiu a perdiz cantando; / Deixemos falar quem fala, / É mundo, vamos andando.” (5), seguida desta outra “A perdiz anda no monte, / Come da erva que quer; / É como o moço solteiro / Enquanto não tem mulher.” (9) e ainda de outra “A perdiz canta no bosque, / Na charneca o lavrador. / Eu só canto quando vejo / Os olhos do meu amor.” (10)
Lengalengas
Localizei apenas 3 lengalengas onde intervém a perdiz e delas destaquei a seguinte: “Serapico, pico, pico / Quem te fez tamanho bico? / Foi a velha do capuz / Que anda lá com uma luz / À procura da perdiz / Para a filha do juíz / Que está presa pelo nariz!”
Adivinhas
A consulta de diversos livros de adivinhas, apenas me permitiu identificar uma em cuja formulação entra a perdiz como personagem: “Um atirador disparou sobre três perdizes e matou uma. Quantas ficaram?” A resposta, para alguns algo imprevista e da qual está ausente o cálculo mental é “Não ficou nenhuma, que as outras fugiram”.
Alcunhas alentejanas
É reduzido o número de alcunhas alentejanas em que intervém a perdiz: PERDIZ (alcunha outorgada a indivíduo que caça muitas perdizes (Avis e Estremoz), PERDIZ CHUMBADA (denominação atribuída a indivíduo que em criança apanhou uma perdiz à mão, mas ela já estava chumbada (Alter do Chão)), PERDIZEIRO (o visado consegue caçar muitas perdizes).
Toponímia
Também é escasso o número de presenças da perdiz na toponímia portuguesa. Apenas localizei os seguintes topónimos: BECO DAS PERDIZES (arruamento de Albufeira), CAMINHO DAS PERDIZES (arruamento em Arruda dos Vinhos), FONTE DAS PERDIZES (fonte de água potável no concelho de Ourém), FONTE DAS PERDIZES (lugar do concelho de Grândola), MONTE DAS PERDIZES (lugar da zona norte do Parque Florestal de Monsanto), MONTE DAS PERDIZES (quinta agrícola do sítio do Quatrim - Quelfes, Olhão, com alojamento turístico), PARQUE DAS PERDIZES (parque de Paço de Arcos), QUINTA DO VALE DA PERDIZ (lugar nas proximidades de Torre de Moncorvo), RUA DA PERDIZ (arruamento de Ponte de Lima), VILAR DE PERDIZES (freguesia do concelho de Montalegre, celebre pela realização dos Congressos de Medicina Popular, impulsionados pelo padre Fontes desde 1983 e que ali atraem bruxos, cartomantes, curandeiros e videntes).
Gíria popular
É parca a gíria popular sobre a perdiz. Todavia foi-me possível identificar alguns termos: OLHO DE PERDIZ (calosidade redonda e pequena entre os dedos dos pés), OLHO DE PERDIZ (padrão de tecido de lã), OLHO DE PERDIZ (qualidade de madeira utilizada em mobiliário), OLHO DE PERDIZ (variedade de batata de polpa e pele amarelas, com manchas vermelhas), OLHO DE PERDIZ (variedade de figo arredondado e adocicado, de tamanho médio e coloração arroxeada), PÉ DE PERDIZ (arbusto medicinal cuja raiz tem acção anti-inflamatória, cicatrizante, anticancerígena, antimicótica, antibacteriana e antiviral, sendo utilizada no combate de inúmeras doenças), PÉ DE PERDIZ (casta de videira de uva branca), PÉ DE PERDIZ (variedade de pera), PERDIZ (peça teatral que deu prejuízo), PERDIZ (receita que não cobre a despesa), PERDIZ DE ALQUEIVE (sapo), PERDIZADA (bando de perdizes), SALTO DE PERDIZ (salto de sapato alto, vermelho, muito usado pelas elegantes no séc. XVIII).
Desenlace
Coleccionar não é só juntar exemplares daquilo que se decidiu coleccionar. Pelo contrário, exige uma observação minuciosa e atenta, bem como um estudo profundo desses exemplares, independentemente da sua origem, natureza, composição, tipologia e função. Foi o que se passou com o prato de Redondo que foi objecto do presente escrito. Encontrei-o disponível no mercado de antiguidades e entre nós estabeleceram-se, de imediato, fortes laços de empatia, já que o prato começou a falar comigo. Na sequência da sua aquisição e porque sou um contador de estórias, tinha que falar do prato, relatando as estórias que ele tinha para me contar. Foi o que procurei fazer com espírito de missão, missão que não terminou aqui e que será prosseguida inescapavelmente com o surgimento do próximo objecto olárico, igualmente capaz de estabelecer comigo um relacionamento empático.
BIBLIOGRAFIA
(1) - AMIGOS DE CAPELINS. A perdiz [Em linha]. Disponível em: https://amigosdecapelins.blogspot.com/2020/11/662-fauna-das-terras-de-capelins-perdiz.html [Consultado em 22 de Setembro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - COMIDA SAUDÁVEL PERTO DE MIM. Perdiz [Em linha]. Disponível em: https://pt.healthy-food-near-me.com/partridge-description-of-meat-benefits-and-harm-to-human-health/ [Consultado em 18 de Setembro de 2022].
(4) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(5) - COUTINHO, Artur. Cancioneiro da Serra de Arga. Edição do autor. Viana do castelo, 1980.
(6) – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(7) - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas. 6ª edição. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1988.
(8) - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
(9) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Português. 2ª ed. A. Rodrigues & CV. Editores. Lisboa, 191.
(10) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. II. Typographia Progesso. Elvas, 1905.
(11) - VÁRIOS. Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 21. Lisboa, Rio de Janeiro, s/d.
[1] Significa que durante o mês de Abril a perdiz continuava a pôr ovos, que podiam atingir a dezena e meia e enchiam o ninho.
[2] Expressa que em Agosto, os perdigotos já estavam bem-criados, pelo que podiam ser caçados.
[3] Revela que em Fevereiro, o casal perdiz-perdigão recocava, isto é, manifestava um cantar manso e terno.
[4] Indica que é em Janeiro que uma perdiz acasalava com um perdigão, ficando juntos até à criação dos perdigotos.
[5] Diz-nos que no mês de Maio, as perdizes chocavam os ovos e nasciam os perdigotos.
[6] Significa que em Março, a perdiz começara a pôr ovos e o ninho já devia ter 3 ou 4.
[7] São João comemora-se a 24 de Junho, mês das colheitas por os cereais estarem maduros, alimentando as perdizes e os perdigotos. Este o sentido do adágio.
[8] São Tiago comemora-se a 25 de Julho, mês em que os perdigotos já estavam crescidos e voavam por cima de cursos de água, onde iam beber. Tal o sentido do adágio.
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