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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Estória da amizade entre um oleiro e o seu barbeiro, na Vila de Redondo, no ano de 1941


Borracha. F.R.C., oleiro. Redondo, 1941.

Ao meu amigo Dr. António Carmelo Aires,
seguramente o maior coleccionador
e investigador da cerâmica de Redondo

Antelóquio
Recentemente, ao fim da tarde, localizei à venda na Internet, uma peça olárica de Redondo, a qual já lá estava há quatro horas. O meu interesse por ela foi “tiro e queda”, que é como quem diz “amor à primeira vista”. Instantes depois estava comprada e paga, “não fosse o diabo tecê-las”, o que a acontecer não seria a primeira vez e decerto também não seria a última. É que o tempo é uma variável muito importante a ter em conta, já que outros se podem antecipar. Vários foram os factores que contribuíram para a minha forte motivação em a comprar. O leitor irá perceber porquê.

Leitura da peça
O exemplar olárico de Redondo que é objecto do presente estudo, configura uma “borracha”, recipiente em couro para transporte de líquidos, em particular de vinho. O mesmo dispõe de uma abertura para entrada e saída de líquido, a qual pode ser vedada com uma rolha. Dispõe ainda de duas alças, uma, próximo da embocadura e outra, do lado oposto, junto ao fundo. Estas alças visam permitir prender a elas um cordão ou tira de couro, permitindo transportar a borracha a tiracolo. A borracha funciona assim como cantil.
O engobe exterior e interior da peça é numa tonalidade creme, a qual pretende imitar a cor do couro. A superfície da “borracha” foi esgrafitada e pintada em tricromia com as cores tradicionais da cerâmica de Redondo: verde, amarelo e ocre castanho.
A peça, de morfologia periforme, encontra-se decorada em cada uma das duas faces, por um grupo de ilustrações legendadas, que nos relatam uma estória.
Numa das faces, encontram-se ilustrados e identificados por um número, dez utensílios de barbeiro, de meados do séc. XX: 1 – taça da espuma, 2 – pincel da barba, 3 – cabaça do pó de talco, 4 – navalha da barba, 5 – assentador de navalhas, 6 – pente, 7 – tesoura, 8 – máquina de cortar cabelo, 9 – frasco de perfume, 10 – escova de tirar os cabelos. Por debaixo deste conjunto de ilustrações, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Desconheço o significado da sigla SM na última linha. Todavia, é possível concluir que estamos em presença de uma “borracha” em barro vidrado, oferecida e dedicada por um oleiro de Redondo (F. R. Cte) a um barbeiro (J. Falé), decerto o seu barbeiro, residente naquela Vila.
Na outra face da “borracha” encontram-se três ilustrações. Na parte de cima, um cacho de uvas com duas parras. Na parte debaixo e à direita, um homem (supostamente o barbeiro) de boné na cabeça e sentado numa cadeira, não se sabe se por já não ser capaz de se ter em pé. Com a mão direita leva um copo de vinho à boca, enquanto que com a mão esquerda segura uma garrafa de vinho parcialmente cheia, assente na sua perna esquerda. Esta ilustração tem à sua esquerda, logo abaixo do cacho de uvas com parras, uma outra ilustração. Trata-se de uma tripeça na qual assenta um barril, de cuja torneira escorre vinho que está a encher uma garrafa. A mensagem parece óbvia: O barbeiro é um grande bebedor, de tal modo que ainda não tendo despejado uma garrafa, já se encontra outra a encher, para não haver perda de tempo. Na parte debaixo e à esquerda, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “VIVA / A PARÓDIA / VIVA / 9-5-1941”. As quatro linhas desta inscrição estão cobertas de ocre castanho, como que simulando que o oleiro tivesse entornado vinho quando confeccionava a peça. Nesse sentido, a peça materializa a auto-crítica do oleiro, que se assume igualmente como grande bebedor e amante da “paródia”, tal como o seu amigo barbeiro.

Epítome
Do exposto se conclui que a peça em estudo constitui aquilo que se pode considerar uma ”Jóia da Coroa”. Com efeito, é de uma tipologia pouco vulgar, está datada, tem oitenta anos, é uma peça com dedicatória, falante e ilustrada, que conta com humor a estória de amizade entre um oleiro e o seu barbeiro na Vila de Redondo. Em suma: é uma peça única, pela qual fiquei desde logo apaixonado e mais confortado desde que a paguei. É com peças destas que vão crescendo e se vão edificando a pulso, passo a passo, colecções modestas como a minha e que assim se vão consolidando.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 24 de Fevereiro de 2022


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 28 de Outubro de 2022





















domingo, 26 de outubro de 2025

As flores na matriz identitária redondense

 



Louça de barro vidrado de Redondo,
pertencente à colecção Hernâni Matos


As Ruas Floridas de Redondo conquistaram o Prémio Alentejo 2025, na categoria Mais Prazeres & Sensações, promovido pela revista Mais Alentejo. A cerimónia de entrega dos prémios teve lugar ontem, no Teatro Pax Julia, em Beja.
As Ruas Floridas de Redondo são um evento bienal de base popular, onde os moradores da vila decoram as ruas com flores e artefactos manufacturados com papel colorido. Trata-se de uma tradição que remonta ao século XIX e que integra a matriz identitária redondense, à semelhança do que se passa com a louça de barro vidrado de Redondo, a qual muitas vezes é decorada com motivos florais.








domingo, 8 de junho de 2025

Louça de Redondo no Mercado das Velharias em Estremoz

 

1.

Sábado é dia de recarregar baterias. E eu sou guardador de memórias. Memórias identitárias de tempos idos de um Alentejo que trago na alma e na massa do sangue. Por mim circulam Bonecos e Olaria de Estremoz, Arte Pastoril, Louça Vidrada de Redondo e mais não digo, senão não saímos daqui. Passo de imediato a contar-vos o que deu a safra ontem.

1. Barranhão de grandes dimensões decorado com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, característica da louça vidrada de Redondo. Bordo beliscado e esponjado de verde. Fundo com decoração mista, fitomórfica e zoomórfica, na qual um arbusto florido serve de poiso a um bando de passarinhos, que também esvoaçam em torno dele, já com o bico carregado,. numa clara alegoria à Primavera.

O traço do esgrafitado é fino, firme e seguro, configurando o desenho ter saído das mãos de grande artista. 

Autoria e datação por determinar,

 

2.

2. Prato de louça de barro vermelho de Redondo, pintado e não vidrado por Francisco Cardadeiro (Chico Galinho). A pintura cinge-se à parte frontal do prato, o fundo é negro e a decoração policromática e fitomórfica reproduz os habituais elementos decorativos da mobília tradicional alentejana. No bordo do prato existe simetria alternada dos elementos decorativos usados do prato. No fundo, existe simetria axial em relação ao eixo central.

Datação por determinar.

  Hernâni Matos


terça-feira, 15 de abril de 2025

Benfica - Arouca

 

Bacia de barro vermelho vidrado, de Redondo. Decoração esgrafitada e pintada
com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.

O emproamento verbal de quem se regozija com o empate Benfica-Arouca, leva-me a concluir que “A mau falar, boa resposta dar”, acrescido de “Quem muito fala, pouco acerta” e como nada está decidido, remato proclamando: “Bom é saber calar até ser tempo de falar”.

- VIVA O BENFICA!

A matriz do meu pensamento, expressa e veiculada através do texto supra, é invariante e inalterável. Não reage a diatribes verbais reactivas, independentemente da sua origem e motivação. Fazê-lo seria contemporizar com o clima tóxico alimentado pelo fanatismo que grassa nas hostes clubistas.
A meu ver, o exemplo a apresentar à juventude, que é o futuro, é a da elevação e da verdade desportiva, a qual deve ser transversal, abrangendo dirigentes, jogadores e adeptos. O contrário é suicídio dos intervenientes e a morte do desporto. Para tal não podem contar com o meu contributo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O reencontro de dois caminhantes

 

Mestre Xico Tarefa e Hernâni Matos, dois caminhantes que se reencontram na sede
da ADOE.  De que estarão a falar? De olaria, pois claro!


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É sabido que não há caminho, como nos ensina o poeta sevilhano António Machado: “Caminhante, são teus rastos / o caminho, e nada mais; /caminhante, não há caminho, / faz-se caminho ao andar.” (…).

Cada um de nós segue o seu próprio caminho, o que não impede que alguns caminhos se cruzem. Foi assim que o meu caminho e o de Mestre Xico Tarefa se cruzaram em 1980 no Terreiro do Paço Ducal de Vila Viçosa. Tal ocorreu no decurso do I Encontro de Olaria Regional do Alto Alentejo, que ali teve lugar entre 4 e 15 de Junho desse ano.

Andámos ambos por ali e integrávamos a Comissão Organizadora do Encontro. Eu em representação da Casa da Cultura de Estremoz e ele em representação do Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça. As nossas preocupações de então centravam-se na necessidade de salvaguarda da matriz identitária das olarias de cada Centro Oleiro do Alto Alentejo e na tomada de medidas que impedissem a descontinuidade de produção das olarias.

O Mestre Xico Tarefa era um operacional no terreno, que não parava quieto, andava sempre para aqui e para ali, a tratar de uma coisa ou outra. Entre as múltiplas tarefas de que foi encarregue esteve a produção de um prato comemorativo do Encontro, a ser oferecido aos participantes. Daí eu estar na posse de um exemplar que tive a honra de receber na época, o qual está na génese da minha condição de coleccionador de louça de barro vidrado de Redondo. O trabalho de roda é de Mestre Xico Tarefa e a pintura e o esgrafitado são da autoria de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983).

Ao receber de bom grado o prato comemorativo do Encontro, herdei uma pesada responsabilidade e brotou em mim o fascínio pela cerâmica redondense, que nunca mais parou e cuja chama se mantem bem viva. Aquele prato tem para mim especial significado. Foi o primeiro exemplar da minha colecção de cerâmica redondense. Por mais raro e mais valioso que seja outro espécime adquirido ou que venha a adquirir, aquele ocupará sempre um lugar muito privilegiado no meu coração. É que foi o primeiro da minha colecção, saído das mãos de Mestre Xico Tarefa e de Mestre Álvaro Chalana e que ficou a selar o cruzamento do meu caminho com o primeiro destes mestres.

Decorridos 45 anos sobre o primeiro cruzamento dos nossos caminhos, voltámos a cruzar-nos. Desta feita, o terreiro é outro. Trata-se da ADOE - Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz. Ele como formador, na qualidade de Mestre Oleiro. Eu, como consultor had hoc, na qualidade de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz.

De então para cá, o Mestre Xico Tarefa tem desenvolvido uma carreira notável como Mestre Oleiro e como formador das novas gerações, o que muito me regozija e enche de orgulho como seu amigo e admirador em que entretanto me tornei.

A sua obra fala por si e é um exemplo paradigmático para os mais novos. Encerra em si própria, o respeito pela ancestralidade da olaria popular alentejana, temperado pela criatividade inovadora que lhe brota da alma e que com fidelidade se transmite às mãos mágicas que são as suas.

Obrigado Mestre pela beleza criada para usufruto e deleite de espírito de todos aqueles que apreciam o seu trabalho.

Bem-haja, Mestre Xico!


Publicado no jornal E nº 350, de 14 de Fevereiro de 2025

terça-feira, 23 de julho de 2024

Os Bonecos de Estremoz foram à Feira de Vila do Conde

 

Stand de Carlos Alberto Alves

Stand de Inocência Lopes

Stand de Maria Isabel Pires e de Sara Sapateiro

A Feira
Foi inaugurada no passado dia 20 de Julho a 46ª Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde, a qual decorrerá nos Jardins da Avenida Júlio Graça e ali estará aberta ao público até ao próximo dia 4 de Agosto.
O evento é uma organização conjunta da Câmara Municipal de Vila do Conde e da Associação para Defesa do Artesanato e Património de Vila do Conde.
O prestigiado certame reúne duas centenas de artesãos nacionais que asseguram a cobertura geográfica do País e a presença dos mais diversos materiais e formas de expressão que afirmam a excelência do artesanato português.
Na 46ª edição da Feira participa como país convidado, São Tomé e Príncipe, cujas artes tradicionais estarão em destaque.

Embaixada estremocense
Na Feira deste ano participam como bonequeiros de Estremoz, os barristas Carlos Alberto Alves, Inocência Lopes, Maria Isabel Pires e Sara Sapateiro, que se inscreveram a título individual e se apresentam em stands próprios. De registar ainda a participação da ADOE-Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz, liderada por Inês Crujo. De salientar igualmente a participação de Mestre Xico Tarefa, o qual foi formador dos jovens que integram a ADOE e se encontra ali a defender a sua dama: a olaria redondense.
À excepção do barrista Carlos Alberto Alves que cumprirá o período integral da Feira, todos os demais terminarão a sua participação no próximo sábado, dia 27 de Julho.

Concursos da Feira
No decurso da Feira terá lugar a 2ª edição do “Concurso Jovem Artesão”, destinado a galardoar um trabalho numa das áreas do artesanato tradicional e que visa incentivar e dar destaque à criatividade dos jovens até aos 30 anos. A ele concorrem 29 jovens artesãos, entre os quais três jovens barristas de Estremoz: Sara Sapateiro (Presépio de altar), André Filipe Carriço Carvalho (O Mestre Oleiro) e Maria do Carmo Ramos Padeiro Baptista Crujo (O meu avô).
Será reeditado ainda o “Prémio Feira Nacional de Artesanato”, o qual procura dignificar o artesanato e incentivar a qualidade e a defesa de valores de raiz histórico-cultural. Subordinado ao tema “Liberdade”, este prémio visa assinalar os 50 anos da Revolução de Abril e a ele concorrem 63 artesãos, entre os quais o barrista Carlos Alberto Alves com a composição “Liberdade”, que representa um carro de combate em cima do qual figuram militares e povo, festejando o 25 de Abril.
Qualquer dos prémios tem o patrocínio do Crédito Agrícola e os trabalhos submetidos a concurso estarão expostos durante o certame.

Animação e gastronomia
Nem só de artesanato vive a Feira. A música, a dança e os cantares tradicionais são uma presença constante, que anima o recinto e o palco da Feira. Também as Jornadas Gastronómicas permitem aos visitantes percorrer o País de Norte a Sul, fazendo uma viagem pelo melhor da Cozinha Portuguesa e, nos dois primeiros dias do evento, pelos sabores da inconfundível cozinha de São Tomé e Príncipe.

Stand da Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz

Stand da Olaria de Mestre Xico Tarefa

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

CERÂMICA DE REDONDO – Garrafão falante de Mestre Álvaro Chalana

 

Garrafão falante de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983). 

Garrafão em barro de tonalidade vermelha, vidrado, de base circular plana, corpo ovóide, colo cilindriforme e carenado a meia altura da parede, bordo ligeiramente extrovertido e arredondado. Imediatamente abaixo da carena deriva uma asa de secção rectangular, que finda na zona de diâmetro máximo do bojo.

A superfície exterior está decorada com três manchas de engobe, de cor amarelo de palha, de forma irregular, dispostas praticamente a partir do início do colo e até à base. Estas manchas receberam decoração esponjada, a verde e a amarelo.

Sobre cada uma das três manchas de engobe estão esgrafitadas as inscrições: “Ai que belo”, “Viva a boa pinga” e a quadra:

“Sou pequeno mas alegre
Isto que digo e a verdade
O meu amigo come e bebe
Mas pode beber a vontade”

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

CERÂMICA DE REDONDO – Brasão de Lisboa em prato falante de Mestre Álvaro Chalana


Brasão de Lisboa. Prato falante de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983)

Prato de barro vermelho vidrado, modelado, cozido e decorado na olaria redondense de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983).

Prato covo, falante, brasonado, de grandes dimensões, com superfície interna de cor creme, de aba larga ligeiramente côncava e bordo plano. Decoração esgrafitada e pintada com base em quadricromia verde-amarelo-castanho-negro.

Decorado no bordo com motivos fitomórficos constituídos por pés de flores, bi-folheados, de dois tipos que se sucedem alternadamente. Decorado no fundo com motivo configurando o escudo do Brasão de Armas de Lisboa, com um barco castanho, um corvo na popa e outro corvo na proa. O barco assenta num mar de cinco faixas onduladas, quatro de castanho e três verdes. Do mastro, central, pende cordame em direcção à proa e à popa. No topo do mastro está içada a Bandeira de Lisboa ou Bandeira de São Vicente, gironada de quatro peças, creme e negro, símbolo do município de Lisboa. As velas, verdes, estão recolhidas. Em torno do topo do barco, riscos a castanho parecem configurar bases de nuvens e/ou aves a planar.

Hernâni Matos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Entrevista sobre o 25 de Abril, concedida ao jornal E, de Estremoz

 


Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”

No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.

Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?

A NÍVEL DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; -  A constatação de que havia crianças que iam descalças para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; - A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade diária de gorilas, que eram ex-militares das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir, impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar o caso de haver bufos (informadores) na vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de 14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no Estado Novo, regime de partido único: a UN - União Nacional.

Esteve na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?

Ingressei na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de 1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis. Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda, participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações, greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto, mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974 pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.

Nas eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas pela UN - União Nacional, liderada por Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da Oposição.

Sentiu, na altura que a ditadura tinha os dias contados?

Apesar da repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento Militar das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam.  Bem hajam por isso!

Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?

Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias.  A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.

Olhando para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a democracia que tivemos em Portugal?

A avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa transição: as Forças Armadas Portuguesas.

O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do MFA - Movimento das Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército, instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do denominado Movimento dos Capitães, o qual aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3 frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela previsibilidade de uma derrota militar iminente.

No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na prisão.” E mais adiante: “Foi então que Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.

A chamada Revolução dos cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo fora.

Que impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?

Em 1º lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em 2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades, teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o exercício da cidadania.

Um pouco por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve. Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser consignadas na Constituição da República Portuguesa.

O 25 de Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).

Como foi para si o período que se seguiu à Revolução?

O período pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo Revolucionário em Curso foi marcado por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de 6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de 1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2 do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil, legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA

Teve, nessa altura, alguma militância ou intervenção política?

Logo a seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos professores na Escola Secundária de Estremoz.

A nível político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me identificava com a CDE - Comissão Democrática Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o 25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz, participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral e se registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974, se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves. Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU – Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos, até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre foi e continua a ser a minha grande motivação.

E que avaliação faz da democracia que temos na actualidade?

A democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na prática não é bem assim.

Qual o estado da democracia em Portugal?

A democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego, trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade, salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação, especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice, Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a esmagadora maioria das pessoas.

50 anos depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos. 

Hernâni Matos

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Cerâmica de Redondo - Prato de aranhões decorado por Jacinto Ramalhosa



Prato de barro vermelho vidrado, confeccionado e cozido na olaria redondense de Mestre Pintassilgo [João Mértola (1929-2022)], decorado a azul cobalto por Jacinto Ramalhosa.

No covo está desenhada uma corça rodeada de motivos vegetalistas. A aba, larga, encontra-se decorada com pares de pêssegos estilizados (os pêssegos, originários da China, são símbolos relacionados com o casamento e a imortalidade) que alternam com folhas de artemísia (planta medicinal utilizada na medicina tradicional chinesa). Inspirado na faiança portuguesa do séc. XVII.

Neste período, o fascínio pela porcelana chinesa no nosso país, leva a que a faiança portuguesa seja caracterizada por uma original adaptação de motivos ornamentais do Oriente, que são reinterpretados em novas composições, de estilo híbrido, nas quais se combinam influências orientalizantes e a permanência de valores tradicionais. Pertencem a esse estilo, os chamados pratos de “aranhões”. Estes resultam da simplificação interpretativa dos motivos empregues na porcelana chinesa, nomeadamente as folhas de artemísia, frequentemente usadas na decoração da porcelana “kraak”. Esta era um tipo de porcelana chinesa de exportação, produzida sobretudo no reinado do Imperador Wanli (1563-1620) da dinastia Ming (1368-1644), até cerca de 1640 e que chegava em abundância à Europa.

Hernâni Matos