Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”
No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.
Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?
A NÍVEL
DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São
Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras
percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; - A constatação de que havia crianças que iam descalças
para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; -
A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia
que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de
orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não
sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a
enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O
ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e
as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a
título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu
pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se
dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da
candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o
prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição
da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade
diária de gorilas, que eram ex-militares
das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias
internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir,
impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que
tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar
o caso de haver bufos (informadores) na
vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu
ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do
Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha
assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de
14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro
por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela
Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as
ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse
comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no
Estado Novo, regime de partido único: a UN - União
Nacional.
Esteve
na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta
estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?
Ingressei
na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi
já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de
1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de
liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar
o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa,
o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis.
Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia
universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra
colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda,
participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações,
greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas
outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto,
mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974
pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.
Nas
eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado
da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que
funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas
pela UN - União Nacional, liderada por
Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto
eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da
Oposição.
Sentiu,
na altura que a ditadura tinha os dias contados?
Apesar da
repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas
operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também
se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento
Militar das Caldas da Rainha de 16 de
Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma
futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a
indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão “Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e
foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo
levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda
foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam. Bem hajam por isso!
Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?
Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias. A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem “O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.
Olhando
para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a
democracia que tivemos em Portugal?
A
avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa
transição: as Forças Armadas Portuguesas.
O derrube da ditadura mais velha da Europa – o
regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças
à acção militar coordenada do MFA - Movimento das
Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no
interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército,
instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do
denominado Movimento dos Capitães, o qual
aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e
com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a
Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3
frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela
previsibilidade de uma derrota militar iminente.
No seu poema “As portas
que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos,
diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez
era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na
prisão.” E mais adiante: “Foi então que
Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria
cidade.”
A chamada Revolução dos
cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi
derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de
Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível
internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim
sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo
fora.
Que
impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?
Em 1º
lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões
que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em
2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário
do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então
nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a
acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades,
teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o
exercício da cidadania.
Um pouco
por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve.
Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida
pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de
liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de
aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser
consignadas na Constituição da República Portuguesa.
O 25 de
Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por
melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento
dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos
das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança
de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da
cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).
Como
foi para si o período que se seguiu à Revolução?
O período
pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo
Revolucionário em Curso foi marcado
por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados
agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à
habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras
manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de
uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por
intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como
confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de
modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de
Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de
6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado
por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de
1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2
do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa
a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil,
legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA
Teve,
nessa altura, alguma militância ou intervenção política?
Logo a
seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam
surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da
zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão
pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de
Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos
professores na Escola Secundária de Estremoz.
A nível
político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me
identificava com a CDE - Comissão Democrática
Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o
25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz,
participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um
entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam
integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se
transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português
/ Comissão Democrática Eleitoral e se
registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974,
se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves.
Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições
pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência
me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei
então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu
colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a
estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro
Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José
Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU
– Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado
municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos,
até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma
maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre
foi e continua a ser a minha grande motivação.
E que
avaliação faz da democracia que temos na actualidade?
A
democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a
Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e
revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo
separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na
prática não é bem assim.
Qual o
estado da democracia em Portugal?
A
democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos
domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção
nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego,
trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade,
salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação,
especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade,
envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice,
Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da
Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os
principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a
esmagadora maioria das pessoas.
50 anos
depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos
portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser
assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se
consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto
que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos.
Hernâni Matos
Bom dia prof. Gostei muito da sua entrevista. Acabei de ler no seu post.
ResponderEliminarBom dia, Mário.
EliminarCongratulo-me com isso.
Um abraço.
Li. Abraço.
ResponderEliminarCongratulo-me com a sua leitura.
EliminarUm abraço para si, também.
Li. Abraço.
ResponderEliminarMuito obrigado, António.
EliminarUm abraço para ti, também.
Parabéns. Entrevista sábia. Abraço
ResponderEliminarMuito obrigado. Um abraço para si, também.
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