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quinta-feira, 13 de março de 2025

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas (2ª edição)

 

Tipo 3 – Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Tarro, bolota, jarra, balde,
 bolota, suporte de copo, sapato com lira, sapato com cruz.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.

Ganchos de meia
Independentemente da sua morfologia e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, têm um sulco ou um buraco, por onde passa o fio, que do novelo é redireccionado para as agulhas. É fixado na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí é seguro através dum alfinete-de-ama ou cozido com linha, podendo eventualmente o gancho de meia incluir um pedaço de arame dobrado em U (gancho) para pregar no vestuário.
No decurso do trabalho, o fio que passa pelo gancho de meia, posiciona-se sempre entre o corpo e o trabalho, enrolado no dedo médio e sendo a cada malha, movimentado com o polegar esquerdo.
Tanto os ganchos de meia com sulco como os ganchos de meia com orifício, podem-se desprender da roupa onde estão fixados, sempre que se interromper a execução do trabalho. Todavia, só os ganchos de meia com sulco se podem soltar da peça em execução, pois os ganchos de meia com orifício têm o fio introduzido nele desde o início do trabalho e só o libertam quando este é cortado.

Tipologias dos ganchos de meia
Na minha colecção identifiquei as seguintes tipologias de ganchos de meia:
TIPO 1 – Com um orifício para passar o fio do novelo e um gancho de arame para prender no vestuário;
TIPO 2 - Com um orifício para passar o fio do novelo e 2 orifícios para passar o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 3 – Com um sulco para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 4 – Com dois sulcos para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 5 – Com uma argola por onde pode passar simultaneamente, o fio do novelo e o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 6 – Com 3 argolas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;
TIPO 7 – Com várias aberturas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;

Meias de 5 agulhas noutros tempos
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento por desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.

Meias de 5 agulhas na actualidade
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Publicado inicialmente em 2 de Junho de 2023

Tipo 4 – Coração.

Tipo 1 – Sapato, bolota.

Tipo 2 – Sapato (vista superior e vista lateral).

Tipo 5 – Gral, panela de ferro, bolota, bolota, badalo.

Tipo 6 – Par de sapatos, par de bolotas, par de bolotas.

Tipo 7 – Cadeirinha de prometida [1]


[1] Símbolo usado para “selar” o contracto pré-matrimonial no Alentejo de antanho. Através dele, o moço oferecia à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passaria a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Depois disso poderia vir a adquirir outra funcionalidade, como a de gancho de meia.

terça-feira, 11 de março de 2025

Quem não tem que fazer, faz colheres




Se é certo que é isso que diz o rifão, o que não é menos certo é que quem o fazia, não o fazia de qualquer maneira. Começava logo na escolha da madeira, sendo sabido que no Alentejo, as madeiras que o pastor tinha à sua disposição, eram as fornecidas pelas árvores ou arbustos existentes na região: azinheira, buxo, carvalho, castanho, cerejeira, cipreste, esteva, figueira, laranjeira, nespereira, nogueira, oliveira, piorno, sabugo, sobro, vimeiro.
O pastor escolhia um pau de qualidade, sem nós nem veios que viessem a fender depois da obra acabada. Naturalmente que o tamanho e o calibre do pau tinham a ver com aquilo que se ia fazer.
Um pastor adestrado a fazer colheres, começava por escolher um pau que evidenciasse o característico perfil em S, o que tinha a ver com as características ergonómicas que a colher devia reunir. Estas, podem-se resumir no seguinte: necessidade e conveniência de a concha fazer um ângulo com o cabo da colher, que na outra extremidade deve fazer um ângulo em sentido inverso. O cabo deve, de resto, ser facilmente adaptável à mão do utilizador.
É sabido que “A necessidade é mestra de engenho.” Daí que o pastor tenha empiricamente adquirido competências que se traduziram na capacidade de conceber colheres (e outros objectos) que fossem ergonómicos, isto é com qualidade de adaptação ao seu utilizador e à tarefa que ele tinha de realizar. Daí que a colher tivesse de ser usável com eficácia, eficiência e satisfação. Com eficácia, porque distintos utilizadores eram capazes de se servir delas com bons resultados. Com eficiência, já que a sua utilização exigia pouco tempo e esforço físico. Com satisfação, tendo em conta a facilidade de utilização com parcos recursos de tempo e de esforço físico.
Os utensílios usados na manufactura da colher eram a navalha ou a faca, o compasso, o ponteiro e a legra.
Com o ponteiro ou o lápis era esboçada a geometria geral da colher, sendo o corte da madeira efectuado com a navalha, ao passo que o côvado da colher era escavado com a legra, utensílio constituído por uma navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades.
As colheres que eram para ser transportadas pelo utilizador tinham o cabo mais curto, ao passo que aquelas que eram para ser usadas em casa, podiam ter um cabo maior.
Da máxima relevância era a concha que tinha de ter uma capacidade adequada à sua função. E não podemos esquecer que nas herdades, muitas vezes se comia dum recipiente comum – o barranhão. Isto implicava que a colher usada tivesse a maior concha possível, tendo como única limitação, o caber na boca de quem a usava. Assim se conseguia numa única colherada, levar a maior quantidade possível de comida à boca. O que era importante em tempos de miséria e de fome.
Depois de por corte do pau ter sido conseguida a forma geral da colher, esta estava apta a ser decorada. Para tal e também com o auxílio do ponteiro ou do lápis, esboçava-se o desenho a executar, gravado ou escavado. Os motivos eram os mais diversos: ramagens, folhas, flores, animais, estrelas, cruzes, motivos geométricos como o círculo, o triângulo ou o quadrado, assim como rosetas, arabescos, cordas, zig zags, signo saimão, imagens religiosas, etc. O traçado perfeito, rigoroso e absolutamente simétrico de rosetas, de estrelas e do signo saimão não dispensava o uso do compasso.
Os motivos usados na decoração tinham não só a ver com o imaginário do criador, bem como com as simbologias que lhe estavam subjacentes, na perspectiva também do utilizador da colher ou atendendo a quem ela podia ser oferecida: à conversada, à esposa ou o que não era raro, ao patrão.
Em geral, apenas era decorado o cabo da colher, o qual além de poder ser gravado ou escavado, podia ser recortado nos bordos e/ou no interior. O cabo da colher podia mesmo apresentar uma ou mais partes móveis, tais como pequenos anéis móveis ao longo duma haste longitudinal fazendo parte integrante do cabo ou esferas móveis encerradas no próprio cabo. Naturalmente que esta requintada e engenhosa decoração com recurso a partes móveis era exclusiva de colheres que se ofereciam como presente a alguém pelo qual se nutria estima ou amor ou, perante o qual se estava numa posição subalterna. Por vezes, nas costas do cabo da colher, eram gravadas as iniciais de quem a tinha feito ou a data em que tinha sido acabada. 
Há colheres que pela complexidade da sua concepção e pelo minucioso rendilhado da sua decoração, são não só jóias de beleza ímpar dentro da arte pastoril, como também autênticos monumentos erigidos em memória dos seus criadores.
A diversidade de solicitações de utilização da colher está na génese de diversas tipologias, que sistematizámos assim:
- Colher de uso corrente
- Colher de porqueiro
- Colher para prova de comida
- Colher para prova de vinhos
À excepção da colher de porqueiro, todas as colheres eram feitas de um único pau, não havendo nunca colagem de componentes.
Vejamos alguns exemplares dos diferentes tipos de colheres:

COLHER DE USO CORRENTE

4,5 x 2,5 x 24,5 cm. Em madeira, com forma antropomórfica, que é uma figura feminina. A postura hierática faz lembrar uma divindade egípcia. A argola superior destinada a prender num gancho ou num prego, faz lembrar o resplendor dum santo e confere imediatamente um espírito de santidade ou de pureza à imagem da mulher.
Curiosa a representação arbustiva que vai dos genitais aos seios. O ventre da mulher é como se fosse um vaso com ranhura, a partir do qual desabrocham ramos que florescem nos seios. Parece que a escultura quer dizer que o ventre da mulher é o vaso de onde nasce a vida e que os seios são as flores da mulher.
Madeira transformada em poesia pelas mãos hábeis dum bordador de solidões que doem. Daí o rifão: "Quem não tem que fazer, faz colheres."

COLHER DE PORQUEIRO 

[5 x 3 x 13,5 cm (fechada) e 5 x 3 x 19,5 m aberta)]. Em madeira, constituída por duas metades articuladas em torno de um eixo que é um simples prego, aparado. Numa das metades, a que incorpora a concha da colher, a mesma está ligada a uma haste que encaixa nas duas hastes da outra metade, que compreende a tampa da colher. Quando esta se encontra aberta, a tampa funciona como cabo. Porém, quando se fecha, passa a exercer a sua função.
A metade da concha está decorada no bordo superior da haste com um duplo zig zag. Quanto à metade da tampa está decorada com motivos florais nas duas faces e com zig zag simples, quer na parte superior, quer na parte inferior das duas hastes que a suportam.
Fechada, a colher era transportada no chapéu do utilizador, com a tampa encaixada entre a fita e o chapéu.
Prática, funcional e ergonómica.

COLHER PARA PROVA DE COMIDA

19,5 x 1 x 8,5 cm. Em madeira. Constituída por duas conchas ligadas através duma haste com um rego longitudinal e com um cabo perpendicular à haste, por onde era pegada por quem a utilizava.
A concepção e utilização de uma colher com esta tipologia, remonta à época em que havia o receio de contágio por tuberculose. Deste modo, quem cozinhava a comida dos ganhões, recolhia a comida a provar com uma das conchas e inclinando a colher, fazia-a escorrer através do rego para a outra concha, donde era levada à boca para provar.
A concha que era levada à boca nunca entrava em contacto com a comida no recipiente onde esta estava a ser confeccionada. Assim se procurava evitar o contágio e com ele mortes subsequentes.
Modernamente, a colher para prova de comida foi tomada como insígnia das confrarias gastronómicas, nomeadamente da do Alentejo.
O cabo do exemplar da imagem tem a forma de um coração que encerra no seu interior, uma ave indeterminada, mas que é um ser que voa, que é capaz de se libertar da Terra e subir ao Céu. O coração é encimado por um malmequer. Também a haste que liga as duas conchas está decorada de cada lado do rego, com um malmequer, com uma folha de cada lado. Simbolicamente, através da colher são formulados ao seu utilizador, os votos de liberdade (ave), amor (coração) e dinheiro (malmequer).

COLHER PARA PROVA DE VINHOS

Em madeira, finamente bordada na zona em que pode ser segura, opondo o polegar ao indicador e ao médio. Perfeita forma de coração. Pelas suas dimensões (5 x 0,9 x 6,8 cm) podia ser transportada sem incómodo algum, no bolso do relógio, quer do colete, quer das calças.
De salientar que a prova organoléptica dum vinho é feita através da visão, olfacto e paladar, recorrendo ao aspecto, nariz e boca.
Pelo aspecto conseguimos apreciar o brilho, a tonalidade e intensidade da cor e a limpidez.
Pelo olfacto e recorrendo á nossa memória olfactiva poderemos identificar aromas (frutado, floral, tostado, etc.).
No exame através do paladar, ingere-se uma pequena porção de vinho, fazendo-o percorrer todo o interior da boca antes de o cuspir ou engolir.
Tiram-se então conclusões acerca do corpo do vinho, da acidez, da doçura ou secura, do amargor e da adstringência. Quanto mais tempo o sabor permanecer na boca, maior será a qualidade do vinho.

Publicado inicialmente em 17 de Março de 2010

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Da arte à poesia pastoril


Pastor de Évora. Aguarela de ALFREDO MORAES (1872-1971)


O pastor alentejano ocupa o tempo que lhe sobra da guarda do rebanho, em gravar desenhos sobre madeira, cortiça ou chifre.
Como principal instrumento de trabalho, serve-se da navalha, mas utiliza também, por vezes, o ponteiro e a legra que transporta sempre consigo. A legra consta de uma folha de navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades, e é utilizada, especialmente, para escavar a concha das colheres. Com riscos esboça primeiro o trabalho a executar. Sobre o traçado abre então o desenho idealizado: ramos, bordados ou outros motivos.
Dentre os trabalhos executados podem citar-se os seguintes: De madeira: colheres, cassos, garfos, copeiras, garfeiras, molduras, tinteiros, pontões de arca, sovinos [i], agulheiros, chavões, etc. De cortiça: côxos, tarros, caixas de costura, saleiros, tropeços, etc. De chifre: polvorinhos, cornas, azeiteiros, copos, colheres, etc. "A Província do Alentejo é a lareira onde arde mais vivo, mais claro e mais alto, o fogo tradicional da arte popular portuguesa.”[ii]
“Não sabe uma letra o pastor destas terras, em erudição nunca ouviu falar, e é poesia pura a linguagem da sua alma, e é poesia pura o que sai das suas mãos.
E além de tudo mais uma qualidade tem a sua poesia. Não precisa dos livros para se imortalizar. Um raminho de buxo, um nada de cortiça, e, da inspiração fugidia, ficou alguma coisa nas nossas mãos.
Perdão! nas mãos da sua conversada que cada Domingo as estende para receber a colher rendada com que se promete casamento ou o tarro com que se deseja abastança, e se acha ao fim e ao cabo com um poema em que se fala de amor.”[iii]
Mas apesar de a arte pastoril ser poesia e poesia pura, na solidão da sua vida de nómada, o pastor é um poeta popular no sentido literal do termo, criando sobretudo décimas e quadras que regista no livro vivo da sua memória:

" Àlém ò pé do redil
Uma pedra me espera.
Sentado ali sem dormir,
Górdando o gado da fera."[iv]

Sim, por que lá diz o rifonário popular. “É ao mau pastor que o lobo dá louvor” e “Pastor descuidado, ao sol posto junta o gado” e ainda “A ovelha que não tem dono come-a o lobo”.
A quadra pode ser brejeira:

"Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu,
O Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu."[v]

Pode ser também o reflexo do grande isolamento em que vive o pastor, que lhe permite conhecer a natureza que o rodeia, muito em particular, o céu: 

"As árves que o mundo tem
Cubro-as c’o meu chapéu.
Diga-me cá por cantigas
Quantas ‘strelas há no céu?"[vi]

Por vezes a poesia encerra uma profunda crítica social:

"Sobe o rei no alto trono,
Desce o pastor ao val’ fundo;
Uns p’ra baixo, outros p’ra cima
Vai-se assim movendo o mundo."[vii]

Felizmente que através dos tempos tem havido estudiosos que têm procedido à recolha do rico Cancioneiro Popular. Registo entre outros os nomes de Tomás Pires, Luís Chaves, Azinhal Abelho, Manuel Joaquim Delgado, Augusto Pires de Lima, Vítor Santos, Fernando Lopes Graça, Michel Giacometti, a quem presto o tributo do meu reconhecimento por terem tido a clarividência da importância que constitui o registo escrito do Cancioneiro Popular, como forma de assegurar a perpetuidade do que tem de mais rico e genuíno a nossa memória colectiva.

[i] Furadores de abrir a capa do milho.
[ii] Virgílio Correia in Etnografia Artística, Renascença Portuguesa, Porto, 1916.
[iii] João Falcato in Elucidário do Alentejo, Coimbra Editora, Coimbra, 1953.
[iv] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[v] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vi] Beja - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.
[vii] Ferreira do Alentejo - Recolha de Manuel Joaquim Delgado in ob. cit.

Publicado inicialmente a 3 de Março de 2010

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A cadeirinha de "Prometida"


Troca de prendas entre "conversados".  Imagem recolhida on line.


Campos do Alentejo na primeira metade do século vinte. Um moço que num rasgo de olhar, vislumbra uma moça, na qual existe qualquer coisa que irreversivelmente o atrai e o fulmina. É tiro e queda. Passa a segui-la como um perdigueiro que segue a caça. Pisteiro, procura dirigir-lhe palavra. Mas manda a tradição que a moça, apesar de se sentir atraída por ele, lhe dê um ou mais cabaços (negas). Todavia, “Quem porfia sempre alcança” e um dia, os sentimentos do moço são retribuídos pela moça e o amor irrompe como um vulcão. Ela dá-lhe trela e ele recebe luz branca para lhe fazer a corte. Derretem-se um pelo outro, mas procuram encontrar-se em segredo, longe das bocas do mundo, para que a família dela não saiba antes do tempo próprio. E as coisas assim continuam até que um dia, deixam de ter medo que os outros saibam e passam à condição de “conversados”, encontrando-se às claras, na pausa dos trabalhos do campo, no regresso dele, junto à fonte ou na igreja, nos domingos e dias santos. É a época em que o moço oferece à moça, objectos utilitários de arte pastoril, finamente lavrados: dedeiras para a ceifa, rocas e fusos, ganchos de fazer meia ou caixas de costura, que ele próprio confecciona se da arte pastoril tem o jeito ou que encomenda a alguém, no caso de não o ter. Ela retribui com prendas finamente bordadas, tais como uma bolsa para o relógio, para a tabaqueira ou para as moedas. E na comunhão do amor perene, qualquer deles usa e ostenta com orgulho, as prendas que recebeu do outro e que “selam” a sua condição de “conversados”.
A instâncias da moça, com o apoio da mãe primeiro e do pai depois, os pais dão autorização para que os “conversados” falem à janela ou à porta de casa, seja ela na vila ou no monte. E as coisas assim vão prosseguindo até que o estado psicológico do par atinja o ponto de rebuçado. Nessa altura, o moço pede aos pais da moça que lha dêem em casamento. Estes, naturalmente, protagonistas activos ainda que ocultos, desta saga amorosa, concedem-lhe a graça solicitada. A moça passa então da condição de “conversada”, à condição de “prometida”. Só então o par recebe autorização para conversar dentro da casa dos pais da moça. E para “selar” o contracto pré-matrimonial, o moço oferece à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passará a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Esta a fórmula encontrada pela sábia identidade cultural alentejana, de dar a conhecer à comunidade que a moça já estava “prometida” e que em breve iria casar.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 7 de Janeiro de 2011

A cadeirinha de prometida. Símbolo do contrato
pré-matrimonial no Alentejo da primeira metade 
do séc. XX. Talhada em madeira numa única
peça (2,1x2,1x5,2 cm).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Roberto, guardador de vacas e artista popular


Roberto Carreiras (1930-2017). Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz /
/ BMETZ – Colecção Joaquim Vermelho.


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Faleceu no passado dia 8 de Janeiro, Roberto Carreiras, um dos últimos intérpretes da Arte Pastoril concelhia. Estremoz está de luto e com a cidade, a Cultura Popular Alentejana, da qual foi um legítimo representante.
Quem foi Roberto Carreiras
Roberto Francisco Pereira Carreiras (1930-2017), filho de José Joaquim Carreiras e de Francisca Bárbara, era natural da freguesia de Veiros, concelho de Estremoz, em cuja Quinta do Leão, nasceu a 25 de Janeiro de 1930.
Na vila de Veiros frequentou a Escola Primária e concluiu a 3ª classe. Porém, as dificuldades económicas da família, forçaram-no a abandonar a escola e a tornar-se vaqueiro naquela quinta. Ali trabalhou, até que a falta de saúde o obrigou a reformar-se.
À semelhança de outros artistas populares iniciou-se na Arte Pastoril como forma de ocupar o tempo enquanto guardava a manada. Os materiais usados começaram por ser a madeira, a cortiça, a cabaça, a cana, o buinho e o chifre. Estes eram trabalhados usando técnicas como a escultura ou o baixo-relevo. Todavia, viria a utilizar outros materiais como o arame, o xisto ou o mármore, nos quais expressava toda a sua imaginação criadora. De resto, era muito diversificada a temática das suas criações: brinquedos, antigas profissões, história, religião, touradas, etc.
Como criador começou a trabalhar ao ar livre no decurso da sua actividade como vaqueiro. Após se ter reformado, passou a trabalhar numa garagem cedida graciosamente pela Junta de Freguesia de Veiros, que o reconhecia não só como artista popular, como motivo de orgulho para a freguesia em que nascera e vivera.
Roberto Carreiras participou desde 1983 nas Feiras de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz, bem como nas exposições de presépios promovidas anualmente pelo Museu Municipal. Aí esteve também patente ao público, entre Agosto e Novembro de 2006, a sua exposição “Artesanato de Roberto Carreiras”, integrada no conjunto de eventos que visavam assinalar os 80 anos de elevação de Estremoz à categoria de cidade. Em Maio de 2008, trabalhou ao vivo no mesmo local, participando na actividade “VIRVER MUSEUS”.
Roberto Carreiras e a esposa Rosa Mariana Machado, com quem casou em 1965, concederam-me há muito tempo, o privilégio da sua amizade, pelo que era sempre um prazer falar com eles no decurso das Feiras em Estremoz, no que era igualmente correspondido.
Num momento que é de luto para toda a Família, não posso deixar de formular aqui e com intenso pesar, as minhas sentidas condolências pela partida do seu ente querido.
A preservação da Memória
Roberto Carreiras partiu, mas deixou-nos um legado que urge preservar para memória futura. Creio que a Junta de Freguesia de Veiros tem motivação e meios para musealizar o seu espólio e decerto não deixará de o fazer. Pessoalmente, orgulho-me de as minhas colecções de Arte Pastoril integrarem especímenes afeiçoados pelas suas mãos, que comandadas pela sua alma de visionário, nunca se renderam à rudeza do uso do cajado e do mester de vaqueiro. Foram mãos hábeis que aliadas a um espírito sensível, conseguiram filigranar e esculpir os materiais com mestria. Para que conste na nossa memória colectiva, aqui fica o registo do meu testemunho, o qual finalizo, proclamando:
- ROBERTO CARREIRAS, PRESENTE!
Aproveito ainda para aqui sugerir à Junta de Freguesia de Veiros que numa próxima atribuição de topónimos a ruas da Vila, seja contemplada a proposta: RUA ROBERTO CARREIRAS (Artista Popular).
Requiem pela Arte Pastoril
Em 1983, decorreu em Estremoz, entre 15 e 17 de Julho, A I Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz. Tratou-se de uma excelente feira, concretizada apenas com “prata da casa”. Identificados de uma forma mais ou menos evidente com a Arte Pastoril, encontravam-se ali 10 participantes: António Joaquim Amaral, Jacinto Lagarto Oliveira, Joaquim Carriço (Rolo), Joaquim Manuel Velhinho, José Carrilho (Troncho), José Francisco Chagas, José Joaquim Vinagre, Manuel do Carmo Casaca, Roberto Carreiras, Teresa Serol Gomes.
Desde então, nunca ninguém com responsabilidades no cartório, equacionou um Plano de Salvaguarda da Arte Pastoril, ainda que circunstancialmente possa vir a chorar lágrimas de crocodilo.
Após o passamento de Roberto Carreiras, restam José Joaquim Vinagre e Joaquim Carriço (Rolo), do segundo dos quais está prevista uma exposição no Museu Municipal. A partir daí, fica em aberto a celebração de um Requiem pela Arte Pastoril.
Aqui fica o aviso de alguém que não se cala e que nunca se rende. É a crónica anunciada de mais uma tragédia cultural que se avizinha.
Publicado pela 1º vez em 8 de Fevereiro de 2017

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A eternidade do casamento na arte pastoril alentejana

 

Binómio colher-garfo. Arte pastoril de Manuel Cardoso. 
Amieira do Tejo. Colecção Victor Tavares Santos.

Os corações patentes nos cabos dos talheres, sugerem que eles se amam um ao outro, porventura por que se complementam funcionalmente nas refeições e não podem passar um sem o outro. Daí que o pastor de Amieira do Tejo, os tenha ligado num aro, como se de uma aliança de casamento se tratasse. Subjacente a mensagem da eternidade do casamento.

Hernâni Matos

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Arte pastoril alentejana e Exposição do Mundo Português

 

Colher em madeira. Artefacto de arte pastoril alentejana da autoria de Joaquim Teodoro da Cruz. Orada, 1940.

Há alguns anos atrás, em conversa  amiga e habitual com o artesão oradense João Catarino, foi-me dito por este que estava à venda num antiquário de Borba, uma colher antiga em madeira, bordada com a imagem de Nossa Senhora [1]. Disse-me ainda, mais ou menos isto: “O professor é coleccionador, mas se não a comprar, compro-a eu, que aquilo é coisa antiga, feita por alguém da minha terra”. Como não deixo os meus créditos por mãos alheias, lá fui ao antiquário para “abrir os cordões à bolsa” e comprar a linda colher, cuja descrição passo de imediato a fazer.

Colher de madeira com 17 cm de comprimento, em cujo cabo encimado por uma cruz, figura a imagem lavrada de Nossa Senhora da Orada. Junto à base do manto, as iniciais "JT" do artesão Joaquim Teodoro da Cruz [2], inscritas num coração, o que decerto simbolizará a devoção do artista popular por aquela imagem de Nossa Senhora.

Próximo da zona de ligação do cabo à concha, as inscrições "ORADA" e "1940", distribuídas por duas linhas.

1940 foi o ano da "Exposição do Mundo Português", que teve lugar de 23 de Junho a 2 de Dezembro de 1940. Foi um evento realizado em Lisboa durante o regime do Estado Novo, com o propósito de comemorar simultaneamente as datas da Fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640).

ORADA é a aldeia da naturalidade de Joaquim Teodoro da Cruz, que terá participado na Exposição na qualidade de artesão.

A vila de Orada participou em 30 de Junho desse ano no “Cortejo Histórico do Mundo Português” (https://www.youtube.com/watch?v=yZg3f-4NXac), o qual teve lugar no recinto da Exposição e foi criado e encenado por Henrique Galvão.

A vila da Orada ficara, de resto, classificada em 2.º lugar no concurso "A aldeia mais portuguesa de Portugal"(https://books.openedition.org/etnograficapress/569), organizado em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). A apresentação da vila da Orada ao júri do concurso, decorreu a 2 de Outubro de 1938 e pode ser visualizada no extracto do filme "A Aldeia mais Portuguesa de Portugal" (https://www.facebook.com/watch/?v=1103185636453994), realizado por António de Menezes, em 1938. 


[1] Nossa Senhora da Orada é Padroeira da Freguesia da Orada no concelho de Borba e é venerada na Igreja de Nossa Senhora da Orada, que segundo a tradição terá sido fundada pelo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, o qual no local terá orado antes de partir para a Batalha dos Atoleiros, da qual o exército português saiu vitorioso. De salientar que o condestável era o donatário daquelas terras e a Igreja já aparece referenciada no século XVI.

[2] A identificação do autor a partir das iniciais foi feita após conhecimento de outra colher, identificada por Vitor Tavares Santos (https://www.facebook.com/photo/?fbid=10212487299973993&set=g.1505900599500258), o qual conheceu o artesão quando vivia em Cacilhas no andar superior do antigo Quartel de Bombeiros. A Vitor Tavares Santos os meus agradecimentos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

CICLO DA CORTIÇA - Uma jóia de arte pastoril alentejana

 


Fig. 1

Guardador de memórias de arte pastoril alentejana, sob a epígrafe QUANDO A CORTIÇA SE TRANSFORMA EM ARTE, publiquei recentemente no Facebook, as imagens de 3 quadros em cortiça, pertencentes ao meu acervo de arte pastoril alentejana, os quais mereceram o apreço generalizado de amigos e seguidores.

Uma dessas pessoas foi a minha estimada amiga Manuela Mendes, que há muito assumiu o Compromisso de Salvaguarda da Memória da Fábrica Robinson de Portalegre, que muito justamente considera a verdadeira JOIA da COROA de Portalegre. Como comentário à terceira publicação que eu fiz dos meus quadros de cortiça, perguntou:

- “E este Prof? Um dos muitos exemplares de grande formato feito em Portalegre na primeira metade do séc. XX.”

Referia-se a uma folha de calendário para os meses de Maio e Junho de 1963, impresso em aglomerado de cortiça e editado pela Fábrica Robinson de Portalegre (Fig. 2).
A minha resposta foi a seguinte:

Manuela:

Este quadro (Fig. 1) é de tal maneira extraordinário, que se situa num patamar superior a tudo aquilo que me é dado conhecer.

A moldura é em cortiça.

A orla que ladeia interiormente a moldura é um autêntico filigrana do mesmo nobre material.

O tema do quadro é o registo etnográfico do “Ciclo da cortiça” nas suas diferentes fases em tempos de antanho, com a particularidade de os intervenientes no ciclo estarem representados por figurinhas esculpidas em madeira.
Onde parará esta jóia da arte pastoril alentejana? Quem terá sido o seu criador? São duas perguntas (im)pertinentes, que ficam à espera de resposta.

Se me autorizar a reproduzir a imagem e se não se importar, após adaptação publicarei o presente texto no meu blogue.

Bem-haja. Um forte abraço deste caminheiro e guardador de memórias da arte pastoril alentejana, que admira todo o seu trabalho em prol da preservação da Memória da Fábrica Robinson de Portalegre.

E a autorização chegou.

Hernâni Matos


Fig. 2

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Juramento de fidelidade



Aqui me assumo como guardador de memórias que procura salvaguardar e preservar o registo material das marcas identitárias desta terra transtagana de antanho, patente nos utensílios de uso corrente de campaniços - servos da gleba, os quais comeram o pão que o diabo amassou, em épocas não muito remotas, que desejo não se voltem a repetir, dado o sofrimento que causaram.
Colecciono arte pastoril. Pois, claro!
Publicado em 12 de Setembro de 2024

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Entrevista sobre o 25 de Abril, concedida ao jornal E, de Estremoz

 


Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”

No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.

Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?

A NÍVEL DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; -  A constatação de que havia crianças que iam descalças para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; - A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade diária de gorilas, que eram ex-militares das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir, impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar o caso de haver bufos (informadores) na vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de 14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no Estado Novo, regime de partido único: a UN - União Nacional.

Esteve na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?

Ingressei na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de 1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis. Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda, participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações, greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto, mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974 pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.

Nas eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas pela UN - União Nacional, liderada por Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da Oposição.

Sentiu, na altura que a ditadura tinha os dias contados?

Apesar da repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento Militar das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam.  Bem hajam por isso!

Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?

Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias.  A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.

Olhando para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a democracia que tivemos em Portugal?

A avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa transição: as Forças Armadas Portuguesas.

O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do MFA - Movimento das Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército, instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do denominado Movimento dos Capitães, o qual aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3 frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela previsibilidade de uma derrota militar iminente.

No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na prisão.” E mais adiante: “Foi então que Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.

A chamada Revolução dos cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo fora.

Que impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?

Em 1º lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em 2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades, teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o exercício da cidadania.

Um pouco por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve. Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser consignadas na Constituição da República Portuguesa.

O 25 de Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).

Como foi para si o período que se seguiu à Revolução?

O período pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo Revolucionário em Curso foi marcado por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de 6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de 1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2 do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil, legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA

Teve, nessa altura, alguma militância ou intervenção política?

Logo a seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos professores na Escola Secundária de Estremoz.

A nível político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me identificava com a CDE - Comissão Democrática Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o 25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz, participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral e se registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974, se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves. Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU – Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos, até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre foi e continua a ser a minha grande motivação.

E que avaliação faz da democracia que temos na actualidade?

A democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na prática não é bem assim.

Qual o estado da democracia em Portugal?

A democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego, trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade, salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação, especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice, Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a esmagadora maioria das pessoas.

50 anos depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos. 

Hernâni Matos