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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

NA JANELA DO TEMPO


 Novo livro de Georgina Ferro apresentado

na Sociedade de Artistas Estremocense

Reportagem de Hernâni Matos. Fotografias de Manuel Xarepe


João Ferro na abertura da sessão. Na mesa: Fernando Mão de Ferro, Georgina Ferro
e Hernâni Matos. 

Um aspecto da assistência.

A Sessão de apresentação
Com o Salão de Festas da Sociedade de Artistas Estremocense literalmente cheio, teve lugar a partir das 16 horas e 30 minutos do passado dia 28 de Setembro, a sessão de lançamento e apresentação do livro “NA JANELA DO TEMPO / TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO”, da autoria de Georgina Ferro, editado em Julho passado pelas edições Colibri, com uma tiragem de 500 exemplares.
A sessão foi coordenada por Fátima Crujo e a intervenção de abertura coube a João Ferro, Presidente da Direcção. Na Mesa encontravam-se o editor do livro, Fernando Mão de Ferro, Hernâni Matos e a autora, que falaram por esta ordem.
Coube a Hernâni Matos fazer a apresentação formal da obra, finda a qual solicitou uma calorosa salva de palmas para a autora, que agradeceu emocionada. Seguiu-se a leitura de excertos de estórias do livro pela filha Sónia Ferro e pelos netos Clara Ferro e Tiago Ferro. No final, a autora autografou o livro para o muito público presente.


Hernâni Matos fazendo a apresentação formal da obra.

A filha Sónia Ferro, lendo um excerto do livro.

Os netos Clara e Tiago Ferro, lendo passagens do livro.

A autora Georgina Ferro, autografando o livro.

A autora
A autora, professora aposentada do 1º ciclo, é natural de Manteigas, onde nasceu a 8 de Dezembro de 1948, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição. Daí que, segundo diz, se tenha sentido “sempre abençoada e protegida por todas as mães: a Mãe Natureza, a Mãe Celestial e a Mãe da Terra”. A autora revela-nos que repartiu o tempo de infância ente Manteigas, Aldeia do Bispo (Sabugal) e Covilhã. Frequentou a Instrução Primária até à 3ª classe em Aldeia do Bispo (Sabugal) e a 4ª classe em Manteigas. Ingressou depois no Ensino Liceal no Colégio de Nossa Senhora Auxiliadora, no Monte Estoril. Em 1967 ingressou na Escola do Magistério Primário de Évora e terminado o Curso, começou a leccionar o Ensino Primário no ano de 1969 em Rosário (Alandroal), a que se seguiram Veiros, Selmes (Vidigueira), Aldeia da Serra e Glória, onde leccionou 32 anos, até se aposentar em 2003.
Fixou-se em Estremoz em 1972 e aqui casou e teve 3 filhos: Sónia, Pedro e Inês. Sem nunca ter perdido os laços afectivos à terra natal e aos territórios da sua infância, Georgina é cumulativamente uma estremocense adoptiva, que tem participado activamente na vida social da Comunidade em múltiplos aspectos: educativos, cívicos e culturais.
Conheço seguramente a Georgina desde o início do exercício do Magistério Primário na Freguesia da Glória, da sua ligação à Comunidade, do seu reconhecimento por parte da mesma e do seu amor às coisas campaniças.
Lembro-me de partilhar há muito com a Georgina uma grande admiração pelo “Ti Rolo” da Aldeia de Cima (Glória), que exercia sobre nós um fascínio incomensurável, pela sua oralidade transbordante e pelos artefactos de arte pastoril nascidos das suas mãos mágicas, nos quais projectava toda a imaginária popular, lavrada em chifres e paus sabiamente escolhidos.
Lembro-me do nascimento da sua filha Sónia e tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano do seu filho Pedro. Foi uma experiência encantadora, pois além do Pedro ser um aluno fortemente motivado, eu tive oportunidade de pôr em prática o método de ensino-aprendizagem personalizado, preconizado por muitos pedagogos. É que o Pedro era o único aluno da turma. Nenhum de nós deixou os seus créditos por mãos alheias e a experiência pedagógica foi um êxito.
Lembro-me do envolvimento da Georgina no Projecto Serra de Ossa, desde o início, no tempo da liderança de Gil Malta e de ela ter participado em 1998, conjuntamente com outros professores, entre os quais eu me incluo, nas “Segundas Jornadas da Serra d’Ossa”, levadas a efeito na Escola Secundária da Rainha Santa Isabel. A sua bem-sucedida intervenção oral nessas jornadas, foi o embrião dos seus primeiros livros, publicados ambos em 2005: “Plantas Medicinais da Serra d'Ossa” e “Por um Amanhã Mais Verde, Mezinhas Caseiras com Plantas da Serra d'Ossa”.
Em Setembro de 2012, a Georgina concedeu-me o privilégio de participar na apresentação pública do meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”, o que muito me congratulou.
Em Dezembro de 2013 a Georgina brindou-nos com o lançamento do seu livro de poesia “O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL”, editado pela Colibri, o qual foi apresentado na Casa de Estremoz pela Maria do Céu Pires e pela Francisca de Matos.
Desta feita, coube-me a mim fazer a apresentação formal do seu mais recente livro “NA JANELA DO TEMPO / TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO”, na sequência do convite que me foi endereçado pela autora e que eu gostosamente aceitei.


A obra
Fisicamente é um livro brochado, de 22,8 x 16 cm e 236 páginas, dado à estampa pelas prestigiadas Edições Colibri de Fernando Mão de Ferro. Tem capa a cores de Raquel Ferreira, gizada a partir de fotografia de Abel Cunha. Na primeira badana figura uma pequena biografia e a fotografia da autora e na segunda badana, um excerto de uma das estórias do livro. Este tem prefácio de José Carlos Lage, o qual confessa que é “Fácil e ao mesmo tempo difícil” falar das poesias e das crónicas de Georgina. Por sua vez, em posfácio impresso na contracapa, Francisca de Matos afirma e muito bem, que “Esta obra é, sobretudo, uma grande lição de vida, um legado que não deve, não pode ser esquecido”.
O livro é um livro de estórias ou não fosse Georgina, para além de notável poetisa, uma extraordinária contadora de estórias. Não estórias quaisquer, nem tão pouco inventadas ou arquitectadas, mas estórias reais ocorridas no tempo da sua infância, repartida entre Manteigas, Aldeia do Bispo (Sabugal) e Covilhã.
São estórias com personagens reais, de carne e osso, como o Ti Júlio, a Ti Mariana, a Senhora Isabel Augusta, o Ti Zé Ramos, a Menina Zéfinha, o tio António Pantalona, o tio Zé Manso e não sei quantos mais, numa infinidade numerável que não consegui quantificar. São eles que constituem aquilo que com orgulho, Georgina chama “A Minha Gente”.
São estórias contadas e redigidas numa escrita fluida e ágil, eficaz na pintura descritiva das paisagens rurais e do interior das casas aldeãs. Escrita que é também uma partilha intimista das emoções e sentimentos dos personagens, incluindo Georgina, também ela própria, personagem por direito próprio e inalienável. Tudo sempre minuciosamente filigranado ao pormenor, numa linguagem rica, valorizada pelo uso de vocábulos regionais, cujo sentido, se necessário pode ser decifrado num glossário que antecede o índice final.
São estórias do tempo em que nas aldeias se tocavam as Trindades.
As hortas eram regadas com água tirada das noras e das picotas. Comia-se daquilo que a terra dava e em situações de carência havia partilha e entreajuda ente vizinhos e familiares. Todavia, a falta de dinheiro para bens de mercearia e para comprar entre outras coisas, petróleo para alumiar, levavam alguns, mais aflitos e mais afoitos, a entrar no contrabando através da raia de Espanha ou a dar o salto para França.
Apesar de tudo ou talvez por isso, rezava-se a Deus, à Mãe de Jesus, ao Anjo da Guarda e a Santo Antão para proteger o gado.
A menina Zefinha andava de taleigo à cabeça, a ti Mariana remendava as ceroulas do Ti Júlio e a ti Neves do Ti Júlio punha-lhe ventosas e papas de linhaça, a ver se ele arribava.
A roupa era cosida, remendada e transformada, passando dos mais crescidos para os mais pequenos. O pão era amassado de tarde para ficar a dormir à noite e os mais velhos davam a bênção aos mais novos antes destes adormecerem.
Isto e muito mais, são registos de memórias de tempos idos dos personagens do livro. Tempos e vivências difíceis e duras, mas também de afectos, partilhas e tradições numa Comunidade onde Georgina nasceu e cresceu, com a qual se identifica e que pela mesma é reconhecida e idolatrada.
Georgina é, pois, uma guardadora de memórias, muitas delas guardadas no presente livro e que por serem reconhecidas pela Comunidade que a viu nascer e crescer, integram a memória colectiva local e contribuem com a sua quota parte para a memória colectiva regional e para a memória colectiva nacional.
É a memória colectiva que nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.
Daí a importância de que se reveste o livro, cuja leitura vivamente recomendo.

Hernâni Matos

domingo, 29 de setembro de 2024

Pim! Onde é que já se viu uma Georgina assim?

 

Na mesa, da esquerda para a direita: Fernando Mão de Ferro (Edições Colibri).
Georgina Ferro (autora) e Hernâni Matos (apresentador).
Fotografia de Maria Helena Figueiredo.


Apresentação do livro
de Georgina Ferro.
Sociedade de Artistas Estremocense.
Estremoz, 28 de Setembro de 2024.
Hernâni Matos

 


Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Senão houver objecções, a minha conversa convosco constará de três partes:
1 - Onde te vieste meter, Hernâni?
2 - Deixem-me lá agora falar do livro!
3 - E quanto a mim, que penso eu?
Vou então começar, pois embora a jornada não seja longa nem fastidiosa, daqui a bocado são horas de ir lanchar e ninguém esta autorizado a lanchar por mim.

Onde te vieste meter, Hernâni?
Se bem me lembro, conheço seguramente a Georgina desde o Tempo da Outra Senhora. Do exercício do Magistério Primário na Freguesia da Glória, da sua ligação à Comunidade, do seu reconhecimento por parte da mesma e do seu amor às coisas campaniças.
Lembro-me de partilhar há muito com a Georgina uma grande admiração pelo “Ti Rolo” da Aldeia de Cima, que exercia sobre nós um fascínio incomensurável, pela sua oralidade transbordante e pelos artefactos de arte pastoril nascidos das suas mãos mágicas, nos quais projectava toda a imaginária popular, lavrada em chifres e paus sabiamente escolhidos.
Lembro-me do nascimento da sua filha Sónia e tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano do seu filho Pedro. Foi uma experiência encantadora, pois além do Pedro ser um aluno fortemente motivado, eu tive oportunidade de pôr em prática o método de ensino-aprendizagem personalizado, preconizado por muitos pedagogos. É que o Pedro era o único aluno da turma. Nenhum de nós deixou os seus créditos por mãos alheias e a experiência pedagógica foi um êxito.
Lembro-me do envolvimento da Georgina no Projecto Serra de Ossa, desde o início, no tempo da liderança de Gil Malta e de ela ter participado em 1998, conjuntamente com outros professores, entre as quais este vosso amigo, nas “Segundas Jornadas da Serra d’Ossa”, levadas a efeito na Escola Secundária da Rainha Santa Isabel. A sua bem-sucedida intervenção oral nessas jornadas, foi o embrião dos seus primeiros livros, publicados ambos em 2005:
- Plantas medicinais da Serra d'Ossa
- Por um Amanhã Mais Verde, Mezinhas caseiras com Plantas da Serra d'Ossa
Em Setembro de 2012, a Georgina concedeu-me o privilégio de participar na apresentação pública do meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”, o que muito me congratulou.
Em Dezembro de 2013 a Georgina brindou-nos com o lançamento do seu livro de poesia “O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL”, editado pela Colibri, o qual foi apresentado na Casa de Estremoz pela Maria do Céu Pires e pela Francisca de Matos.
Passados estes anos todos, estas nossas amigas resolveram não reincidir e passaram-me o testemunho, pelo que à falta de melhor, aqui estou eu, de peito descoberto, a apresentar o livro que está na ordem do dia, o livro da autoria da nossa amiga Georgina, que em boa hora aqui nos trouxe.
Tudo estaria bem se a Francisca de Matos, ignorando que sou um pés de chumbo, não me tivesse proposto entrar nesta dança, aqui mesmo neste belo salão da Sociedade Artistas Estremocense, onde actualmente até se dão aulas de dança. Vamos lá a ver se não me espalho ou não brindo alguém com uma pisadela mestra.

Deixem-me lá agora falar do livro!
Está aqui à vossa vista. Fisicamente é um livro brochado, de 22,8 x 16 cm e 236 páginas. O seu título é NA JANELA DO TEMPO – TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO – BEIRA INTERIOR e a autora, claro está, é a nossa amiga Georgina. O livro foi dado à estampa 78 prestigiadas Edições Colibri de Fernando Mão de Ferro e tem capa a cores de Raquel Ferreira,78 gizada a partir de fotografia de Abel Cunha. Na primeira badana figura a biografia e a fotografia da autora e na segunda badana, um excerto de uma das estórias do livro. Este tem prefácio de José Carlos Lage, o qual confessa que é “Fácil e ao mesmo tempo difícil” falar das poesias e das crónicas de Georgina. Por sua vez, em posfácio impresso na contra-capa, Francisca de Matos afirma e muito bem, que “Esta obra é, sobretudo, uma grande lição de vida, um legado que não deve, não pode ser esquecido”.

E quanto a mim, que penso eu?
O livro é um livro de estórias ou não fosse Georgina, para além de notável poetisa, uma extraordinária contadora de estórias. Não estórias quaisquer, nem tão pouco inventadas ou arquitectadas, mas estórias reais ocorridas no tempo da sua infância, repartida entre Manteigas, Aldeia do Bispo - Sabugal e Covilhã.
São estórias com personagens reais, de carne e osso, como o Ti Júlio, a Ti Mariana, a Senhora Isabel Augusta, o Ti Zé Ramos, a Menina Zéfinha, o tio António Pantalona, o tio Zé Manso e não sei quantos mais, numa infinidade numerável que não consegui quantificar. São eles que constituem aquilo que com orgulho, Georgina chama “A Minha Gente”.
São estórias contadas e redigidas numa escrita fluida e ágil, eficaz na pintura descritiva das paisagens rurais e do interior das casas aldeãs. Escrita que é também uma partilha intimista das emoções e sentimentos dos personagens, incluindo Georgina, também ela própria, personagem por direito próprio e inalienável. Tudo sempre minuciosamente filigranado ao pormenor, numa linguagem rica, valorizada pelo uso de vocábulos regionais, cujo sentido, se necessário pode ser decifrado num glossário que antecede o índice final.
São estórias do tempo em que nas aldeias se tocavam as trindades.
As hortas eram regadas com água tirada das noras e das picotas. Comia-se daquilo que a terra dava e em situações de carência, havia partilha e entreajuda ente vizinhos e familiares. Todavia, a falta de dinheiro para bens de mercearia e para comprar entre outras coisas, petróleo para alumiar, levavam alguns, mais aflitos e mais afoitos, a entrar no contrabando através da raia de Espanha ou a dar o salto para França.
Apesar de tudo ou talvez por isso, rezava-se a Deus, à Mãe de Jesus, ao Anjo da Guarda e a Santo Antão para proteger o gado.
A menina Zefinha andava de taleigo à cabeça, a ti Mariana remendava as ceroulas do Ti Júlio e a ti Neves do Ti Júlio punha-lhe ventosas e papas de linhaça, a ver se ele arribava.
A roupa era cosida, remendada e transformada, passando dos mais crescidos para os mais pequenos. O pão ara amassado de tarde para ficar a dormir à noite e os mais velhos davam a bênção aos mais novos antes destes adormecerem.
Isto e muito mais são registos de memórias de tempos idos dos personagens do livro. Tempos e vivências difíceis e duras, mas também de afectos, partilhas e tradições numa comunidade onde Georgina nasceu e cresceu, com a qual se identifica e que pela mesma é reconhecida e idolatrada.
Georgina é, pois, uma guardadora de memórias, muitas delas guardadas no presente livro e que por serem reconhecidas pela comunidade que a viu nascer e crescer, integram a memória colectiva local e contribuem com a sua quota parte para a memória colectiva regional e para a memória colectiva nacional.
É a memória colectiva que nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.
Daí a importância de que se reveste o livro NA JANELA DO TEMPO – TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO – BEIRA INTERIOR, da autoria de Georgina, o que me leva a proclamar:
- PIM! ONDE É QUE SE VIU UMA GEORGINA ASSIM?
Para a Georgina peço uma calorosa salva de palmas.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 29 de Setembro de 2024


segunda-feira, 22 de julho de 2024

No tempo em que não havia “Barbies”






BONECAS DE TRAPO
(Colecção Hernâni Matos)

No tempo em que não havia “Barbies”, as crianças brincavam com bonecas de pano, vulgo “bonecas de trapo”, feitas por uma mulher da Família, aproveitando retalhos de tecidos que tinham sobrado da confecção de peças de vestuário. Havia ainda a possibilidade de aproveitar peças de vestuário que tinham caído em desuso, porque estavam puídas, rotas, rasgadas ou desbotadas.

Com uma tal manufactura, a mulher da Família (mãe, avó, tia ou irmã) dava à criança a quem a boneca era destinada, três grandes lições:

- A primeira era uma lição de economia circular, já que havia o reaproveitamento de tecidos que havia sido abatidos ao serviço, mas que assim continuavam a ter préstimo. A criança ficava assim a perceber a importância do combate ao desperdício;

- A segunda era uma lição de amor, dada pela mulher da Família à criança que a recebia, o que contribuía para o reforço dos laços inter-geracionais;

- A terceira lição era uma lição de pedagogia. já que a dádiva constituía um incentivo ao brincar, actividade insubstituível na formação e socialização da criança.

Nem sempre o passado foi melhor que o presente, mas em muitos casos foi e há contextos que podem ser apontados como exemplos a seguir. É o caso das “bonecas de trapo”, aqui apresentado como paradigma.

 Hernâni Matos

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade - III


Francisco Cortes na corrida de 20 anos de alternativa. Praça de Touros de
Estremoz. 5 de Setembro de 2015.


Há uma esquerda residual, mais da rua da Palma, que da Soeiro Pereira Gomes ou do Largo do Rato. É uma esquerda que em nome dos direitos dos animais, se manifesta contra as touradas. Está no seu direito. E exerce-o ao melhor estilo taurino, farpeando aficionados como eu.
Foi na condição de aficionado, que nos nºs 132 e 133 deste jornal, defendi a Candidatura das Touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
É sabido que é meu timbre o rigor que ponho em tudo aquilo que escrevo. Os meus textos são antecedidos de pesquisa cruzada de informação que me permita não errar. Essa a minha aposta permanente.
A leitura atenta da CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL, aprovada a 17 de Outubro de 2003, pela Conferência Geral da UNESCO reunida em Paris, permitiu-me concluir que as Candidaturas a Património Cultural Imaterial da Humanidade devem dizer respeito a  património cultural imaterial, transmitido de geração em geração e que no caso das touradas em Portugal remonta à Idade Média. Esse património cultural imaterial não pode violar os direitos humanos e por outro lado, as artes do espectáculo nas quais se integram as touradas, são consideradas pela UNESCO como património cultural imaterial.
Insinuar que os dois textos aqui publicados anteriormente são fruto de sonhos delirantes ocorridos durante a “silly season”, é simplesmente infame e revela a ligeireza com que o assunto foi abordado. Para quem não saiba, a “silly season” é um anglicismo que designa o período de verão, em que como há falta de notícias importantes, os critérios de selecção jornalísticos tornam-se mais flexíveis, sendo dado relevância a assuntos que, de contrário não a teriam.
Este jornal é um espaço de liberdade e de cidadania e por isso como homem livre sou seu colaborador. Nunca me foi encomendado nem recusado nenhum texto e a iniciativa do mesmo foi sempre minha.
As touradas não são um tema frívolo ou estúpido, são um tema fracturante na sociedade portuguesa, como o mostra a verbosidade dos defensores dos direitos dos animais.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade - II


Imagem recolhida em http://arpose.blogspot.pt/

No número anterior deste jornal, defendi a candidatura das touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade, o que deixou algumas pessoas perplexas, por pensar que tal proposta não era compatível com o conceito de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

O que diz a UNESCO
Para a compreensão do conceito de Património Cultural Imaterial, há que ter em conta a CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL, aprovada a 17 de Outubro de 2003, pela Conferência Geral da UNESCO reunida em Paris. A Convenção no seu Capítulo I – DISPOSIÇÕES GERAIS, tem dois artigos que importa aqui destacar: “ARTIGO 1º: FINALIDADES DA CONVENÇÃO. As finalidades da presente Convenção são: (a) a salvaguarda do património cultural imaterial; (b) o respeito do património cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos; (c) a sensibilização a nível local, nacional e internacional para a importância do património cultural imaterial e da sua apreciação recíproca; (d) a cooperação e assistência internacionais. ARTIGO 2º: DEFINIÇÕES. Para efeitos da presente Convenção, 1. Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e competências – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, grupos e, eventualmente, indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural. Este património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio envolvente, da sua interacção com a natureza e da sua história, e confere-lhes um sentido de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito da diversidade cultural e a criatividade humana. Para efeitos da presente Convenção, só será tomado em consideração o património cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos existentes, bem como com a exigência do respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e de um desenvolvimento sustentável. 2. O “património cultural imaterial” tal como é definido no parágrafo I supra, manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios: (a) tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; (b) artes do espectáculo; (c) práticas sociais, rituais e actos festivos; (d) conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo; (e) técnicas artesanais tradicionais.”

As touradas em Portugal
O toureio a cavalo remonta à Idade Média, como nos relata Fernando Teixeira no seu livro TOUROS EM PORTUGAL – UM PATRIMÓNIO HISTÓRICO, ARTÍSTICO E CULTURAL, dado à estampa em 1992, pelos Correios de Portugal. As touradas incluem-se nas artes do espectáculo e as suas práticas têm sido transmitidas de geração em geração, encontrando-se registadas ao longo dos séculos na literatura portuguesa, como bem documenta a antologia: O MUNDO DO TOUREIO NA LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA, editada pela Portugália em 1966, com selecção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues. Aí se toma conhecimento de que no âmbito da POESIA, a tauromaquia foi abordada sucessivamente por autores como: João Roiz de Castel Branco, Nicolau Tolentino, Alexandre da Conceição, António Nobre, Mário Beirão, Carlos Queiroz e Azinhal Abelho. No domínio da PROSA daquela temática, regista-se a existência de autores como Almeida Garrett, Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão, Marcelino Mesquita, Abel Botelho, Fialho de Almeida, João Viegas de Paulo Nogueira, Manuel Teixeira Gomes, Trindade Coelho, Augusto de Castro, Norberto de Araújo, Noel Teles, Sousa Costa, Mário Domingues, Augusto Casimiro, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Alves Redol, Fernando Reis e Miguel Urbano Rodrigues. A nível do TEATRO há a referir autores como Júlio Dantas e Bernardo Santareno.

Uma proposta que faz sentido
De acordo com o exposto, faz todo o sentido, a defesa da candidatura das touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade. De resto, existem que eu saiba, 40 municípios com tradições taurinas, que constituem uma secção da Associação Nacional de Municípios, alguns dos quais já declararam as touradas como Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal. É o primeiro passo no sentido de concretização da candidatura a apresentar à UNESCO.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Touradas a Património Cultural Imaterial da Humanidade - I


Fotografia recolhida em  www.oribatejo.pt


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As touradas
Quando era miúdo, o meu avô Manuel Alturas, ferroviário aposentado, republicano e amante da Festa Brava, levava-me aos touros e comprava rebuçados que comíamos durante a corrida. Eu ficava encantado com o ritual das cortesias e o evoluir elegante do ginete de Mestre João Branco Núncio, a quem os mais velhos chamavam “O Califa de Alcácer”.
Quando ia às touradas usava calças de cós alto e jaqueta que o meu pai, alfaiate de lavradores e de toureiros, confeccionara para mim. Um pequeno chapéu à Mazantino completava os meus adereços. Desse tempo, guardo como relíquia, a minúscula jaqueta que levava às touradas.
O cavalinho de pau
Nos anos cinquenta do século passado, eram frequentes, em Estremoz, o carro de tracção animal, os trens e as caleches, bem como o próprio acto de montar a cavalo. Natural era, pois, que eu, habilitado com as asas da minha imaginação, sonhasse em ser cavaleiro. E fazia-o, brincando com o meu cavalinho de pau, o qual durante muito tempo foi a vassoura de cabo alto, lá de casa.
Nas minhas cavalgadas, fazia como o “Califa de Alcácer”. Por vezes mudava de montada e passava a cavalgar a cana de caiar.
Certo dia, a minha mãe, farta das minhas traquinadas com os utensílios domésticos, acabou por me comprar um cavalinho de pau, mesmo a sério, com cabeça de cavalo, crinas, arreios e tudo. E logo que o estreei, como ele não dizia nada, com todo o meu contentamento fui eu próprio que relinchei por ele, o que emprestou mais realismo à minha representação. E sabem que mais? Quando montava o meu corcel, usava sempre um barrete feito de papel de jornal, que o meu avô me ensinara a fazer numa tourada, quando me esqueci de levar o meu chapéu à Mazantina.
O meu barrete de papel era um acessório importante. Quando fazia de militar a cavalo, usava o barrete posto de trás para diante e uma espada de madeira presa no cinto das calças. Já quando era cavaleiro tauromáquico, punha o barrete de papel atravessado na cabeça e usava um pau a fazer de farpa. Mas nada de usar jaqueta ou chapéu à Mazantina, porque isso era só nos dias de festa.
As minhas representações equestres eram diversificadas, iam do trote ao galope, passando pelo volteio. Nelas, na minha imaginação, eu era sempre um garboso cavaleiro montado num puro-sangue de Alter, que cavalgava horas a fio no Largo do Espírito Santo. Acontecia às vezes que uma tourada ficava a meio do seu curso ou, o que era bem pior, não conseguia concretizar uma carga de cavalaria. Sabem porquê? É que a minha mãe aparecia à janela a gritar:
- “Hernâni anda para a mesa, que são horas de comer!”
E eu não resistia à chamada, porque com tanta cavalgada, já tinha a barriga a dar horas.
Aficionado de gema
Como devem ter percebido, aprendi a gostar de touradas como o meu avô e ainda hoje sou aficionado. Reconheço que as touradas estão muito para além do mundo taurino: ganadeiros, campinos, forcadagem, cavaleiros, toureiros, bandarilheiros, apoderados e empresários. É minha firme convicção que as touradas estão na massa do sangue do Zé Povinho e integram a Cultura Popular deste país. Daí que tal como os chocalhos de Alcáçovas devam ser candidatadas a Património Cultural Imaterial da Humanidade. É caso para dizer:
- MÃOS À OBRA!
Todavia, há por aí pessoas que não gostam de touradas e que fazem campanha contra elas. Provavelmente irão atirar-se a mim, como gato a bofe. Lembro-lhes que as touradas são um espectáculo legal e que ninguém é obrigado a ir lá, tal como à missa ou ao futebol. O resto são filmes que se passam na cabeça deles. O que vale é que como nos diz o rifoneiro popular:
- VOZES DE BURRO NÃO CHEGAM AO CÉU.     


Fotografia recolhida em http://farpasblogue.blogspot.pt 

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Fotografia recolhida em http://corridatouros.blogspot.pt/

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Noite de Natal

 
Preparação da consoada. Ilustração de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970),
para bilhete-postal emitido pelos CTT.

Nos anos 50-60 do século passado, eu e os meus pais passávamos normalmente a noite da missadura em casa da minha tia Estrela, no nº 17, do Largo do Espírito Santo, em Estremoz. Fazíamos o lume de chão para nos aquecermos e para grelharmos a chouriça, o lombinho e o toucinho das sete carnes. O pingo que escorria das missaduras era cuidadosamente aparado com nacos de pão. Até dava para nos lambermos a comer pão assim.
Por cima das nossas cabeças, o fumeiro – espécie de enfermaria para os enchidos – onde luzidias e gulosas chouriças, morcelas e farinheiras ficavam a curar, aguardando a sua vez da gente se poder repimpar com elas.
Ti Manel Alturas, o meu avô materno, tocava ronca e com a sua voz esganiçada, cantava:

"Olha o Deus Menino
Nas palhas deitado,
A comer toicinho
Todo besuntado!"

A mesa estava posta para o ritual da comezaina da noite. Pão caseiro, fruta da época, arroz doce e bolos que as mulheres atarefadas preparavam durante todo o dia. Ele era a boleima, o bolo podre, o bolo de laranja, as filhoses, as azevias as argolinhas que os mais crescidos empurravam com vinho doce ou com vinho abafado, depois de termos despachado a chouriça, o toucinho e os lombinhos. Tudo acompanhado com brócolos ou couve-flor e regado com vinho da adega do Zé da Glória. E sabem o que vos digo? Não me lembro de alguma vez ter ouvido falar em colesterol.
Na lareira, crepitava o madeiro de Natal. Eu passava a noite a brincar ao pé do lume, a ouvir falar e cantar os mais velhos. Só saía dali cerca da meia noite quando me mandavam para a rua, ver o Pai Natal entrar pela chaminé. Durante muitos anos não consegui perceber a razão exacta pela qual, o bom do Pai Natal entrava precisamente na altura em que eu saía. Depois de ter percebido isto, os presentes minguaram a olhos vistos. Para vos falar disto é por que sei qual a diferença exacta que há entre os dois natais.

Publicado inicialmente a 5 de Janeiro de 2012

Texto adaptado do texto anterior "Memórias do Espírito Santo"

Carta ao Menino Jesus. Ilustração de Laura Costa (activa 1920-1950),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1942.

Cântico do Natal. Ilustração de Laura Costa (activa 1920-1950),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1942.

 
As Prendas do Menino Jesus. Ilustração de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1943.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A persistência do amor


Prato ratinho em faiança policroma com 30 cm de diâmetro.



Seguramente que aí pelos meus dez anos dos tempos de bibe e de pião, eu já coleccionava postais, selos, copos e pratos lindos, que empenhadamente pedia às mulheres da minha família e de famílias alheias. E que haviam elas de fazer senão dar-mos, quando o pedido brotava vigoroso e convincente da voz cristalina dum puto com cara de anjo e caracóis de querubim?
Foi assim que arranjei as minhas primeiras peças de colecção. Alguns dirão que pelintra e pedinchão com artes de sedutor, era o que eu era. Decerto que estão no seu direito de pensar assim. Todavia, para mim não era nada disso. Era um impulso incontido de possuir tudo aquilo que considerava belo.
Pela mesma época tive os meus primeiros desgostos de amor, quando por vezes, os objectos amados e venerados pela posse, se libertavam das minhas pequenas mãos e se transformavam em cacos. Aí, eu, nem padre nem cangalheiro, demorava anos até ser capaz de fazer o funeral das vítimas da minha falta de coordenação motora. Eram tragédias de sofrimento incontido que me marcavam profundamente, das quais ainda hoje me recordo com profunda tristeza, sempre que mentalmente regresso ao tempo e aos territórios da minha infância.
Hoje, mais de cinquenta anos volvidos, poucas coisas mudaram no essencial. Persistente e imutável permanece o meu amor desinteressado à beleza, apenas aprofundado pela experiência, pela sabedoria e pela “patine” que o tempo confere ao nosso saber fazer. O amor, esse continua mais forte do que nunca.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Livro de Leitura da Primeira Classe


Livro de Leitura da Primeira Classe

Há sessenta anos atrás
Sou duma geração que há sessenta anos atrás se iniciou na leitura, através do bem conhecido livro de leitura da 1ª Classe do Ensino Primário. Tratava-se de um livro profusamente ilustrado, com um grafismo que marcou uma época. Através dele aprendíamos a juntar as letras, formando sílabas, que reunidas geravam palavras, ali ilustradas, para o reforço visual apoiar a memorização.
Estávamos no Estado Novo, pelo que não é de admirar que doutrinariamente o livro veiculasse a Trilogia da Educação Nacional: “Deus, Pátria e Família”. O mesmo se passava com aqueles que se lhe seguiram até à 4ª classe.
Na Aritmética, decorávamos a tabuada até à casa do 10. Qualquer um de nós sabia de cor, o resultado de 100 operações de multiplicação, as quais iam desde o 1x1 até ao 10x10. Na aula, o professor passava-nos contas para fazer, o que era feito em lousas de ardósia nas quais escrevíamos com lápis de pedra. Era o “Magalhães” que Salazar e bem, punha à nossa disposição. Assim adquiríamos aptidão de cálculo mental e treinávamos o cálculo necessário à nossa vida do dia a dia.
Levávamos como trabalho para casa, fazer contas num caderno quadriculado, para disciplinar a escrita e a dimensão dos algarismos. E tínhamos sempre uma cópia para fazer, não só para aperfeiçoar a caligrafia, mas também porque a cópia ajudava à memorização. Para o efeito, usava-mos um caderno de linhas. Porém, aqueles que tinham uma escrita mais irregular faziam cópias em cadernos de duas linhas, para aprenderem a dimensionar as letras, até conseguirem ficar com uma caligrafia padrão.
Fazíamos também ditados, nos quais o professor nos lia pausadamente um texto relativamente curto, que nós tínhamos que escrever no caderno. Assim treinávamos a capacidade de converter a oralidade da língua na sua forma escrita. E acabava-mos por não dar erros.
Fazíamos ainda redacções com tema igual para todos, visando despertar e exercitar a capacidade criadora de cada um, bem como exercitar a correcção da ortografia e da caligrafia.
Fazíamos igualmente desenhos com lápis de carvão e lápis de cor, para o que utilizávamos um caderno de folhas lisas.
Os cadernos tinham geralmente na capa, ilustrações apelando ao amor à Pátria ou exaltando instituições gratas ao Regime, como era a Mocidade Portuguesa. Na capa do caderno, escrevíamos sempre o nosso nome, o número e a classe.
Tínhamos também um “caderno de significados”, que era um caderno de duas linhas com um traço vertical a vermelho, onde registávamos por indicação do professor, as palavras difíceis à esquerda do traço e o respectivo significado à direita.
Escrevíamos com canetas de molhar o aparo nos tinteiros que havia em cada carteira. Não se podia molhar de mais para não borrar. Ao virar a página, tínhamos que secar com um mata- borrão que trazíamos sempre dentro do caderno.
A caneta de molhar, os aparos, o lápis de carvão, os lápis de cor, o apara-lápis e a borracha eram guardados dentro duma caixa de madeira, com tampa de correr. Esta, conjuntamente com os cadernos, o livro de leitura e mais tarde outros livros, era transportada numa sacola de serapilheira que levávamos a tiracolo.

E hoje?
Pelos mais diversos motivos, algumas das práticas escolares atrás referidas foram abandonadas. Algumas naturalmente por serem obsoletas. Hoje não faz sentido escrever com canetas de molhar e provavelmente fazer contas em lousa de ardósia. Mas não é a posse e a utilização de um “Magalhães” que treina o cálculo mental e a prática das operações elementares, bem como a prática da caligrafia e a execução livre de desenhos.
Hoje já não se usam sacolas de serapilheira, mas mochilas à medida da bolsa dos pais de cada um. Aí o personagem principal é o “Magalhães” – Faz Tudo!
Já não é preciso saber fazer contas, basta ter o “Magalhães” ligado à Internet e fazem-se as contas no Google. Este motor de busca é a cabeça deles.
Fazer cópias para quê? Por um lado não precisam de memorizar nada e por outro lado basta utilizar o “Magalhães” e escrever no Word. Podem dar erros à vontade, que o Word assinala a vermelho os erros de ortografia e a verde os erros de sintaxe. Depois basta tirar uma cópia na impressora. Esta é a caneta deles.
A caligrafia é a que eles quiserem, é o tipo de letra que escolherem no Word, seja ela Areal, Times New Roman, Comic Sans MS, ou outro tipo qualquer, que lhes der na real gana. Não há caligrafia individualizada, reflexo do todo uno que é cada ser humano. Há o estereótipo gráfico porque cada um optou, no tamanho que escolheu.
O desenho é executado no “Magalhães” com um programa gráfico melhor ou pior, que permite gerir espessuras de traço, cores, luminosidade, contraste, texturas e estilos de desenho. A procura de perfeição a desenhar tem a ver com o domínio do programa utilizado. Essa é a arte deles.
Cadernos de significados para quê? Vai-se ao Google e lá está a Wikipédia. A Wikipédia diz tudo. Para que é que eles precisam de saber, se está na Wikipédia?
Fazer redacções hoje é fácil. Vai-se à Wikipédia e com o ponteiro do rato, copia-se e cola-se. Pesquisa em múltiplas fontes? Rearranjo dos materiais recolhidos em linguagem própria? Trabalho de síntese? Para quê? O que está na Wikipédia é que é! Mas cautela meninos, que os professores dispõem de um programa gratuito existente na Internet que permite ver se os meninos copiaram e colaram ou não. Depois não se queixem se forem acusados de ter copiado à letra, o trabalho apresentado, muitas vezes de forma abrasileirada.

Aviso à navegação
Assiste-se hoje aos mais diferentes níveis, ao facilitismo que o pervertido Sistema Educativo Português concede aos alunos, impreparando-os para a vida. E tudo começa por uma coisa muito simples. O esquecimento ou a ignorância de que cada um de nós só dá valor aquilo que foi fruto do seu esforço pessoal de aprendizagem e aperfeiçoamento, o que longe de facilitismos, passa pela aquisição e memorização de saberes, sem os quais o ser humano não consegue em cada instante julgar e decidir com propriedade.
Corremos o risco de estar a preparar seres humanos dependentes do “Magalhães”, da Internet e da Wikipédia, os quais longe de serem pessoas livres, estão condicionados à informação padrão veiculada “on line”.
Cerca de dois mil anos depois de Spartacus, o gladiador, ter liderado um exército de mais de cem mil escravos contra a opressão do Império Romano, é chegada a altura em que como homens livres, devemos consciencializar toda a gente dos riscos resultantes em termos de liberdade, da utilização de informação estereotipada e padronizada, bem como pela subordinação da criança e do jovem às rotinas do “Magalhães” – Faz tudo.

Texto publicado inicialmente em 28 de Setembro de 2011
O presente texto integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

 Caderno "Lusito"

Lousa

Caderno de significados