Fig. 1 – Hernâni António Cidade (1887-1975),
professor universitário, ensaísta,
historiador e crítico literário, natural do
Redondo.
No dia 19 de Agosto de 1946
veio a este mundo uma criança do sexo masculino, o qual sou eu e a quem no dia
do baptismo, a madrinha deu o nome de “Hernâni António Carmelo de Matos”.
Trata-se de um nome constituído pelo antropónimo composto “Hernâni António” e
pelos sobrenomes “Carmelo” e “Matos”. Iremos ver que foi um nome que veio a
alimentar uma estória quase tão comprida como a légua da Póvoa.
O antropónimo
Começando pelo antropónimo
“Hernâni António”, importa conhecer o porquê e as consequências de ter recebido
cada um destes nomes. Em primeiro lugar “Hernâni”. A minha madrinha e tia,
pessoa simples do povo e desprovida de conhecimentos literários, desconhecia
completamente a existência do drama “Hernâni” da autoria do escritor francês
Vítor Hugo. Todavia, era do conhecimento público a existência de um alentejano
ilustre, natural do Redondo, de seu nome Hernâni António Cidade (Fig. 1), distinto
homem de letras e amiúde falado nos jornais. A minha madrinha terá achado o
nome bonito e para mais o nome de um alentejano e tudo. E eu lá fiquei “Hernâni
António”. Foi um nome que teve consequências ao longo da minha vida.
Primeiramente na vida escolar, pelo facto de me chamar “Hernâni”, palavra
começada por “H”, a oitava letra do alfabeto português, então com 23 letras,
fazia com que eu não fosse dos primeiros a ser chamado a provas orais. Primeiro
iam os Abeis, os Balbinos, os Carlos, os Danieis, os Edgares, os Faustinos e os
Gaspares. Só depois ia eu, o que me deixava mais algum tempo para estudar para
as orais, afim de poder “tapar buracos” que tivessem ficado abertos durante o
ano escolar. Lá diz o provérbio optimista: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as
costas”. Todavia, as consequências de me chamar “Hernâni” não ficaram por aqui.
Com o desenvolvimento da
minha personalidade, adquiri hábitos de leitura e como coleccionador tornei-me
bibliófilo. Naturalmente que a minha biblioteca começou então a incorporar
entre outras, obras do Dr. Hernâni António Cidade, algumas com dedicatória autógrafa
a terceiros. O facto de me chamar “António”, levou-me também a coleccionar
iconografia antoniana, nomeadamente a nível de barrística popular estremocense
(Fig. 2). A nível bibliófilo, além dos seus Sermões e de biografias que sobre
ele têm sido escritas, interesso-me por obras que abordam Santo António na
Literatura de Tradição Oral, os aspectos etnográficos das festividades
populares do Dia de Santo António, bem como a iconografia antoniana, sobretudo
nas suas vertentes pictórica e azulejar.
Significado de Hernâni
O antropónimo “Hernâni” encontra a sua origem em
“Hernan”, variante de “Hernando”, versão espanhola de “Fernando”.
Este último nome é uma contracção de “Ferdinando”
do latim “Ferdinandus”, que por sua vez proveio do gótico “Ferdinand”, palavra
composta de “fardi” (viagem) e “nand” (pronto). O antropónimo “Hernâni”, poderá
então significar “pronto/preparado para a viagem".
Por outro lado, “Fernando” pode derivar do alemão
“Firthunands”, palavra composta de “firthu” (paz) e “nands” (audaz). O antropónimo “Hernâni”
poderá assim designar "Aquele que se atreve a tudo para conservar a
Paz".
O antropónimo Hernâni popularizou-se por ser o
pseudónimo do herói e título homónimo da obra teatral do escritor francês
Victor Hugo, representada pela primeira vez em 1830 e a partir do qual o
compositor italiano Giuseppe Verdi, compôs em 1844 uma ópera em 4 actos.
Significado de António
O antropónimo “António” provém do
latim “Antonius”, que significa “digno de apreço” ou “de valor
inestimável”. É um dos nomes mais populares da antroponímia portuguesa, devido,
sobretudo, a Santo António de Lisboa.
O sobrenome Carmelo
O meu primeiro sobrenome e
muito bem, é “Carmelo”, nome de família do meu avô materno, Manuel Carmelo
(ferroviário), mais conhecido por “Manuel Alturas”. É um sobrenome que encerra
em si várias estórias. A primeira é a sorte de que sendo neto do Manuel Alturas
e muito mais alto que ele, nunca ninguém se ter lembrado de me chamar “Monte
Carmelo”. A segunda é o facto de eu ter uma caligrafia que mais parece um
desenho abstracto. Não porque eu tenha estrabismo, não senhor. Quem tem de me
ler é que pode ficar estrábico. Era uma alegria ler as pautas de exame afixadas
na Faculdade de Ciências que frequentei, nas quais figurava o meu nome.
Raramente aparecia a palavra ”Carmelo”. Esta era substituída por sobrenomes
como “Carrelo”, “Carpelo”, “Corvelo”, “Carvalho”, “Camelo”, “Capeto”, “Corneto”
e “Carapeto”, constituindo uma cornucópia de sobrenomes espúrios. É claro que
nunca me queixei. A culpa era minha e só minha. Desabituado de escrever nos
cadernos de duas linhas usados na Instrução Primária, comecei a escrever à
rédea solta logo no Liceu. Este facto veio a agravar-se na Universidade, onde a
necessidade de rapidamente tirar apontamentos nas aulas para ter por onde
estudar, distorceu ainda mais a minha caligrafia. Para além disso, a palavra
“Carmelo” aparecia, por diversas vezes, substituída pela palavra “Caramelo” e
daí o mal o menos, já que ambas as palavras são variantes do mesmo sobrenome.
Todavia, o sobrenome “Carmelo” sugere algo de natureza monástica ao passo que
“Caramelo” é um sobrenome polivalente. Tanto designa um rebuçado confeccionado
a partir de açúcar queimado, como a água congelada (gelo), alguém de nome
desconhecido (sinónimo de tipo ou gajo) ou trabalhador rural do distrito de
Coimbra que noutros tempos vinha trabalhar para o Alentejo.
O sobrenome “Carmelo”
aparece na genealogia alentejana e para além da família “Carmelo de Matos,
existem outras como “Carmelo Grazina”, “Carmelo Morais”, “Carmelo Aires” e
“Carmelo Alcaide”.
O sobrenome Matos
Chegámos aqui a um ponto
crucial desta crónica e é aqui que “a porca torce o rabo”. Vejamos porquê.
A 1 de Julho de 1923 nasce
na aldeia da Cunheira da freguesia e concelho de Chança, uma criança do sexo masculino
(o meu futuro pai), que seria o primeiro de 4 filhos de Manuel Sabino
(pedreiro) e Antónia Matos (doméstica). À criança foi dado o nome que consta no
registo baptismal “João Sabino de Matos”. Trata-se de um facto estranho já que
de acordo com a tradição em vigor, consignada na lei, o último sobrenome a
atribuir a um recém-nascido deve ser o do pai. De acordo com tal disposição, os
meus tios (duas tias e um tio) saíram “Matos Sabino”. Todavia, o meu pai saiu
“Sabino de Matos” e não “Matos Sabino”, como se o pai tivesse deixado de ser
pai para passar a ser mãe e esta tivesse deixado de ser mãe, para passar a ser
pai. Se o caso não se tivesse passado na Igreja, eu diria que tinha sido obra
do “Diabo”. Mas não, foi troca dos sobrenomes pelo padre de serviço, quem sabe
se às voltas com uma digestão difícil.
O sono de Deus
Reza o adagiário português
que “Deus não dorme”. Com o devido e democrático respeito pelas crenças do
próximo, não penso que assim seja. Se Deus não dormisse ou pelos menos não
estivesse distraído, o padre da Cunheira não teria invertido a ordem dos
sobrenomes de família. Creio piamente que o Senhor teria dado no padre um
celestial abanão, que o levasse a emendar o erro crasso em que incorreu. Fruto
dele, sou “Carmelo de Matos” e não “Carmelo Sabino”. Felizmente que o sobrenome
“Matos”, que até está antecedido de um “de”, não se escreve com dois “tt” ou
seja “Mattos”. Se assim fosse, algum maldizente daqueles que por aí abundam,
poder-se-ia lembrar de me acusar de ser pretensioso, por onomasticamente me
travestir em “sangue azul”, que de facto não sou. De salientar, que embora por
efeitos práticos, mantenha o nome com um sobrenome errado, para efeitos
genealógicos deverei ser encarado como um “Carmelo Sabino” e não como um
“Carmelo de Matos”.
Erro de sacristia
Todas as estórias têm um
fim e esta chegou ao fim. Todavia, todas as estórias têm também uma moral.
Neste caso, creio ser legítimo concluir que o erro cometido pelo padre foi um
“erro de palmatória”, daqueles que levavam os professores do antigamente a dar
pelo menos uma palmatoada da praxe em cada mão do aluno com a “Dona Rosa” de
uso pessoal. Para além disso, foi um “erro de sacristia” que eu não perdoo e
que só o Senhor na sua infinita benevolência poderá perdoar.
Estremoz, 19 de Setembro de
2019
(Jornal E nº 231, de 7-10-2019)
Publicado inicialmente em 20 de Outubro de 2010
(Jornal E nº 231, de 7-10-2019)
Publicado inicialmente em 20 de Outubro de 2010
Fig. 2 – Santo António. Imagem devocional em barro
de Estremoz, da autoria do
barrista e oleiro Mariano da Conceição (1903-1959).
Colecção do autor.
Muito giro e bem escrito, como de costume.
ResponderEliminarAbraço
Peres Claro