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segunda-feira, 10 de março de 2025

Sinos: Velhos Tempos e Tempo Novo


Igreja de Santo André com as suas duas torres sineiras (Foto de C. J. Walowski - 1891).
Situada na Rua 5 de Outubro, em Estremoz, no local onde hoje está o Palácio da Justiça.
Muito rica e imponente no seu estilo barroco, foi sede de Paróquia. A sua construção
iniciada em 1705, levou 20 anos, tendo sido inaugurada em 26 de Novembro de 1725.
Foi demolida em 1960, por ordem do regime de Salazar, o que foi sem sombra de dúvida,
o maior crime alguma vez perpetrado contra o património construído em Estremoz. 

Velhos Tempos
O som dos sinos é um dos sons mais antigos que povoam as memórias da minha infância. Quando frequentava a Escola Primária, tanto o início das aulas como da missa dominical eram anunciadas por toques de sinos.
Ao longo dos séculos os sinos têm sido utilizados como alfaias religiosas que assinalam os actos litúrgicos, dão as horas e funcionam como meio de comunicação, tocando a rebate a fogo e anunciando desastres como naufrágios, bem como reuniões de conselhos de anciãos ou de câmaras, assim como reunindo o povo para trabalhos agrícolas ou batidas a lobos.
Os sinos distinguem-se uns dos outros pelo modo como se exprimem: variando a altura, a intensidade e o timbre, assim como a duração, o ritmo e o compasso do som.
As técnicas de percussão sineira incluem: picar, repicar, badalar, bater, rebater, tanger, destanger, bambolear, bandear e dobrar. Através delas podem ser gerados códigos acústicos entendíveis pela comunidade: canto em ocasiões de festa e choro em momentos de dor.

Literatura Oral
O sino encontra-se abundantemente registado na nossa literatura de tradição oral. Assim, a nível de ADAGIÁRIO, diz-se: “Menino e sino só com pancada”, “O sino chama para a missa mas não vai a ela”, “Os sinos tangem-se pelos mortos e não pelos vivos”, “Quem toca o sino não acompanha a procissão”, “Sino forte, vento húmido”, “Sino pequeno berra muito”. No campo da GÍRIA POPULAR são conhecidas expressões como: Andar num sino (Andar contente), Sino (Copo de vinho), Sino da Sé (Copo de litro para vinho, usado nas tabernas do Porto), Sino de correr (Toque que marcava a hora de fechar as tabernas e recolherem a casa, judeus e mouros), Sino grande (Pena máxima aplicada ao réu). No âmbito das LENGALENGAS são conhecidas diversas, entre as quais esta: “Amanhã é Domingo / Toca o sino / O sino é de ouro / Mata-se o touro / O touro é bravo / Ataca o fidalgo / O fidalgo é valente / Defende a gente / A gente é fraquinha / Mata a galinha / Para a nossa barriguinha”. Quanto a ADIVINHAS, existem várias cuja solução óbvia é o sino. Eis uma: "Alto está, / alto mora, / todos o veem, / ninguém o adora./ O que é? ".

Literatura Portuguesa
Em prosa, a referência literária mais antiga relativa a sinos remonta a Portugaliae Monumenta Historica (870). Posteriormente surge em António Tenreiro – Itinerário (1560), Frei Pantaleão de Aveiro – Itinerário da Terra Santa (1593), Frei Gaspar de São Bernardino – Itinerário da Índia por Terra (1611), Fernão Mendes Pinto – Peregrinação (1614) e mais tarde ainda em Eça de Queirós - O Primo Basílio (1878), Camilo Castelo Branco - A Maria da Fonte (1885) e Ramalho Ortigão – As Farpas – I (1887). Na poesia, entre os inúmeros poetas que falam de sinos, destacamos: Luís de Camões - Os Lusíadas (1572), António Nobre – Os sinos (1892), António Correia de Oliveira – O sino (1899), Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia (1913), Florbela Espanca - Noite trágica (1923) e António Lopes Ribeiro – Procissão (1956).

Tempo Novo
A Constituição da República Portuguesa consigna como direitos fundamentais, o direito à diferença e a igualdade de género. Daí que sob o ponto de vista social, não faça qualquer sentido existirem dois toques distintos, conforme o finado é homem ou mulher. Trata-se de uma questão que a Igreja deve rever, já que ela própria nos leva a crer que aos olhos de Deus todos são iguais. Quanto ao comum dos mortais não interessa saber se morreu homem ou mulher, mas apenas quem foi que partiu e isso os sinos não dizem. 

Publicado inicialmente em 27 de Janeiro de 2016

sábado, 8 de março de 2025

A todas as Mulheres do Mundo...


Camponesa. Manuel Ribeiro de Pavia (1910-1957).


                                     ...mas em especial à Gina Ferro,
                                                       pelo privilégio da sua amizade.

As mulheres são nossas mães, nossas irmãs, nossas filhas, nossas companheiras, nossas amantes, nossas cúmplices, o bálsamo para os maus momentos, a nossa inspiração para a ode triunfal e o estímulo para a vitória.
Com elas apanhamos bebedeiras de azul, quando não gostam de vinho.
E fartos de azul, por elas bebemos vinho, até dizer basta!
Com elas e por elas, lutamos por amanhãs que não sabemos quando vêm, mas que temos a certeza inabalável que hão de vir.
A elas nos agarramos quando sentimos que estamos a mergulhar no abismo.
Delas gostamos do carinho, do amor e do sexo-porto de abrigo.
Nelas nos fundimos e com elas fazemos filhos, erguemos projectos e por vezes engendramos mudanças de paradigma.
Com elas nos derretemos em sangue, sémen, suor e lágrimas, com gemidos e ais, punhos erguidos e bandeiras vermelhas, raiva incontida que nos vem de baixo e que desfraldamos ao vento, porque somos insurrectos. É um direito que nos assiste!
Para além de sustentarem metade do céu sobre os seus ombros, as mulheres são a metade que nos falta, que nos dá força e que nos faz vacilar, qual travão que adocica o motor.
E mais não digo…

Publicado inicialmente em 8 de Dezembro de 2013

terça-feira, 4 de março de 2025

Os xexés


Xexé (1921). Ilustração de Leal da Câmara (1876-1948). Capa da revista “ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA”, nº 781 de 5 de Fevereiro de 1921

Uma figura característica do Carnaval doutros tempos, pelo menos até ao primeiro quartel do século XX, era o “xexé”, caricatura do Portugal miguelista, caído em desgraça. O personagem foi retratado entre outros por José Malhoa (1895), Rafael Bordalo Pinheiro (1903), Augusto Bobone (antes de 1910) e Leal da Câmara (1921). O xéxé trajava uma casaca de seda colorida, calção e meia branca, sapatos de fivela, cabeleira de estopa, punhos de renda e um enorme chapéu bicorne, à moda de finais do séc. XVIII - séc XIX. Usava muitas vezes lunetas, andava armado com um grande facalhão de madeira e um cacete adornado com um chavelho. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é um substantivo masculino que designa “Personagem carnavalesco típico, caracterizado como um velho ridículo e senil”. Para este dicionário, o termo terá sido utilizado pela primeira vez no “Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa”, de Caldas Aulete. Como refere a “Gíria Portugueza” [1], “Chéché” é um termo popular que designa “Mascarado repelente e ridículo, em Lisboa, que importuna os transeuntes pedindo “dez reisinhos p’r’o velho””. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é também um substantivo e adjectivo com os dois géneros, aplicável a “quem está desprovido de lucidez em decorrência de idade avançada”, sendo sinónimo de ”senil”, “caduco” e “gagá”. É ainda aplicável “àqueles que possuem comportamento ridículo ou estúpido”. Julgo que é neste último sentido, que o termo seja aplicável aos responsáveis políticos ao mais alto grau que:
- Se queixam-se que as suas reformas chorudas não chegam para as despesas pessoais;
- Chamam “piegas” àqueles que civicamente protestam pela dureza das condições de vida que lhes estão a ser impostas;
- Mandam os licenciados, mestres e doutores emigrarem, por cá não arranjarem emprego; 
- Mandam os militares sair das fileiras, quando estes protestam civicamente;
- Reformados da política, nos sugam dinheiro diariamente com as suas benesses vitalícias.
Perante um panorama sombrio deste quilate, apenas uma atitude é possível: o direito à indignação, acompanhado da legítima conclusão de que somos governados por “xéxés”. É caso para bradar bem alto:
- ACABEMOS COM ESTE CARNAVAL!

Publicado inicialmente a 15 de Dezembro de 2012

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] – HOUAISS, António et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.

Xexé (1895). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (27,4 x 47,4 cm).
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa.

Xexé (1898), desfilando na Praça D. Pedro IV, em Lisboa. Fotógrafo não identificado.
Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da Câmara
Municipal de Lisboa.

Xexé (1903). Ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). Capa da revista “A PARÓDIA”,
nº5 de 18 de Fevereiro de 1903.

Xexé (anterior a 1910), desfilando na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Augusto Bobone
(1852-1910). Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da
Câmara Municipal de Lisboa.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A Pintura


Verão" ou "A Ceifa". Dordio Gomes (1890-1976). Aguarela sobre papel.

A Pintura enche-me as medidas. Quem sabe se os meus textos não serão pinceladas caligráficas, na procura vã de encontrar a forma dum seio de mulher que desvie as minhas mãos da escrita? Com elas, registo o voo rasante dos pardais sobre a eira e a sonoridade dos ralos à hora da sesta. Assim saboreio o oloroso gaspacho que me refresca e alimenta o ventre, bem como o vinho espesso que mastigo para não me lembrar do que não quero. Assim me vejo e me revejo, naquilo que de mais natural e ancestral há em mim.

Publicado inicialmente em 24 de Setembro de 2013

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Massa crítica


O GRUPO DO LEÃO (1885). Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Óleo sobre tela (200 x 380 cm). Museu do Chiado, Lisboa.

O conceito de “massa crítica”, originário da física nuclear, é extensível a múltiplos domínios como sociologia, política, dinâmica de grupos, publicidade, marketing, etc. Em qualquer destas áreas, “massa crítica” é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que um determinado fenómeno possa ocorrer e adquirir uma dinâmica própria que lhe permita autosustentar-se e crescer.
Uma questão que se põe imediatamente é a de saber se a comunidade estremocense tem ou não, massa crítica que lhe permita induzir dinâmicas sociais, indispensáveis ao desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Uma análise do problema poderá levar à conclusão de que Estremoz não tem massa crítica. Contudo, a situação não é irreversível como passo a demonstrar.
Estremoz tem entre os seus filhos, naturais ou adoptivos, bastantes individualidades com currículo respeitável, com percursos de vida notáveis, com provas dadas e obra feita que merece o reconhecimento da comunidade. Todavia, atomizados na sua individualidade não constituem massa crítica. Estão dispersos por variadas coutadas doutrinárias, ideológicas e partidárias, muitas vezes estanques, avessas a pensar para além do dogma que as sustenta, o que inevitavelmente as acabará por aniquilar. Estão ainda disseminados por capelas e tertúlias, que reproduzem alguns dos vícios anteriores. Estão igualmente espalhados por grupos de acção escolar ou confinados a torres de marfim ou celas individuais de pensamento pró-monástico.
Naquelas circunstâncias nunca constituirão massa crítica, já que como nos ensina o gestaltismo, o todo é mais que um mero somatório das suas partes, pois tem características próprias. Estas só poderão ser alcançadas se todos e cada um tiverem a humildade de reconhecer que atomizados não conseguem chegar a parte nenhuma, limitando-se a cumprir um caminho de penitência. Todavia é impensável e ilegítimo que cada um dos múltiplos grupos cogite em arregimentar os restantes, visando o seu auto-reforço. O que é possível e legítimo é cada um desses grupos ou individualidades proceder a uma profunda reflexão que lhe permita separar em termos de objectivos e de linhas de acção, o que é essencial do que é acessório. Feito isto, é então possível procurar equacionar quais os caminhos que podem ser percorridos conjuntamente. Então, Estremoz terá massa crítica, indutora de dinâmicas sociais conducentes ao desenvolvimento nas suas distintas vertentes. Então poderá ocorrer uma mudança de paradigma, que como Fénix renascida das cinzas, nos devolva o orgulho de sermos estremocenses.

Publicado inicialmente em 18 de Dezembro de 2014

sábado, 22 de fevereiro de 2025

As duas culturas


 Imagem recolhida no blogue "Esqueci a Ana"

                                                                        À Catarina, minha filha:

Nos meus tempos de rapaz, já depois dos 18 anos, um Homem com H grande e que se chamava Charles Percy Snow (1905-1980), viu publicada em Portugal em 1965 e graças à acção clarividente de Snu Abecassis (1940-1980), a bem amada de Francisco Sá Carneiro (1934-1980), o livro "As Duas Culturas".
Embora não folheie e releia aquela obra há muito tempo, com ela ocorreu uma mudança de paradigma. Percebi que o problema da cisão da Cultura em dois campos aparentemente opostos (A Ciência e as Humanidades) é um falso problema que alguns procuram acicatar. A posição do Homem no Universo é unívoca e singular. Ele é o objecto e o actor principal de ambas. A ele cabe fazer uma síntese dialéctica e pô-las ao seu serviço.
Na nossa pátria lusitana, como percursor dessa ideia peregrina, que constitui afinal um ovo de Colombo, temos o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), quando pela voz de Álvaro de Campos (1) proclama que:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Também o matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948) na sua conferência “A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo“ (edições Mocidade Livre – 1933), conclui que “a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo”. Para ele também só há uma Cultura. Daí falar em “Cultura Integral do Indivíduo”
Igualmente o professor Rómulo de Carvalho (1906-1997), poeticamente conhecido por António Gedeão, soube integrar na sua magistral poesia e duma forma natural, aquilo que faz parte do arsenal científico da nossa formação. De igual modo eu, físico de formação, andei por caminhos poéticos convergentes, apesar de distintos. Aí pelos 20 anos fui desintegracionista, sob a influência do poema “A Astronave” de Armando Ventura Ferreira (Arcádia-1963) e manuscrevia poemas com tinta cor de barro – a cor do meu Alentejo e dos campos de Estremoz, os quais oferecia nas ruas de Lisboa aos transeuntes que os queriam aceitar. Integrava então um grupo heterogéneo, o qual se dispersou no tempo e que foi emergindo posteriormente, alguns com certa notoriedade. É dessa época de não-rima e com pontuação à Saramago, o excerto:

endotermizaste em mim uma amizade no tempo
cristaliza agora analiticamente um amor no espaço
e nunca mais nos bombardearemos com palavras virgens
ávidonautas, sexonautas, astronautas seremos
astronautas partiremos na minha nave
para anunciarmos aos povos do infinito-dimensional
que como experimentados sexólogos terrestres
descobrimos por fim o metafísico deus dos rabis

Publicado inicialmente a a 1 de Outubro de 2013

 (1) - s.d. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 110.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O reencontro de dois caminhantes

 

Mestre Xico Tarefa e Hernâni Matos, dois caminhantes que se reencontram na sede
da ADOE.  De que estarão a falar? De olaria, pois claro!


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É sabido que não há caminho, como nos ensina o poeta sevilhano António Machado: “Caminhante, são teus rastos / o caminho, e nada mais; /caminhante, não há caminho, / faz-se caminho ao andar.” (…).

Cada um de nós segue o seu próprio caminho, o que não impede que alguns caminhos se cruzem. Foi assim que o meu caminho e o de Mestre Xico Tarefa se cruzaram em 1980 no Terreiro do Paço Ducal de Vila Viçosa. Tal ocorreu no decurso do I Encontro de Olaria Regional do Alto Alentejo, que ali teve lugar entre 4 e 15 de Junho desse ano.

Andámos ambos por ali e integrávamos a Comissão Organizadora do Encontro. Eu em representação da Casa da Cultura de Estremoz e ele em representação do Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça. As nossas preocupações de então centravam-se na necessidade de salvaguarda da matriz identitária das olarias de cada Centro Oleiro do Alto Alentejo e na tomada de medidas que impedissem a descontinuidade de produção das olarias.

O Mestre Xico Tarefa era um operacional no terreno, que não parava quieto, andava sempre para aqui e para ali, a tratar de uma coisa ou outra. Entre as múltiplas tarefas de que foi encarregue esteve a produção de um prato comemorativo do Encontro, a ser oferecido aos participantes. Daí eu estar na posse de um exemplar que tive a honra de receber na época, o qual está na génese da minha condição de coleccionador de louça de barro vidrado de Redondo. O trabalho de roda é de Mestre Xico Tarefa e a pintura e o esgrafitado são da autoria de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983).

Ao receber de bom grado o prato comemorativo do Encontro, herdei uma pesada responsabilidade e brotou em mim o fascínio pela cerâmica redondense, que nunca mais parou e cuja chama se mantem bem viva. Aquele prato tem para mim especial significado. Foi o primeiro exemplar da minha colecção de cerâmica redondense. Por mais raro e mais valioso que seja outro espécime adquirido ou que venha a adquirir, aquele ocupará sempre um lugar muito privilegiado no meu coração. É que foi o primeiro da minha colecção, saído das mãos de Mestre Xico Tarefa e de Mestre Álvaro Chalana e que ficou a selar o cruzamento do meu caminho com o primeiro destes mestres.

Decorridos 45 anos sobre o primeiro cruzamento dos nossos caminhos, voltámos a cruzar-nos. Desta feita, o terreiro é outro. Trata-se da ADOE - Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz. Ele como formador, na qualidade de Mestre Oleiro. Eu, como consultor had hoc, na qualidade de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz.

De então para cá, o Mestre Xico Tarefa tem desenvolvido uma carreira notável como Mestre Oleiro e como formador das novas gerações, o que muito me regozija e enche de orgulho como seu amigo e admirador em que entretanto me tornei.

A sua obra fala por si e é um exemplo paradigmático para os mais novos. Encerra em si própria, o respeito pela ancestralidade da olaria popular alentejana, temperado pela criatividade inovadora que lhe brota da alma e que com fidelidade se transmite às mãos mágicas que são as suas.

Obrigado Mestre pela beleza criada para usufruto e deleite de espírito de todos aqueles que apreciam o seu trabalho.

Bem-haja, Mestre Xico!


Publicado no jornal E nº 350, de 14 de Fevereiro de 2025

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Resposta a quem elogiou a minha escrita

 

Hernâni Matos (2023). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.

Mesteiral das palavras, lá isso sou. Mão de obra gratuita à disposição da comunidade, eventualmente usada para zurzir os que se portam mal e me fazem chegar a mostarda ao nariz. Todavia, prefiro filigranar palavras que traduzem sentimentos e emoções que têm a ver com a matriz identitária alentejana. E o que eu gosto de transmitir uma visão polifacetada das coisas... Creio firmemente que a realidade possa ser no limite o resultado da sobreposição dum número considerável de visões de diferentes actores no palco da vida. Como tal, a minha visão global sobre qualquer coisa é fruto do modo como eu vejo essa qualquer coisa sobre múltiplos pontos de vista. O Homem não é uma alimária que tenha que estar sujeita a ver numa única direcção. Isso é o que querem os manipuladores de consciências. Mas com eles, há muito que perdi a paciência ou melhor, as paciências.

- PIM! O TEXTO CHEGOU AO FIM!
- PAM! A PALAVRA NÃO É CORTESÃ!
- PUM! (É que não há nenhum).

Hernâni Matos

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Eu e António Aleixo

 

António Aleixo (1899-1949)

No final dos anos 60 do séc. XX, enquanto membro do Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, participei em ocupações da cantina da Faculdade, como forma de protesto por não haver uma Associação de Estudantes democraticamente eleita e como processo de luta contra o regime fascista.
Eram ocupações feitas à noite e em que não deixávamos fechar a cantina às 21 horas. É claro que os informadores da PIDE na Faculdade, cumpriam a sua missão e passado pouco tempo, tínhamos a visita da famigerada Polícia de Choque, a qual cercava a Faculdade. O desfecho dessas ocupações foi variável, o que incluiu muitas vezes bordoada e prisões.
Durante as ocupações, havia intervenções políticas e actuação de cantores que se solidarizavam connosco, com especial destaque para o Zeca Afonso e o para o padre Fanhais. Também me lembro da participação do actor Rogério Paulo.
Numa dessas ocupações lembro-me de ter subido para cima de uma mesa e ter declamado, com agrado geral, quadras de António Aleixo, que era praticamente desconhecido em Lisboa. Era sobretudo conhecido no Algarve e em Coimbra, onde fora divulgado pelo pintor Tossan, que era natural de Vila Real de Santo António e membro do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). De Coimbra até Estremoz, a poesia de António Aleixo viajaria com a alma e a convicção do João Carlos Gargaté, natural de Estremoz, estudante de Direito, membro do TEUC e meu grande amigo. Foi ele que me transmitiu o culto da poesia de António Aleixo, uma poesia muitas vezes amarga, mas poesia do real e arma de combate contra a injustiça. Foi essa poesia que me levou a subir para cima da mesa e a fazer minhas as palavras de António Aleixo. Terá sido a primeira divulgação pública do trabalho do poeta, na cidade de Lisboa, por via do meu vozeirão, então no seu esplendor.

Publicado inicialmente em 17 de Novembro de 2021 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Erros de sacristia


Fig. 1 – Capitulares do meu nome. 



No dia 19 de Agosto de 1946 veio a este mundo uma criança do sexo masculino, o qual sou eu e a quem no dia do baptismo, a madrinha deu o nome de “Hernâni António Carmelo de Matos”. Trata-se de um nome constituído pelo antropónimo composto “Hernâni António” e pelos sobrenomes “Carmelo” e “Matos”. Iremos ver que foi um nome que veio a alimentar uma estória quase tão comprida como a légua da Póvoa.
O antropónimo
Começando pelo antropónimo “Hernâni António”, importa conhecer o porquê e as consequências de ter recebido cada um destes nomes. Em primeiro lugar “Hernâni”. A minha madrinha e tia, pessoa simples do povo e desprovida de conhecimentos literários, desconhecia completamente a existência do drama “Hernâni” da autoria do escritor francês Vítor Hugo. Todavia, era do conhecimento público a existência de um alentejano ilustre, natural do Redondo, de seu nome Hernâni António Cidade (Fig. 2), distinto homem de letras e amiúde falado nos jornais. A minha madrinha terá achado o nome bonito e para mais o nome de um alentejano e tudo. E eu lá fiquei “Hernâni António”. Foi um nome que teve consequências ao longo da minha vida. Primeiramente na vida escolar, pelo facto de me chamar “Hernâni”, palavra começada por “H”, a oitava letra do alfabeto português, então com 23 letras, fazia com que eu não fosse dos primeiros a ser chamado a provas orais. Primeiro iam os Abeis, os Balbinos, os Carlos, os Danieis, os Edgares, os Faustinos e os Gaspares. Só depois ia eu, o que me deixava mais algum tempo para estudar para as orais, afim de poder “tapar buracos” que tivessem ficado abertos durante o ano escolar. Lá diz o provérbio optimista: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Todavia, as consequências de me chamar “Hernâni” não ficaram por aqui.
Com o desenvolvimento da minha personalidade, adquiri hábitos de leitura e como coleccionador tornei-me bibliófilo. Naturalmente que a minha biblioteca começou então a incorporar entre outras, obras do Dr. Hernâni António Cidade, algumas com dedicatória autógrafa a terceiros. O facto de me chamar “António”, levou-me também a coleccionar iconografia antoniana, nomeadamente a nível de barrística popular estremocense (Fig. 3). A nível bibliófilo, além dos seus Sermões e de biografias que sobre ele têm sido escritas, interesso-me por obras que abordam Santo António na Literatura de Tradição Oral, os aspectos etnográficos das festividades populares do Dia de Santo António, bem como a iconografia antoniana, sobretudo nas suas vertentes pictórica e azulejar.

Fig. 2 – Hernâni António Cidade (1887-1975), professor universitário, ensaísta,
historiador e crítico literário, natural do Redondo.

Significado de Hernâni
O antropónimo “Hernâni” encontra a sua origem em “Hernan”, variante de “Hernando”, versão espanhola de “Fernando”.
Este último nome é uma contracção de “Ferdinando” do latim “Ferdinandus”, que por sua vez proveio do gótico “Ferdinand”, palavra composta de “fardi” (viagem) e “nand” (pronto). O antropónimo “Hernâni”, poderá então significar “pronto/preparado para a viagem".
Por outro lado, “Fernando” pode derivar do alemão “Firthunands”, palavra composta de “firthu” (paz)  e “nands” (audaz). O antropónimo “Hernâni” poderá assim designar "Aquele que se atreve a tudo para conservar a Paz".
O antropónimo Hernâni popularizou-se por ser o pseudónimo do herói e título homónimo da obra teatral do escritor francês Victor Hugo, representada pela primeira vez em 1830 e a partir do qual o compositor italiano Giuseppe Verdi, compôs em 1844 uma ópera em 4 actos.
Significado de António
O antropónimo “António” provém do latim “Antonius”, que significa “digno de apreço” ou “de valor inestimável”. É um dos nomes mais populares da antroponímia portuguesa, devido, sobretudo, a Santo António de Lisboa.
O sobrenome Carmelo
O meu primeiro sobrenome e muito bem, é “Carmelo”, nome de família do meu avô materno, Manuel Carmelo (ferroviário), mais conhecido por “Manuel Alturas”. É um sobrenome que encerra em si várias estórias. A primeira é a sorte de que sendo neto do Manuel Alturas e muito mais alto que ele, nunca ninguém se ter lembrado de me chamar “Monte Carmelo”. A segunda é o facto de eu ter uma caligrafia que mais parece um desenho abstracto. Não porque eu tenha estrabismo, não senhor. Quem tem de me ler é que pode ficar estrábico. Era uma alegria ler as pautas de exame afixadas na Faculdade de Ciências que frequentei, nas quais figurava o meu nome. Raramente aparecia a palavra ”Carmelo”. Esta era substituída por sobrenomes como “Carrelo”, “Carpelo”, “Corvelo”, “Carvalho”, “Camelo”, “Capeto”, “Corneto” e “Carapeto”, constituindo uma cornucópia de sobrenomes espúrios. É claro que nunca me queixei. A culpa era minha e só minha. Desabituado de escrever nos cadernos de duas linhas usados na Instrução Primária, comecei a escrever à rédea solta logo no Liceu. Este facto veio a agravar-se na Universidade, onde a necessidade de rapidamente tirar apontamentos nas aulas para ter por onde estudar, distorceu ainda mais a minha caligrafia. Para além disso, a palavra “Carmelo” aparecia, por diversas vezes, substituída pela palavra “Caramelo” e daí o mal o menos, já que ambas as palavras são variantes do mesmo sobrenome. Todavia, o sobrenome “Carmelo” sugere algo de natureza monástica ao passo que “Caramelo” é um sobrenome polivalente. Tanto designa um rebuçado confeccionado a partir de açúcar queimado, como a água congelada (gelo), alguém de nome desconhecido (sinónimo de tipo ou gajo) ou trabalhador rural do distrito de Coimbra que noutros tempos vinha trabalhar para o Alentejo.
O sobrenome “Carmelo” aparece na genealogia alentejana e para além da família “Carmelo de Matos, existem outras como “Carmelo Grazina”, “Carmelo Morais”, “Carmelo Aires” e “Carmelo Alcaide”.
O sobrenome Matos
Chegámos aqui a um ponto crucial desta crónica e é aqui que “a porca torce o rabo”. Vejamos porquê.
A 1 de Julho de 1923 nasce na aldeia da Cunheira da freguesia e concelho de Chança, uma criança do sexo masculino (o meu futuro pai), que seria o primeiro de 4 filhos de Manuel Sabino (pedreiro) e Antónia Matos (doméstica). À criança foi dado o nome que consta no registo baptismal “João Sabino de Matos”. Trata-se de um facto estranho já que de acordo com a tradição em vigor, consignada na lei, o último sobrenome a atribuir a um recém-nascido deve ser o do pai. De acordo com tal disposição, os meus tios (duas tias e um tio) saíram “Matos Sabino”. Todavia, o meu pai saiu “Sabino de Matos” e não “Matos Sabino”, como se o pai tivesse deixado de ser pai para passar a ser mãe e esta tivesse deixado de ser mãe, para passar a ser pai. Se o caso não se tivesse passado na Igreja, eu diria que tinha sido obra do “Diabo”. Mas não, foi troca dos sobrenomes pelo padre de serviço, quem sabe se às voltas com uma digestão difícil.
O sono de Deus
Reza o adagiário português que “Deus não dorme”. Com o devido e democrático respeito pelas crenças do próximo, não penso que assim seja. Se Deus não dormisse ou pelos menos não estivesse distraído, o padre da Cunheira não teria invertido a ordem dos sobrenomes de família. Creio piamente que o Senhor teria dado no padre um celestial abanão, que o levasse a emendar o erro crasso em que incorreu. Fruto dele, sou “Carmelo de Matos” e não “Carmelo Sabino”. Felizmente que o sobrenome “Matos”, que até está antecedido de um “de”, não se escreve com dois “tt” ou seja “Mattos”. Se assim fosse, algum maldizente daqueles que por aí abundam, poder-se-ia lembrar de me acusar de ser pretensioso, por onomasticamente me travestir em “sangue azul”, que de facto não sou. De salientar, que embora por efeitos práticos, mantenha o nome com um sobrenome errado, para efeitos genealógicos deverei ser encarado como um “Carmelo Sabino” e não como um “Carmelo de Matos”. 
Erro de sacristia
Todas as estórias têm um fim e esta chegou ao fim. Todavia, todas as estórias têm também uma moral. Neste caso, creio ser legítimo concluir que o erro cometido pelo padre foi um “erro de palmatória”, daqueles que levavam os professores do antigamente a dar pelo menos uma palmatoada da praxe em cada mão do aluno com a “Dona Rosa” de uso pessoal. Para além disso, foi um “erro de sacristia” que eu não perdoo e que só o Senhor na sua infinita benevolência poderá perdoar.

Estremoz, 19 de Setembro de 2019
(Jornal E nº 231, de 7-10-2019)
Publicado inicialmente em 20 de Outubro de 2010


Fig. 3 – Santo António. Imagem devocional em barro de Estremoz, da autoria do
barrista e oleiro Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Testamento herético

 


Hereticamente, através de ideias e de palavras próprias solidamente fundamentadas, ousei ao longo da minha vida ser diferente, mantendo-me igual a mim próprio ao fazer frente a alguns que ilusoriamente julgam ter a faca e o queijo na mão, ad eternum.

A minha heresia condenou-me a futuramente ser apagado dos registos que os revisionistas da História do Presente irão manipular a soldo de qualquer uma dessas nomenklaturas em que esbarro a torto e a direito, mas que nem por um instante me fazem vacilar.

Congratula-me a consciência da minha heresia, convicto da existência de justos criadores de mudanças de paradigma, os quais em devido tempo se encarregarão de reavivar a minha Memória e recambiar os revisionistas e seus mandantes para o caixote do lixo da História.

Hernâni Matos

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O que gostaria de ver em Estremoz em 2025?

 


“Estremoz é uma cidade que me dói,
por tudo aquilo que lhe falta”

Cai o pano para 2024 e entra 2025. Lançámos um desafio aos nossos colaboradores pedindo-lhes que nos fizessem chegar os seus votos para o novo ano, respondendo a uma pergunta: “O que gostaria de ver (ou ter) em Estremoz para o ano de 2025?” Hernâni Matos respondeu ao repto.

Jornal E

 

Estremoz é uma cidade que me dói, por tudo aquilo que lhe falta. O que é não só consequência da falta de visão estratégica de algumas edilidades, como pela definição de prioridades questionáveis ao longo dos tempos.

Estremoz carece de uma resposta urgente a problemas prementes que na minha óptica são de priorizar sequencialmente assim: rede de abastecimento de água, rede de esgotos, requalificação urbana, construção habitacional, rede de ecopontos, mobilidade e acessibilidade urbanas.

2025 é ano de eleições autárquicas a ocorrer em Setembro. Neste momento, os cabeças de lista das várias formações em confronto já terão obtido o beneplácito dos estados maiores partidários ou o acordo pró-forma dos seus apaniguados. Já terão, decerto, constituído as suas equipas ou estarão em vias de as concretizar.

Será que o Executivo Municipal gerado pelas eleições setembrinas, elaborou uma lista de faltas semelhante à minha? Não sei, mas provavelmente não. Apenas sei que qualquer dia começam a meter-nos papelinhos debaixo das portas, a contactar-nos pessoalmente com o seu melhor sorriso e a azucrinar-nos com os seus hinos, enquanto apregoam bacalhau a pataco. E as artimanhas são muitas. Lá diz o rifão: “Com papas e bolos se enganam os tolos”. Convém aguentar as investidas a pé firme e mesmo de pé atrás. Pela minha parte não se admirem, se eu não estiver nos meus dias e lhes atirar à cara com esta do Aleixo: “Vós que lá do vosso império / prometeis um mundo novo, / calai-vos, que pode o povo / q'rer um mundo novo a sério!”


Publicado inicialmente em 1 de Janeiro de 2025
Publicado no jornal E, nº 347, de 2 Janeiro de 2025

sábado, 16 de novembro de 2024

Estórias do autor

 

Hernâni Matos (1946 - ). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.


O presente texto integra o meu livro
publicado pelas Edições Afrontamento
no Outono de 2018


Recolector
Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que sou recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da minha alma. Nessa conjuntura, tornei-me filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o meu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no Mercado das Velharias em Estremoz, no qual sou presença habitual e onde recolecto objectos que, duma forma virtual, pré-existiam no meu pensamento.

Coleccionador
Desde os dez anos de idade que transporto na massa do sangue o espírito de coleccionador. Marca genética ou atávica, não sei, mas que veio ao de cima lá por essa idade, veio. E é um facto tão real como o odor da flor de esteva ou o castanho da terra de barro.
Coleccionar é reunir num todo, objectos que têm, pelo menos, uma característica ou funcionalidade comum. A motivação para o fazer pode ser diversa, como distintas podem ser as consequências de uma colecção. Pode ficar guardada numa caixa ou arrumada numa prateleira de estante ou mesmo numa vitrina, como também pode ser objecto de estudo numa procura de respostas, desde sempre procuradas pela alma humana.
Há objectos que, pelos mais diferentes motivos, somos levados a coleccionar. E nenhuma colecção é estática, mas antes bem pelo contrário, dinâmica, uma vez que com o porvir há que a reformular, pelo aumento do grau de exigência imposto e mesmo fruto de uma certa especialização, os quais diminuem o espectro daquilo que se colecciona.

A cartofilia como trampolim para a Etnografia.
Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador e tenho-me dedicado a tópicos como a Etnografia Portuguesa, com especial incidência na Etnografia Alentejana. A Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os bilhetes-postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias. De resto, colecciono postais topográficos de todo o país, muito especialmente do Alentejo e predominantemente de Estremoz. O meu interesse pela Cartofilia estendeu-se à Fotografia, pelo que acabei por adquirir colecções de fotografias antigas, as quais servem para ilustrar temas sobre os quais me debruço e investigo.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são os Bonecos de Estremoz, os quais descobri há mais de quarenta anos. E digo que descobri, porque efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que antes de tudo são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem e as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.

A Bibliofilia como suporte para a Escrita
Sou bibliófilo há cerca de 50 anos, com interesses focalizados na Cultura Portuguesa, ainda que espraiados por uma vasta gama de sub-domínios: Arte Popular, Arte Erudita, Etnografia, Literatura de Tradição Oral, Poesia Popular, Poesia Erudita, Teatro, História de Portugal, História de Arte, História Local, Regionalismo, Monografias, Agricultura, Dicionários, Publicações Periódicas Nacionais, Imprensa local. Daí que possua na minha biblioteca pessoal a quase totalidade da bibliografia referida no presente livro.

Um corolário natural
Sou um homem de escrita e esta é um meio de que me sirvo para dar conta de tudo aquilo que me estimula a alma. Por isso, este livro é um corolário natural de um dos meus múltiplos percursos de vida, o de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz. 

Publicado inicialmente a 16 de Novembro de 2024

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

CONCERTO DOS UHF – A heroína ali foi a música

 

UHF - Capa do album À FLOR DA PELE (1981)


CONCERTO DOS UHF – A heroína ali foi a música [1]

Crónica rock [2] ou talvez não, por Hernâni Matos

 

Crónica publicada no jornal
Brados do Alentejo nº48 (3ª série),
de 25 de Setembro de 1981


Uma viola baixo, uma viola ritmo e uma bateria poderão não fazer uma orquestra. Fazem, porém, um concerto de rock. Que o digam a meia bancada e o terço de ringue que no passado dia 18 de Setembro [3], na Esplanada Parque em Estremoz, assistiram ao concerto dos UHF.

Amplificador que difunde vibrações, volts transformados em decibéis, poluição sonora estandardizada dum conjunto desfalcado dum vocalista que é também viola ritmo.

Montanhas de amplificadores e um aparato de projectores verde-laranja-branco, verde-laranja-branco, verde-… Poça que já me doía a vista.

Corpo forrado de jeans, camisetes e ténis. Homens programados, gestos computorizados, corpos electrificados geradores de música. E nas convoluções epilépticas, violas tricotam música que as malhas que o som tece lá vão aquecendo a malta. É preciso é conjugar o verbo pular.

Embora se vissem senhoras em traje de passeio, predominava a juventude, que o rock não liga com o reumático. Havia tipos exóticos, cabelos à Black Power, rapazes tipo West Side com Marias para todos os paladares. Havia também uma bebedeira com um lenço ao pescoço e um chapéu à 3 mosqueteiros, enfiado num pau de virar tripas. É que estas coisas têm os seus próprios regulamentos e a malta tem de ir fardada a rigor.

Ambiente morno, que em Estremoz nada pega. Um palco decorado com barreiras e uma mão cheia de PSP´s e PE’s que não chegaram a fazer falta, que não houve problemas com a malta. Oh, meu! Ainda dizem que a juventude é violenta!

Na escuridão, beijos generosos que se dão e óculos escuros que se tiram, pois à noite todos os gatos são pardos.

Os cigarros que tremulam são os novos pirilampos da sociedade de consumo.

Há quem deambule por aqui e por ali e há quem beba cerveja, que o escuro não mata a sede.

As coisas aqueceram aí pelo “Modelo Fotográfico”, não percebemos se vestido se despido, que por essa altura os tímpanos já tinham pifado. O quê? Queres um fósforo? Toma lá pá! Não tens de quê!

Com o “Cavalo de Corrida” atingiu-se o auge da morneza, com a malta de braços erguidos como quem protesta contra o preço da carne, o que não era o caso, pois ali todos tinham ido ao concerto por sua livre vontade.

Quanto à encenação, aquilo tava uma maravilha, pá! Era a gaja da saia transparente que tirava fotografias à contraluz e foi o blusão despido aí por alturas do “Cavalo de Corrida”, que era p’ra a gente acreditar que aquilo estava mesmo a aquecer. E até deu p’ra haver publicidade, que um sumo que se bebe no palco é sede comercial que é preciso promover.

Vale tudo menos tirar olhos. Não pensava isto quem no outro dia ia tirando um ao António Manuel Ribeiro (vocalista - viola ritmo), pois estava acompanhando o rock ao ritmo da fisga. Aquilo de colcheias e projecteis à mistura não resultou e o Tó Manel ia ficando como o Luís Vaz, vulgo Camões.

Isqueiros que se se acendem aqui e ali nos braços erguidos ao alto, como quem paga uma promessa a Fátima.

E eis que um fogo de artifício cria a apoteose que os espectáculos devem apresentar no fim. E aqui houve encenação de pormenor na cor cardinalícia que conferiu a solenidade que a apoteose precisava ter.  E no momento em que termina o concerto, os músicos erguem as violas bem alto, como um sacerdote num templo ao proceder à consagração da hóstia.

Música que se extingue, artifício de fogo que se acaba. Resta o fumo que o vento acaba por levar. E com aquela nuvem passageira, os músicos saem pela esquerda baixa para logo de seguida, numa semi-escuridão e com blusas trocadas entre si por questões de segurança, irem direitinhos à cozinha do bufete. A traça não perdoa. É preciso encher a mula, pá!

Uma hora de espectáculo. 13 composições, 85 contos de cachet. Nada mau. E o “Estremoz”[4]? Terá reforçado a verba ou averbado o esforço?

E é isto o rock. Rock à Portuguesa, pois claro!

Quando tiver um puto, hei de lhe dizer:

- Porta-te bem ou levo-te ao rock!

 Hernâni Matos

[1] Concerto realizado pelos UHF no ringue da Esplanada Parque em Estremoz, no dia 18 de Setembro de 1981.
[2] Crónica publicada no jornal Brados do Alentejo nº48 (3ª série), de 25 de Setembro de 1981.
[3] De 1981.
[4] Clube Futebol Estremoz.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

ESTREMOZ - O neo-realismo a passar por aqui


Fig. 1 - Capa de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957)
para a 1ª edição (1952) de GANDAIA, romance
neo-realista de Romeu Correia.


Aqui se fala da oferta em 1955 do romance neo-realista
GANDAIA de Romeu Correia
 pela poetisa estremocense Maria Guiomar Ávila (1919-1992),
 à sua amiga e conterrânea,
a poetisa Maria de Santa Isabel (1910-1992). 



Preâmbulo
É conhecido o meu interesse pela arte e pela literatura neo-realistas como expressões de resistência e luta contra o fascismo.
Em Abril do corrente ano criei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, uma secção de POESIA NEO-REALISTA, onde até ao presente momento, divulguei 127 poemas de 24 poetas neo-realistas.
No nº 333, do jornal E, de 26 de Abril de 2024, comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, sob a epígrafe “POESIA E ARTE NEO-REALISTA / A luta contra o regime”, divulguei um conjunto de 6 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas e 13 poemas neo-realistas, qualquer deles a meu ver, notáveis e paradigmáticos.
Recentemente tive oportunidade de partilhar com o público, 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, pertencentes ao meu acervo pessoal. Os mesmos integraram a exposição “NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / COLECÇÃO HERNÂNI MATOS”, que de 15 de Junho a 15 de Setembro esteve patente ao público na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal de Estremoz Prof. Joaquim Vermelho. A mostra integrou-se num conjunto de iniciativas, de índole diversificada e plural, sob a epígrafe "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”, em boa hora promovidas pelo Município de Estremoz.
Paralelamente, como bibliófilo, tenho enriquecido o meu acervo de obras literárias de autores neo-realistas com aquisições no Mercado das Velharias em Estremoz. Ali vão parar livros que já integraram outras bibliotecas e que agora vão fazer outros pessoas felizes. Lá diz a lei de Lavoisier. “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Recentemente adquiri um lote apreciável de obras neo-realistas, entre as quais se situam dois livros que estão na origem do presente texto e no final vão perceber porquê.

GANDAIA – Romance de Romeu Correia
Comprei recentemente o livro GANDAIA [1] (Fig. 1), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1952), editado por Guimarães & Cia. Editora, Lisboa, com capa de Manuel Ribeiro de Pavia.

Sinopse de GANDAIA
“Nesta obra Romeu realça de uma forma muito viva a vida difícil dos tanoeiros, que decidem em boa hora criar uma cooperativa, que acabaria por ser boicotada pelos donos dos armazéns de vinho da Margem Sul...
O neo-realismo continua muito presente neste livro, com Romeu a falar do povo e de todos os seus problemas, mas também da sua ligação ao associativismo, essa marca almadense, neste caso particular, à Incrível Almadense.” [2]

Dedicatória e assinatura de posse
Logo na primeira página tem uma dedicatória, manuscrita a tinta azul: “Para a Maria Palmira, com um grande abraço de amizade da Maria Guiomar Ávila / 16-IV-955” (Fig. 2).
A terceira página ostenta a assinatura de posse: “Maria Palmira” (Fig. 3)

Fig. 2 - Dedicatória de Maria Guiomar a Maria Palmira.

Fig. 3 - Assinatura de posse de Maria Palmira.

Fig. 4 - Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses
 e Vasconcellos Alcaide (1910-1992).

Fig. 5 - Maria Guiomar Ávila (1919-1992).

Quem foi Maria Palmira? Trata-se de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos Alcaide (1910-1992) (Fig. 4), poetisa estremocense que com o pseudónimo literário de Maria de Santa Isabel, publicou: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior (1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997).
O seu avô paterno, Alberto Osório de Castro (1868-1946), foi magistrado, político, escritor e poeta. Passou largos anos em Goa, Moçâmedes, Timor e Luanda. Foi ministro da Justiça do Governo de Sidónio Pais e amigo fraterno do magistrado, professor e poeta Camilo Pessanha, (1867-1936).
A sua tia-avó, Ana de Castro Osório (1872-1935), grande paixão do poeta Camilo Pessanha (1867-1926), foi escritora, jornalista, pedagoga, feminista, maçónica e militante republicana.
Quem foi Maria Guimar Ávila? Trata-se de Maria Guiomar Ávila (1919-1992) (Fig. 5), professora e poetisa, natural de Estremoz, que publicou postumamente o livro de poesia “À janela da Vida” (1998).

OS TANOEIROS – Romance de Romeu Correia
Comprei também recentemente o livro OS TANOEIROS (Fig. 6), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1976), editado por Parceria A. M. Pereira, Lisboa, com capa de H. Mourato. A obra OS TANOEIROS, constitui uma versão refundida de GANDAIA, publicada 24 anos depois, com o título que tinha sido proibido pela Censura.

Fig. 6 - Capa de H. Mourato para a 1ª edição (1976) de
OS TANOEIROS, romance neo-realista de Romeu Correia.

Sinopse de OS TANOEIROS
No Prefácio diz Romeu Correia: “Os Tanoeiros é um romance que trata da decadência desta indústria, quando o vasilhame de madeira começa a sofrer concorrência de novos materiais. Os navios-tanques, os camiões cisternas, os depósitos de cimento, os recipientes de ferro, vão apressar o dobre de finados dos tanoeiros, desses artífices que, durante séculos, prepararam as aduelas de madeira macia, domando-as amorosamente ao fogo, para logo as cintar com arcos de aço. A história, que tem o seu início nos já longínquos anos trinta, termina vinte anos depois, em plena metade do nosso século, tão decisivo quão cruel no seu inexorável progresso técnico.
Aflorando os mil problemas do agregado familiar do homem-tanoeiro, as suas esperanças, lutas e canseiras numa hora de agonia para tão remota e respeitada profissão, este livro ressoará, assim, talvez, dramaticamente, como um requiem por esse velho ofício.”

Dedicatória
A primeira página do livro ostenta uma dedicatória do autor (Fig. 7), manuscrita a tinta preta: “Para a Sr.ª D. Maria Fernanda Andrade, com muita estima do Romeu Correia 14/7/1980”.

Fig. 7 - Dedicatória autógrafa de Romeu Correia a
D. Maria Fernanda Andrade.

Epílogo
Conheci pessoalmente as duas poetisas. Maria Guiomar Ávila morava no nº 18 da rua 5 de Outubro, em Estremoz, no edifício onde após o 25 de Abril funcionou a primeira sede do PPD. Maria Palmira morava na Casa da Horta Primeira na Rua da Levada em Estremoz e era casada com Roberto Augusto Carmelo Alcaide (1903-1979), proprietário dum armazém de tabacos no Largo General Graça, autodidacta, pintor, caricaturista, maquetista, cenógrafo e dramaturgo. Roberto era irmão do tenor lírico Tomaz de Aquino Carmelo Alcaide (1901-1967), ambos meus parentes afastados do ramo dos “Carmelo”.
Não me surpreende que Maria Guiomar Ávila tenha oferecido a Maria Palmira, o livro GANDAIA de Romeu Correia. Pese embora o facto de elas serem distintas senhoras da sociedade local de então, com um posicionamento ideológico bastante diferenciado do de Romeu Correia, eram senhoras cultas, receptivas às novidades literárias da época, muito em especial Maria Palmira de cuja biblioteca pessoal possuo exemplares que o confirmam. Para além disso, o mérito de Romeu Correia como escritor, já tinha sido reconhecido por críticos literários da época, como João Gaspar Simões (1949), António Quadros (1050) e Julião Quintinha (1952).
Creio que agora o leitor está em condições de perceber a razão do título escolhido para o presente texto “ESTREMOZ – O neo-realismo a passar por aqui”.

[1] “Gandaia” é um termo pertencente à gíria popular, cujo significado é: “Acto de remexer o lixo à procura do que nele se pode aproveitar”.
[2] Sinopse recolhida em https://tradestories.pt/carlos-lopes/livro/gandaia .