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domingo, 16 de novembro de 2025

Estórias do autor

 

Hernâni Matos (1946 - ). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.


O presente texto integra o meu livro
publicado pelas Edições Afrontamento
no Outono de 2018


Recolector
Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que sou recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da minha alma. Nessa conjuntura, tornei-me filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o meu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no Mercado das Velharias em Estremoz, no qual sou presença habitual e onde recolecto objectos que, duma forma virtual, pré-existiam no meu pensamento.

Coleccionador
Desde os dez anos de idade que transporto na massa do sangue o espírito de coleccionador. Marca genética ou atávica, não sei, mas que veio ao de cima lá por essa idade, veio. E é um facto tão real como o odor da flor de esteva ou o castanho da terra de barro.
Coleccionar é reunir num todo, objectos que têm, pelo menos, uma característica ou funcionalidade comum. A motivação para o fazer pode ser diversa, como distintas podem ser as consequências de uma colecção. Pode ficar guardada numa caixa ou arrumada numa prateleira de estante ou mesmo numa vitrina, como também pode ser objecto de estudo numa procura de respostas, desde sempre procuradas pela alma humana.
Há objectos que, pelos mais diferentes motivos, somos levados a coleccionar. E nenhuma colecção é estática, mas antes bem pelo contrário, dinâmica, uma vez que com o porvir há que a reformular, pelo aumento do grau de exigência imposto e mesmo fruto de uma certa especialização, os quais diminuem o espectro daquilo que se colecciona.

A cartofilia como trampolim para a Etnografia.
Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador e tenho-me dedicado a tópicos como a Etnografia Portuguesa, com especial incidência na Etnografia Alentejana. A Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os bilhetes-postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias. De resto, colecciono postais topográficos de todo o país, muito especialmente do Alentejo e predominantemente de Estremoz. O meu interesse pela Cartofilia estendeu-se à Fotografia, pelo que acabei por adquirir colecções de fotografias antigas, as quais servem para ilustrar temas sobre os quais me debruço e investigo.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são os Bonecos de Estremoz, os quais descobri há mais de quarenta anos. E digo que descobri, porque efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que antes de tudo são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem e as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.

A Bibliofilia como suporte para a Escrita
Sou bibliófilo há cerca de 50 anos, com interesses focalizados na Cultura Portuguesa, ainda que espraiados por uma vasta gama de sub-domínios: Arte Popular, Arte Erudita, Etnografia, Literatura de Tradição Oral, Poesia Popular, Poesia Erudita, Teatro, História de Portugal, História de Arte, História Local, Regionalismo, Monografias, Agricultura, Dicionários, Publicações Periódicas Nacionais, Imprensa local. Daí que possua na minha biblioteca pessoal a quase totalidade da bibliografia referida no presente livro.

Um corolário natural
Sou um homem de escrita e esta é um meio de que me sirvo para dar conta de tudo aquilo que me estimula a alma. Por isso, este livro é um corolário natural de um dos meus múltiplos percursos de vida, o de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz. 

Publicado inicialmente a 16 de Novembro de 2024

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A tradição oleira de Estremoz

 

Púcaro com decoração polida. Produção da Escola Industrial António Augusto Gonçalves.
Finais dos anos 30 do sé. XX.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

A olaria tradicional de Estremoz é extremamente rica em múltiplos aspectos. Na verdade, observando-a como um todo, revelam-se de imediato uma grande variedade de funcionalidades, tipologias, morfologias, tipos de decoração e tamanhos. Como tal, é uma das expressões mais elevadas da nossa identidade cultural local.

Funcionalidade
A funcionalidade das peças oláricas de Estremoz é servirem predominantemente de vasilhame para conter e transportar água, conter flores, dinheiro, velas, ou então servirem de elementos decorativos. Algumas funcionalidades deixaram de ser utilizadas, devido ao desenvolvimento tecnológico. É o caso dos tijolos, telhas, canos, sifões e manilhas.

Tipologia
É diversificada a tipologia das peças oláricas de Estremoz. As principais são: Assadores, Barris, Bilhas, Cafeteiras, Cântaros, Cantis, Cinzeiros, Copos, Fogareiros, Garrafas, Jarras, Mealheiros, Medalhas, Moringues, Palmatórias, Pratos, Púcaros, Reservatórios, Troncos, Vasos de flores, etc.

Morfologia
A uma dada tipologia de objecto olárico podem corresponder várias morfologias. Assim um moringue pode ter um corpo ovóide, esferóide, cilindróide segundo a vertical ou a horizontal, bem como qualquer outra forma distinta das anteriores.

Dimensões
Em geral, uma peça olárica de determinada tipologia e com uma dada morfologia, existe em vários tamanhos, os quais eram numerados de tal modo que ao tamanho maior correspondia o número maior. Este número pode aparecer gravado na base da peça ou aí marcado a giz, depois da cozedura ou então nem sequer ter sido marcado.

Proporções
É óbvio que as proporções entre as 3 dimensões de qualquer peça olárica no seu todo ou entre os seus componentes, não é arbitrária. São proporções que os oleiros de várias gerações foram perpetuando no barro, após a magia das suas mãos as ter tornado harmoniosas.

Tipos de decoração
Os tipos de decoração utilizados nas peças oláricas de Estremoz são de cinco tipos principais:
- 1 - O polido, que utiliza o contraste entre a superfície baça e os motivos que foram polidos com recurso a um seixo ou a um teque;
- 2 - O empedrado, no qual meniscos convexos de argila, decorados com minúsculos fragmentos de quartzo, são colados à peça com barbutina;
- 3 - O riscado, que recorre a sulcos gravados na superfície, com recurso a um teque, um arame, um prego ou uma sovela;
- 4 - O picado, que utiliza formas geométricas que são gravadas na superfície por percussão de objectos ou perfis cuja secção tem uma determinada geometria, como é o caso dos invólucros de bala e dos cartuxos de caça;
- 5 - A relevada, na qual brasões de Estremoz ou outros, assim como inscrições como “RECORDAÇÃO DE” ou “LEMBRANÇA DE”, bem como elementos fitomórficos (folhas, bolotas, ramos de sobreiro) ou zoomórficos (coelhos, lagartos) são moldados em barro e colados com barbutina à superfície;
Para além disso são conhecidos exemplares que ostentam uma decoração obtida pela utilização conjunta de alguns dos tipos referidos anteriormente.

Marcas
O levantamento das marcas de olaria de Estremoz é um trabalho que ainda está em curso, que precisa de ser continuado e que nunca se pode dar por concluído. Para além das marcas de fabrico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente, podem existir também marcas de tamanho, gravadas manualmente ou manuscritas a giz. Podem, finalmente, aparecer ainda marcas simbólicas com significado apotropaico, apostas por carimbo ou gravadas manualmente. Caso das estrelas de 5 e de 6 pontas (Signo de Salomão), do trevo de 4 folhas ou da cruz trevolada).

Estética
A estética das peças oláricas de Estremoz é determinada por quatro factores distintos, mas de igual importância: o cromatismo vermelho do barro, aliado à morfologia, às proporções e à decoração. É da conjugação desses factores, sabiamente combinados, que resulta a excelência das peças oláricas tradicionais de Estremoz, por transmitirem sempre harmonia, perfeição, beleza e elegância.

Hernâni Matos

Moringue antropomórfico com decoração polida.
Fabrico da Olaria Alfacinha.

Depósito com tampa, onde estão patentes 3 tipos de decoração: 
empedrado, o riscado e o polido. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Pote com tampa e duas asas, no qual foram usados 2 tipos de decoração:
 o riscado e o picado. Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).

Jarro de forma cilíndrica com decoração relevada fitomórfica,
picada e polida.

Bilha em forma de tronco, com decoração relevada, brasonada, fitomórfica, 
zoomórfica, picada e polida.

Moringue com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Jarro de forma ovóide com decoração relevada fitomórfica, picada e polida.

Garrafão com decoração polida, picada, relevada fitomórfica e brasonada.
Fabrico desconhecido. 1ª metade do séc. X

Prato com decoração relevada. Início do séc. XX. Fabrico da Olaria Alfacinha.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

O curso natural das coisas

 

Fig. 1 - Com cerca de 1 ano de idade, no Largo do Espírito Santo, em Estremoz.

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Nasci em 1946 no número 14 do Largo do Espírito Santo em Estremoz, mesmo ali ao cantinho (Fig. 1 e Fig. 2). Ao meio da Rua dos Banhos, do lado direito, morava o mestre oleiro e barrista Mariano da Conceição. Bem perto da casa dos meus pais era também a rua do Lavadouro, onde ao meio funcionara a Cerâmica Estremocense de Mestre Emídio Viana. Não seria isto um augúrio de que iria estar ligado à olaria? É caso para dizer que “Eu não acredito em coincidências, mas que as há, há”.

Fig. 2 - Largo do Espírito Santo - Estremoz. Foto Tony, cerca de 1950.

Na minha juventude, os passeios pelo Rossio levavam-me invariavelmente a deter nos stands da Olaria Alfacinha (Fig. 3) e da Olaria Regional, onde mirava e remirava as peças oláricas, mas onde não comprava nada, não só porque não chegara ainda a altura de o fazer, mas porque como jovem de então, só tinha cotão nos bolsos das calças.

Fig. 3 - Stand da Olaria Alfacinha no Rossio Marquês de Pombal em Estremoz, no ano de 1974.

Em 1963, a participação da olaria e da barrística no Cortejo Etnográfico integrado nas Festas da Exaltação da Santa Cruz (Fig. 4 a Fig. 11) foram determinantes na tomada de consciência de um jovem de 17 anos como eu, de que tanto a olaria como a barrística eram manifestações vigorosas não só da identidade cultural estremocense, como da identidade cultural alentejana.


Fig. 4 - Acarreto de barro previamente extraído do barreiro.

Fig. 5 - Oleiro  modelando uma peça na roda.

Fig. 6 - Brunideiras decorando o vasilhame de barro antes de ser cozido.

Fig. 7 - Bonequeiras modelando e pintando Bonecos de Estremoz. 

Fig. 8 - Fabrico de tijolo burro por moldagem.

Fig. 9 - Retirados dos moldes os tijolos burros são postos a secar ao sol durante vários
dias, antes de ser cozidos no forno

Fig. 10 - Uma carrada de lenha para alimentar o forno onde são cozidas as peças de barro.

Fig. 11 - Alimentação com lenha do forno onde será  efectuada a cozedura
 das peças de barro.  

Entretanto, ingressei na Universidade e só em 1972 comecei a comprar objectos oláricos e Bonecos de Estremoz, após ter ingressado como professor na então Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Eram compras às pinguinhas, já que em início de carreira ganhava pouco mais do que coisa nenhuma,

Naturalmente, que as aquisições causadas pelo fascínio do barro precisavam de ser consolidadas com conhecimentos. Foram determinantes na minha formação como coleccionador, livros como “Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho (Fig. 12), “Algumas palavras acerca de Púcaros de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos,(Fig. 12), “La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux (Fig. 13),e mais tarde “Barros de Estremoz”, de Joaquim Vermelho (Fig. 13),, a que se seguiram outros livros e brochuras, adquiridos muitas vezes no mercado alfarrabista.

Fig. 12 - Barros de Estremoz” de Azinhal Abelho e  “Algumas palavras acerca de Púcaros
de Portugal” de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Fig. 13 - La céramique populaire du Haut-Alentejo” de Solange Parvaux e “Barros de
Estremoz”, de Joaquim Vermelho.

As leituras levaram-me a formular questões relativamente àquilo que leio e aos objectos oláricos que vou adquirindo, pelo que a minha formação científica me induz a investigar, visando "Pôr o preto no branco".

Em 2009, criei o blogue “Do tempo da Outra Senhora” (Fig. 14), onde vou publicando escritos de olaria e de barrística de Estremoz, com a pedalada que me é possível, pois as minhas motivações culturais dispersam-se simultaneamente por outros centros de interesse. Foi assim que em 2018 publiquei o livro “BONECOS DE ESTREMOZ” (Fig. 15), dado à estampa pelas Edições Afrontamento.

Fig. 14 - Aspecto parcial da página de entrada do blogue "Do Tempo da Outra Senhora".

Fig. 15 - "BONECOS DE ESTREMOZ”, de Hernâni Matos. Edições Afrontamento, 2018.

Com a morte em 2016 de Mestre Mário Lagartinho, decano da olaria e o último oleiro de Estremoz, constituiu uma tragédia cultural. Tornou-se real a necessidade de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, acção que em devido tempo veio a ser despoletada pelo Município de Estremoz, em parceria com entidades oficiais para isso vocacionadas. 

Fig. 16 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de Estremoz.
 Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.

Fig. 17 - Uma aula do 1º módulo do Curso de Olaria em 2021. Fotografia da ADOE.

Creio que a realização do presente colóquio, integrado neste 1º Encontro Nacional de Olaria, indicia que os trabalhos de preservação e salvaguarda da olaria tradicional de Estremoz, marcham no bom caminho. Creio igualmente que nessas tarefas de missão é relevante o papel dos coleccionadores, no duplo papel de colectores e de investigadores, produtores de conhecimento, que dão um inestimável contributo para a arte avançar. Daí que me atreva a efectuar aqui, ainda que duma forma sucinta, aquela que é na minha óptica a caracterização da tradição oleira de Estremoz.

Hernâni Matos

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

As primeiras memórias da olaria


Aguadeiro (2016). Ricardo Fonseca (1986 - ).

Aguadeiro. José Moreira (1926-1991).

Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

As minhas primeiras memórias acerca da olaria de Estremoz são registos etnográficos e remontam aos tempos da minha infância. Têm a ver com o consumo de água em casa de meus pais. A água era guardada em cântaros de barro, o que constituía prática corrente em todas as casas da urbe até à inauguração da rede pública de abastecimento de água, em 26 de Maio de 1952.

Até então, a água era distribuída por aguadeiros que a acarretavam em cântaros de folha de Flandres ou de barro, transportados em cangalhas assentes no dorso de burros ou em divisórias de carroças para o transporte de água.  Recolhida nas fontes, assim ia parar à casa dos fregueses. À chegada, à porta da rua, a água era transvasada do cântaro que a transportara para um cântaro de barro do freguês.

Os aguadeiros eram figuras do quotidiano diário da época que ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Mulher das castanhas. Oficinas de Estremoz dos finais do
séc. XIX. Ex-colecção Emídio Viana.

Mulher das castanhas (1938). Ana das Peles (1869-1945).
 Ex-colecção Azinhal Abelho. 

Outras memórias igualmente da minha infância têm a ver com a venda de castanhas à porta das tabernas. Aí, mulheres sentadas em cadeiras, assavam castanhas em assadores de barro, aquecidos por fogareiros a carvão, igualmente de barro.

Tal como os aguadeiros também as mulheres das castanhas, como figuras do quotidiano diário da época, ficaram perpetuadas na barrística de Estremoz.

Qualquer das memórias desperta em mim outras memórias. Assim, a memória dos aguadeiros carrega consigo a memória da frescura e do sabor inigualável da água contida em recipiente de barro. Por outro lado, a memória das mulheres das castanhas transporta consigo o odor e o sabor das castanhas assadas. É caso para dizer que as memórias são como as cerejas, vêm umas atrás das outras.

Hernâni Matos

domingo, 28 de setembro de 2025

O guardador de memórias

 

Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção Joaquim Vermelho.


Excerto da comunicação por mim proferida
no decurso do colóquio "RECENTRAR / Memória, Barro e Saber-fazer", 
que entre 20 e 21 de Setembro teve lugar no Castelo de Évora Monte,
 integrado no Encontro Nacional de Olaria.

Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra.

Ao longo da minha vida de coleccionador reuni mais de 200 objectos oláricos de diferentes tipologias, morfologias, funcionalidades e tamanhos, os quais têm entre si um elo comum: foram produzidos pelas extintas olarias de Estremoz. São, pois, memórias do passado. Ao reunir um acervo pessoal dessas peças, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.

Estas memórias guardadas, conjuntamente com muitas outras memórias, integram a chamada memória colectiva, a qual nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.

É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.

Como guardador de memórias, assumo-me como fiel guardião da nossa ancestral matriz identitária, incumbido duma nobre missão: a de transmitir às novas gerações, a importância e a riqueza da pluralidade do passado e das tradições do nosso povo, para que elas tenham consciência de que urge resistir a uma globalização castrante, que assimptoticamente procurará reduzir à chapa zero, as nossas identidades culturais, a nível local, regional e nacional.

Hernâni Matos

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

79 voltas ao Sol

 

O passageiro terrestre com Fátima, sua mulher e Catarina, sua filha.

Escravo involuntário da atracção gravitacional, viajo pelo cosmos como passageiro terrestre. A minha velocidade translacional em relação ao Sol é de 30 Km/s ou seja 10.000 vezes mais lenta que a luz do Sol que nos ilumina. Não sou dado a grandes velocidades. Vão perceber porquê.

No passado dia 19 de Agosto concluí o meu 79º passeio solar. Convenhamos que começa a ser monótono, repetitivo e mesmo cansativo. Com a agravante de ter plena consciência de que como passageiro terrestre a duração do meu passeio ser finita, ainda que indeterminada.

O meu corpo em desagregação lenta mas inexorável como todos os outros, é regido pelas leis da Física Quântica. Daí que quando a minha viagem chegar ao fim, cumprir-se-á uma espécie de lei de Lavoisier generalizada, já que “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A minha estrutura orgânica decompor-se-á numa miríade de átomos de elementos constitutivos da Tabela Periódica, com especial predominância de átomos de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, cálcio, fósforo, potássio, enxofre, sódio, cloro e magnésio. Libertos do meu corpo irão desempenhar novos papéis, novas funções, novas missões, sabe-se lá quais. A minha decomposição orgânica será também acompanhada da libertação de energia que mantinha coesa a minha estrutura orgânica. Também ela irá desempenhar novos papéis, novas funções, novas missões.

O fim da viagem cósmica é um acto de libertação das amarras gravitacionais da matéria e do espaço-tempo-energia.  A partir daqui há um universo de crenças que não quero ferir por respeito às crenças que constituem um direito individual de cada um. Para além disso esta conversa já vai longa.

Como passageiros terrestres desta viagem cósmica em que nos vemos envolvidos, cumprimos rituais tribais cuja origem se perdem nos alvores do tempo. Uma delas é assinalar anualmente cada volta ao Sol em convívio e comunhão de espírito com a Família e amigos.

No dia em que completei a mais recente volta ao Sol, optei por me cingir à companhia da célula familiar e lá fui com a Fátima, minha mulher e a Catarina, minha filha, rumo à Mercearia Gadanha, prestigiado restaurante estremocense, que figura no Guia Michelin e onde fomos principescamente atendidos. Abstenho-me de revelar a ementa, mas asseguro-vos que o ritual tribal de comemorar mais uma volta completa ao Sol, foi deveras gratificante e reconfortante.

 Hernâni Matos


Imagem recolhida com a devida vénia no website da Gadanha Mercearia, em Estremoz.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Hernâni, meu velho amigo - António Simões


António Simões (1934- )

Poeta, professor, pedagogo e tradutor beringelense. Licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra. Colaborador da imprensa regional: Brados do Alentejo (Estremoz) e Rodapé (Beja). Publicou poesia na imprensa nacional: Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Jornal de Letras, O Século. Publicou igualmente na imprensa regional: Revista Convívio (Coimbra). Obras: Soneto de água e outros (Poesia, 1994), A Festa das letras (Poesia, 1995), Minha mãe amassa o pão (Poesia, 2001), Antologia de Poesia Anglo-Americana (Bilingue, 2002), Amor é um Fogo que Arde sem se Ver e outros sonetos (Poesia, 2004). Traduziu para a Campo das Letras, a partir do Inglês, livros de Andy Warhol: Anjos, Anjos, Anjos e Amor, Amor, Amor e as histórias para crianças: Noite de Natal, É duro ter 5 anos e Babushka. Tem diversas traduções na antologia de poemas Os Dias do Amor, publicada em Janeiro de 2009 pela editora Ministério dos Livros.


Hernâni. meu velho amigo (*)
António Simões (1934- )



Hernâni, meu velho amigo
E grande coleccionista –
Quer o novo, quer antigo,
Vai comprar onde ele exista!


Assim que tu abalaste,
Pus-me a pensar no assunto.
Pensei pouco ou pensei muito,
Foi com muita ou pouca arte? –
Deixemos isso de parte,
Enquanto a rimar prossigo.
Eis a quadra, mais não digo,
Outros dirão, que não eu –
Minha mente a concebeu,
Hernâni, meu velho amigo.

A quadra já está feita,
E pra que não se esqueça,
Vai de e-mail, mais depressa.
‘spero que chegue direita.
Inspiração desta feita
Não se esquivou ao artista –
Não há ninguém que resista
Ao seu sagrado fulgor,
Hernâni que és professor
E grande coleccionista.

Neste frio mês de Janeiro,
Com vento e chuva feroz,
Às vezes ficamos sós
A pensar junto ao braseiro.
A gente pensa primeiro
No mundo cheio de p’rigo
Em que irmão é inimigo –
E tu segues porfiando,
Hernâni coleccionando,
Quer o novo, quem antigo.

Enquanto eu meditava,
Quem é coleccionador
Vai tratando com amor
Da peça coleccionada,
Antes ade a ter arrumada
Nalgum sítio bem à vista.
E pra que nunca desista
D’ampliar a colecção,
Objecto de estimação
Vai comprar onde ele exista.

António Simões (1934- )

--------- 
(*) – A propósito da quadra que me foi pedir para um mote integrado na evocação de Tomás Alçalcaide Alcaide (2011?).

quinta-feira, 8 de maio de 2025

A rua onde eu moro, que impressão me faz

 

Pedras há muitas


Há 52 anos que moro na rua de Santo André em Estremoz e há mais de 70 que habito na área circundante da vetusta Igreja de Santo André, demolida criminosamente nos anos 60 do século passado, vítima da sanha empreendedora do autodenominado Estado Novo, o qual não olhou a meios para ali construir o actual Palácio da Justiça.
Tenho plena consciência de que a “minha” rua não é o centro do Universo pelo facto de eu lá morar, nem tampouco o centro da cidade, apesar de se situar na sua zona central, contígua ao Rossio Marquês de Pombal, considerado a sala de visitas da urbe. Contudo, a minha sensibilidade leva-me a ter a percepção da realidade de tal microcosmo. Daí que o imperativo da minha consciência cívica me leve a partilhar com o leitor, em tom coloquial, algumas preocupações que por um motivo ou por outro, grassam o meu espírito.

Pedras há muitas
No início do passado mês de Fevereiro rebentaram as águas à terra-mãe, mesmo à entrada da rua de Santo André, junto ao local onde resido. Depois da rápida e bem-sucedida intervenção dos competentes serviços, o problema estava resolvido já no dia 4. Como memória desse dia, decorridos que são 3 meses, perduram as pedras da calçada, encostadas à parede lateral do Palácio da Justiça, como se de contraforte se tratasse. É sabido que a Justiça em Portugal está a precisar de uma reforma profunda. Porém, daí até pôr contrafortes nos Palácios da Justiça que por aí há, vai uma grande distância. É caso para dizer:
- Pedras há muitas, calceteiros é que não!

A sede do felino

A sede do felino
Há dias, em tarde soalheira, fui dar com um gatinho abandonado a beber água de uma cova da calçada, que a chuva da véspera ali vertera. Trata-se de uma das muitas concavidades presentes no local, cuja existência remonta ao tempo dos anteriores senhores. São depressões que teimam em manter uma convivência indesejada com os transeuntes e os veículos que por ali transitam. A imagem enternecedora do gatinho sequioso perdura ainda na minha retina. De tal modo que sou levado a perguntar:
- Que acontecerá ao gatinho se taparem as covas?

 O cemitério de beatas

O cemitério de beatas
A calçada negra, irregular e escalavrada, encontra-se em determinada zona, pejada e conspurcada por uma multiplicidade de beatas nela semeadas, preenchendo os interstícios das pedras. Em tempos de pandemia foram para ali atiradas, pisadas e esmagadas por fumadores, no decurso das infindáveis filas junto à padaria e ao multibanco. Por ali permanecem, vítimas da sua e nossa pouca sorte de termos um tal cemitério em plena via pública. Nem o céu as salvou. Pelo contrário, as águas celestiais vertidas por São Pedro sempre que assim o entendeu, encarregaram-se do resto, consolidando no solo as beatas jazentes. Qualquer delas, em ar de desafio, parece dizer-nos:
- Daqui não saio, daqui ninguém me tira!
No tempo em que havia varredores, elas já não estariam ali. Mas hoje, quando as vassouras são passeadas pela calçada, só é recolhido o lixo maior. Por isso, as beatas ali permanecem como libelo acusatório da falta de civismo dos fumadores, bem como indício e denúncia muda da falta de higiene urbana no local.
Todavia, o despontar das ervas nos passeios, associado a um cíclico renascer da natureza, constituem um lenitivo para as nossas mágoas e um hino de esperança em melhores dias que hão de vir.

Todos ao molho e fé em Deus

Todos ao molho e fé em Deus
No tempo da coligação da mãozinha com as setas (1986-1990) foi criado um parque de estacionamento em cima do passeio, junto aos contentores, o qual sem sobressaltos tem sido utilizado ao longo do tempo. A mãozinha livrou-se das setas (1990-1993), mas o parque de estacionamento continuou, prosseguindo no tempo da foicinha (1994-2005), a que se seguiu novamente o regresso da mãozinha (2005-2009). Depois, foi a vez do polegar levantado, à maneira de César (2009-2021). Retirado este de cena, lá veio novamente a mãozinha (2021-2025) e o parque continuou a ser usado. Por outras palavras, as pessoas têm usufruído do parque de estacionamento ao longo de quase 40 anos.
Acontece que por muitos afazeres ou por estarem distraídos, os senhores nos quais descarregamos periodicamente o papelinho, se esqueceram todos de legalizar o estacionamento, colocando no local a sinalização vertical prevista na lei. Tal omissão foi corrigida recentemente com a aposição no local de sinalização vertical, que restringe o estacionamento a 3 lugares, visando facilitar o acesso aos contentores do lixo e o trânsito pedonal para a Rua 5 de Outubro. Tratou-se de uma medida acertada, uma vez que o estacionamento no local foi sempre do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”, como é timbre do Zé português.
Apesar de tudo, o problema não ficou resolvido, uma vez que a instalação da sinalização vertical não foi acompanhada da marcação horizontal a amarelo no pavimento, identificando a localização dos 3 lugares de estacionamento. Na sequência dessa omissão, continua “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Por outras palavras, o estacionamento no local continua a ser do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”. Daí que cada um vá estacionando o carro onde lhe dá mais jeito. Até ver.
Publicado no jornal E nº 356 de 8 de Maio de 2025

terça-feira, 15 de abril de 2025

Benfica - Arouca

 

Bacia de barro vermelho vidrado, de Redondo. Decoração esgrafitada e pintada
com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.

O emproamento verbal de quem se regozija com o empate Benfica-Arouca, leva-me a concluir que “A mau falar, boa resposta dar”, acrescido de “Quem muito fala, pouco acerta” e como nada está decidido, remato proclamando: “Bom é saber calar até ser tempo de falar”.

- VIVA O BENFICA!

A matriz do meu pensamento, expressa e veiculada através do texto supra, é invariante e inalterável. Não reage a diatribes verbais reactivas, independentemente da sua origem e motivação. Fazê-lo seria contemporizar com o clima tóxico alimentado pelo fanatismo que grassa nas hostes clubistas.
A meu ver, o exemplo a apresentar à juventude, que é o futuro, é a da elevação e da verdade desportiva, a qual deve ser transversal, abrangendo dirigentes, jogadores e adeptos. O contrário é suicídio dos intervenientes e a morte do desporto. Para tal não podem contar com o meu contributo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Rua de Santo André em Estremoz vai ter cara lavada

 


Estremoz, 1 de Abril de 2025

Foi tornado público que o Município de Estremoz deliberou recentemente regularizar a intransitável calçada da Rua de Santo André, bem como combater o estacionamento selvagem ali patente.

Trata-se de um gesto de elevada compreensão pelas dificuldades sentidas pelo trânsito pedonal naquela artéria citadina.

Trata-se igualmente de um gesto magnânimo relativamente aos peões que por ali se vêem forçados a transitar, não só moradores como também clientes dos estabelecimentos comerciais instalados naquela via urbana.

Pessoalmente, congratulo-me com o alcance social das providências tomadas pelo Município.

Bem hajam!

Hernâni Matos

(Morador há 52 anos na Rua de Santo André,
onde até ao presente era frequente ouvi-lo vociferar:
- ONDE É QUE JÁ SE VIU UMA RUA ASSIM!)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O reencontro de dois caminhantes

 

Mestre Xico Tarefa e Hernâni Matos, dois caminhantes que se reencontram na sede
da ADOE.  De que estarão a falar? De olaria, pois claro!


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É sabido que não há caminho, como nos ensina o poeta sevilhano António Machado: “Caminhante, são teus rastos / o caminho, e nada mais; /caminhante, não há caminho, / faz-se caminho ao andar.” (…).

Cada um de nós segue o seu próprio caminho, o que não impede que alguns caminhos se cruzem. Foi assim que o meu caminho e o de Mestre Xico Tarefa se cruzaram em 1980 no Terreiro do Paço Ducal de Vila Viçosa. Tal ocorreu no decurso do I Encontro de Olaria Regional do Alto Alentejo, que ali teve lugar entre 4 e 15 de Junho desse ano.

Andámos ambos por ali e integrávamos a Comissão Organizadora do Encontro. Eu em representação da Casa da Cultura de Estremoz e ele em representação do Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça. As nossas preocupações de então centravam-se na necessidade de salvaguarda da matriz identitária das olarias de cada Centro Oleiro do Alto Alentejo e na tomada de medidas que impedissem a descontinuidade de produção das olarias.

O Mestre Xico Tarefa era um operacional no terreno, que não parava quieto, andava sempre para aqui e para ali, a tratar de uma coisa ou outra. Entre as múltiplas tarefas de que foi encarregue esteve a produção de um prato comemorativo do Encontro, a ser oferecido aos participantes. Daí eu estar na posse de um exemplar que tive a honra de receber na época, o qual está na génese da minha condição de coleccionador de louça de barro vidrado de Redondo. O trabalho de roda é de Mestre Xico Tarefa e a pintura e o esgrafitado são da autoria de Mestre Álvaro Chalana (1916-1983).

Ao receber de bom grado o prato comemorativo do Encontro, herdei uma pesada responsabilidade e brotou em mim o fascínio pela cerâmica redondense, que nunca mais parou e cuja chama se mantem bem viva. Aquele prato tem para mim especial significado. Foi o primeiro exemplar da minha colecção de cerâmica redondense. Por mais raro e mais valioso que seja outro espécime adquirido ou que venha a adquirir, aquele ocupará sempre um lugar muito privilegiado no meu coração. É que foi o primeiro da minha colecção, saído das mãos de Mestre Xico Tarefa e de Mestre Álvaro Chalana e que ficou a selar o cruzamento do meu caminho com o primeiro destes mestres.

Decorridos 45 anos sobre o primeiro cruzamento dos nossos caminhos, voltámos a cruzar-nos. Desta feita, o terreiro é outro. Trata-se da ADOE - Associação Dinamizadora da Olaria de Estremoz. Ele como formador, na qualidade de Mestre Oleiro. Eu, como consultor had hoc, na qualidade de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz.

De então para cá, o Mestre Xico Tarefa tem desenvolvido uma carreira notável como Mestre Oleiro e como formador das novas gerações, o que muito me regozija e enche de orgulho como seu amigo e admirador em que entretanto me tornei.

A sua obra fala por si e é um exemplo paradigmático para os mais novos. Encerra em si própria, o respeito pela ancestralidade da olaria popular alentejana, temperado pela criatividade inovadora que lhe brota da alma e que com fidelidade se transmite às mãos mágicas que são as suas.

Obrigado Mestre pela beleza criada para usufruto e deleite de espírito de todos aqueles que apreciam o seu trabalho.

Bem-haja, Mestre Xico!


Publicado no jornal E nº 350, de 14 de Fevereiro de 2025