segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Os bailes das Sociedades



Em Estremoz, nos anos 60 do século passado, uma forma de encostar a calça à saia, era meter pé de dança nos bailes das Sociedades.
Os ricos iam aos bailes do Círculo. A classe média ia aos Artistas. E todos iam às Sociedades mais populares como a Lusitana, a União, a Porta Nova, os Bombeiros e o Orfeão. Havia bailes no aniversário de cada Sociedade, pelo Carnaval, pela Pinhata, pelo Natal, pela Passagem do Ano e pelo Ano Novo. Os salões eram os de cada colectividade e ainda o chamado Jardim de Inverno, no Teatro Bernardim Ribeiro, onde o Orfeão organizava os seus bailes.
Os homens iam aos bailes de fato e gravata ou de papilon e as senhoras com o seu melhor vestido. O mesmo se passava com os respectivos rebentos, fossem rapazes ou raparigas.
Para se entrar nos bailes tinha que se ser sócio e ter as quotas em dia. Podia-se também ser apresentado por um sócio, desde que não se fosse natural da cidade.
Os ritmos eram outros. Dançava-se: bolero, tango, passodoble, valsa, mambo, cha-cha-cha, merengue e uns cheirinhos de bossa nova, de samba e de rock and roll.
Os bailes decorriam com o máximo respeito e quem se portasse mal era chamado ao Gabinete da Direcção. Após uma primeira advertência, era posto no olho da rua, sem apelo nem agravo.
Nos salões de baile, havia quase sempre duas filas. Na da frente ficavam as meninas casadoiras, com idade de dançar, com namorado ou com ganas de o ter. Na da retaguarda ficavam as matronas, senhoras suas mães, guardiãs da virgindade das filhas.
Para dançar era preciso agradar à filha e à mãe, pois as mães, é que sabiam. Os pais não eram para aqui chamados. Ficavam no bufete, a relembrar uns com os outros, glórias de tempos idos, enquanto emborcavam copos e mastigavam moelas. A honra deles era entrar na função e meter um pé de dança com a respectiva matrona, já depois do intervalo, depois de estarem bem tratados, a fim de demonstrarem que ainda estavam como devia ser. Porém, nem sempre a defesa da honra corria bem, pois alguns devido ao avançado estado de alcoolemia, apanhavam uma “tampa” da respectiva matrona, ao passo que outros se estatelavam no soalho, quando porventura executavam alguma reviravolta menos comedida. Era a altura em que os mirones cantavam o “Já estás com os copos! Já estás com os copos!”.
Os bailes eram abrilhantados por conjuntos como o afamado MARILYNG, fundado a 21 de Janeiro de 1955 e que com composição variável perdurou até 1975-76. Do grupo fundador, faziam parte, da esquerda para a direita da fotografia: ANTÓNIO CONDINHO (saxofone alto), FRANCISCO XARCAS (saxofone alto e clarinete), GENARO MANTEIGAS (rabecão), MÁRIO RATO (bateria e vocalista), JOÃO MANAÇAS (piano e acordeão) e ADELINO CANHOTO (trompete). Do grupo fundador falta na fotografia, JOAQUIM CARMO PEQUITO (vocalista), antigo barítono do Teatro de Ópera de S. Carlos e proprietário da Agência de Publicidade APAL, “A Palavra Mágica da Propaganda”, conforme slogan da sua própria autoria. Apesar de pertencer ao grupo fundador, o Pequito não esteve muito tempo no Marilyng e a ele pertencia a aparelhagem sonora utilizada pelo conjunto.
O Marilyng era um conjunto integrado por músicos da Real Sociedade Filarmónica Luzitana e da Sociedade Filarmónica Artística Estremocense, todos eles com histórias de vida para além da Música. Esta não lhes dava para sustento, pelo que tinham que fazer pela vida, fora da Música. O Condinho, o Charcas e o Canhoto eram canteiros. O Genaro era merceeeiro, o Rato era alfaiate e o Manaças era empregado de escritório do prestigiado advogado oposicionista Rodrigues Pereira.
De todos, aquele que conheci melhor, era o do rabecão, o Genaro Manteigas, que tinha uma mercearia, onde ainda recentemente era o PÉ DE LÃ, mesmo ao lado da TIPOGRAFIA BRADOS DO ALENTEJO, quando se vai às burras assadas e ao briol, à taberna que antes de ser do falecido Isaías, era do seu pai Zé da Glória, onde eu ia buscar aguardente para as filhoses da minha tia e ia provando pelo caminho. Se os grandes gostavam daquilo, onde é que está o mal? Pois o Genaro tinha uma mercearia à maneira, que rivalizava com a mercearia do Adriano Pimenta, depois LOJA DO POVO e mesmo em frente dos Brados do Parelho, que antes de pregar um tiro no toutiço, escreveu a sua auto-biografia para publicar no jornal. Eu era cliente habitual do Genaro onde ia comprar rebuçados com cromos da bola. Nasci nas bordas daquela zona em 1946 e por ali morei numa casa que foi derrubada para se travestir doutra coisa. De futebol não gosto desde que o meu pai me pregou com um guarda-chuva na cornamenta por causa do malfadado pseudo-desporto em que andam 22 tarados a perseguir um coiro. Dos rebuçados é que já não gosto muito, prefiro pasteizinhos de bacalhau, mesmo que não sejam VQPRD. Agora o que continuo a gostar é de colecções e comecei a ser coleccionador a ir e vir à loja do Genaro, assim como a encher o meu talêgo no jogo do botão, já que além de razoável pontaria fui dotado pela natureza de um bom palmo, os quais consegui transmitir à minha filha que chegava a casa todos os dias com uma saquilada de berlindes ganhos aos outros na escola do ciclo da Maria Gonçalves. Talvez o ditado adequado seja: “Filha de botaneiro, sabe belindrar!”.
As histórias do Marilyng passam quase todas pelo Genaro. Vou contar algumas.
O Genaro tinha o hábito de, por vezes, talvez para se concentrar na música, tocar rabecão com os olhos fechados, dando a impressão de estar a dormir, se é que não dormia mesmo. Quem não lhe perdoava era o Mário Rato, que lhe dava cada safanão que era um consolo.
Pelo Carnaval, o Marilyng actuava durante cinco dias seguidos em bailes que acabavam já de manhã. Começavam no sábado e acabavam na quarta-feira. A rapaziada chegava ao fim, já rebentada pelas noitadas. Certa vez, deu-lhes para ir a uma farmácia comprar algodão iodado por causa das dores do peito. O pior foi que já no baile e com o calor que tinham, após uma paragem tiveram que se ver livre das pastas de algodão iodado que debaixo da roupa, lhes protegiam a tampa do peito. Onde é que hão de pôr o algodão, onde é que não hão de, o melhor sítio que arranjaram e alguém alvitrou, foi o rabecão do Genaro. Este, ao retomar a actuação, constatou que o rabecão não tinha ressonância e teve esta saída: “ - Não sei o que é que tem o rabecão, que parece que está surdo.”. Foi uma risada geral, descobriu-se a marosca e tudo acabou em bem.
Certa vez, durante umas Festas de Setembro realizadas no Rossio, no dancing dos pobres actuou o conjunto Bass do Alandroal, ao passo que no dancig dos ricos, actuou um conjunto espanhol, que tinha um vocalista alto e corpulento como o Carmo Pequito com quase 2 metros de altura e muito mais que 100 quilos de peso. Este vocalista tinha a particularidade de procurar comunicar bastante com o público, para o que se agachava, mesmo à boca do palco, ao mesmo tempo que, empunhando o microfone, se aproximava dos pares dançantes. Esta actuação teve muito êxito e foi muito bem recebida pelo público. Passado algum tempo, houve um baile na Porta Nova e o Carmo Pequito que integrava ainda o Marilyng, proclamou aos seus companheiros: “ - Hoje vou cantar como o espanhol das Festas de Setembro!” O que ele se esqueceu foi que o palco da Porta Nova não tinha a profundidade do palco do dancing dos ricos nas Festas de Setembro. Tudo correu bem até ao momento em que com ele agachado, num gesto mais arrebatado, o Genaro lhe enfia com as varas do trombone ao fundo das costas. O colossal Pequito desequilibra-se e lá vai palco abaixo, caindo em cima dumas velhas que nessa noite tiveram o azar de sair de casa. Só não foi chamado o INEM, porque nessa altura ainda não existia.
O Genaro e o Pequito eram impagáveis e viam-se envolvidos em situações que eles próprios não tinham criado. Certa vez, num baile da Lusitana, aconteceu uma que é famosa. O João Manaças, o pianista, namorava aquela que viria a ser a sua mulher. Esta, por uma questão de afecto tinha-se sentado junto ao palco mesmo à frente dele. A certa altura, talvez devido a excesso de carga, apaga-se a luz e o João Manaças, farto de estar sentado, levanta-se. O Pequito, farto de estar de pé, senta-se. A namorada do Manaças, aproveita a escuridão e resolve fazer umas festas nas canelas do Manaças. Porém, de repente acende-se a luz e o que vêem os bailarinos? A namorada do Manaças a fazer festas numa canela do Pequito. Foi uma risada geral.

Eram outros os tempos…

(Publicado inicialmente em 12 de Março de 2010)
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora".

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

José Maldonado Cortes homenageado na Feira da Golegã

 



O cavaleiro tauromáquico estremocense José Maldonado Cortes vai ser homenageado no próximo dia 8 de Novembro, no decurso da 48ª Feira Nacional do Cavalo, que se realiza anualmente na Golegã.
Trata-se duma decisão conjunta do Município da Golegã e da Associação Feira Nacional do Cavalo, que a partir do presente ano instituiu o denominado “Prémio Carreira – Carlos Relvas”. Trata-se duma distinção que “visa homenagear todos aqueles que pela sua vida pessoal e carreira profissional contribuíram, de forma significativa, para a elevação do Cavalo e em particular da Tauromaquia”.
José Maldonado Cortes é natural de Estremoz onde nasceu a 2 de Julho de 1938. Apresentou-se em público com 17 anos na Praça de Touros do seu berço natal e recebeu alternativa das mãos do cavaleiro souselense Pedro Louceiro a 22 de Abril de 1962, na Praça do Campo Pequeno.
José Maldonado Cortes foi um dos melhores cavaleiros da sua época e ainda hoje é apontado como um dos grandes equitadores deste país. Foi Mestre de muitos cavaleiros, entre os quais José João Zoio, Rui Salvador, Frederico Carolino, José Luís Cochicho, João Cerejo ou o seu filho Francisco Cortes.
Ao longo da sua notável carreira, correu as sete partidas do mundo e triunfou em todo o mundo taurino, prestigiando o toureio equestre nacional. Actuou em Portugal, Espanha, França, África (Angola e Moçambique), Américas (México, Colômbia e Venezuela) e em 1969 em Jacarta, na Indonésia, num estádio de futebol com capacidade para 120 mil espectadores, o que ainda hoje é considerado um recorde de assistência a um espectáculo tauromáquico.
José Maldonado Cortes conquistou prestígio e popularidade ao longo de uma carreira de 50 anos, em que actuou durante mais de 1000 vezes por esse mundo fora. Merece muito justamente o título de Mestre, pela sua dupla condição de formador de cavaleiros tauromáquicos e pela mestria das suas actuações. Nelas, a bravura ombreava com a segurança e a elegância do seu toureio, pautado pelo estrito respeito pela cultura e tradições tauromáquicas.
De acordo com a organização, José Maldonado Cortes, vai ser “homenageado, pelas suas mais de seis décadas de alternativa, mas também pela ligação que ao longo dos anos teve com a Feira da Golegã, o que só por si o tornam um verdadeiro embaixador da Tauromaquia e da Golegã”, atributos que justificam a distinção.
O “Prémio Carreira – Carlos Relvas” constitui uma distinção pessoal outorgada a Mestre José Maldonado Cortes como prestigiado e distinto cavaleiro tauromáquico. Todavia é mais do que isso. É uma distinção que igualmente muito honra a cidade de Estremoz, de quem Mestre José Maldonado Cortes foi embaixador itinerante no decurso das suas incursões tauromáquicas pelas sete partidas do mundo. Daí que como aficionado seja levado a formular um duplo voto:
- PARABÉNS, MESTRE! PARABÉNS, ESTREMOZ!

Publicado no nº 342 do jornal E, de 24-10-2024

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

As mercearias antigas


Bilhete-postal ilustrado, não circulado, da Mercearia de José Tomé Natário Feteira, na Rua
5 de Outubro, nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Esta mercearia seria
trespassada pelo proprietário ao seu sobrinho Alfredo Carqueijeiro Tomé (pai do Major
Mário Tomé) que desde jovem trabalhava na loja do tio. No início dos anos 50 o novo
proprietário foi para a Guiné trabalhar com o irmão, Henrique Carqueijeiro
Tomé, no estabelecimento de que este era sócio, o "Salgado e Tomé". Nessa altura a loja
foi trespassada a Ester de Matos, irmã do Coronel Homero Matos que foi director da PIDE
e comandante da Escola Prática de Cavalaria. Mais tarde viria a ser ali a Mercearia de Luís
 Raimundo, mais conhecida por Loja do Boneco. Actualmente funciona ali a Livraria e
Papelaria Aníbal, fundada por Aníbal Falcato Alves. (Texto baseado em informação prestada
pelo Major Mário Tomé, em 2013).

AS MERCEARIAS DE ESTREMOZ
Nos anos cinquenta do século passado existiam inúmeras mercearias em Estremoz, que procuravam dar resposta às necessidades de consumo da população.
Havia mercearias em muitas das ruas da cidade, algumas das quais eu frequentava, para satisfazer os avios, maiores ou menores, que a minha mãe me encarregava de fazer. Recorrendo ao nome dos proprietários, cito algumas situadas na vizinhança imediata dos locais em que morei: Genaro Manteigas (Rua do Almeida, 3), Adriano Pimenta (Largo da Liberdade, 12), Luís Campos (Largo General Graça, 31), Luís Raimundo (Rua 5 de Outubro 16), Miguel Silveira (Rua Dom Vasco da Gama, 3), Mendes, Meira e Nisa (Praça Luís de Camões, 13-14), Luís Rosado (Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108) e Figo (Rossio Marquês de Pombal, 73).
O ATENDIMENTO
Quando eu morava na Rua da Misericórdia, número sete, numa casa que foi abatida para dar lugar à ampliação do edifício dos Correios, ia-me aviar à do Senhor Adriano Pimenta, no Largo 28 de Maio, que após o 25 de Abril, conquistou o direito à sua primitiva designação de Largo da Liberdade.
Quando na minha condição de migrante, fui morar para a Rua 5 de Outubro, número quarenta e oito, passei a aviar-me à do Senhor Luís Campos.
A mercearia do Senhor Adriano Pimenta era uma pequena mercearia, onde ele era a única pessoa que assegurava os avios, ainda que tivesse um rapaz, o Anselmo, encarregado de fazer mandados no exterior. O Anselmo ia buscar as coisas ao armazém, que era ali bem perto, assim como levar as compras a casa dalgum freguês.
O Senhor Adriano Pimenta era um benfiquista ferrenho. Quando despia o guarda-pó da mercearia, era vê-lo, ufano, de emblema na lapela, a caminho de casa, com o orgulho próprio de ser benfiquista. O Senhor Adriano era um contador de histórias nato, uma pessoa sempre bem disposta, que não se ensaiava nada de pregar uma partida das valentes, a algum sportinguista menos avisado. E quando algum tinha o azar de lhe cair no laço, ele ria a bandeiras despregadas, com sonoras gargalhadas que contagiavam os presentes. Ir à mercearia do Senhor Adriano Pimenta era um tratamento eficaz contra a má disposição.
Na mercearia do Senhor Luís Campos, o proprietário geria a mercearia duma posição estratégica, ao fundo, onde normalmente estava sentado a uma escrivaninha, colocada perpendicularmente a um extenso balcão. Era aquilo a que se pode chamar um cavalheiro à antiga portuguesa, sempre atento e solícito para com os seus clientes, no sentido de bem os servir. Ao balcão trabalhavam vários caixeiros e alguns marçanos, à procura de tarimba e da inerente promoção a ser conferida pelo patrão, quando já tivessem traquejo. Ser caixeiro era uma profissão invejada na cidade. Diz o cancioneiro popular:

“Em Estremoz fui caixeiro,
Em S. Bento, lavrador,
No Canal, carpinteiro,
Em Évora Monte, cantador.”

Um dos caixeiros mais antigos era o Senhor Marcial Louro, que foi hoquista, sportinguista ferrenho, daqueles de comer caldo verde em dia de festa. Usava o cabelo, todo ondulado, penteado para trás com brilhantina e dizia-se que dormia com rede no cabelo, a fim de não desmanchar o penteado. Outro caixeiro era o Senhor Manuel Basílio, que era o contador de histórias da mercearia, já que uma mercearia à antiga tinha que ter de tudo. O Senhor Manuel Basílio estava sempre bem disposto e tinha uma língua afiada quando era preciso – coisas que o Senhor Luís Campos aprendeu a gerir, a bem da clientela. Outro Caixeiro era o Senhor Rúdio, careca, mas de bigode e pêra, para mostrar cabelo. O Senhor Rúdio tinha o vago ar, de inspector de qualquer coisa e, trabalhava normalmente à caixa registadora, já que tinha uma perna mais curta que a outra. Porém, como em tempo de guerra não se limpam armas, quando a clientela abundava, o que era frequente, lá tinha que dar à perna e desenrascava-se como os restantes.
O AVIO E AS EMBALAGENS
Na época, a maioria dos géneros que hoje são vendidos em embalagens individuais estanques, eram manipulados pelos merceeiros que os retiravam das tulhas, dos sacos, dos caixotes, das latas de grandes dimensões, donde eram retirados com corredoras de dimensão adequada, geralmente de alumínio, mas também as havia em latão, folha de flandres e zinco. Por vezes também eram utilizadas pinças metálicas.
No avio, comprava-se sempre açúcar louro, o qual era fornecido ao cliente dentro dum cartuxo de papel acinzentado. O caixeiro batia o cartuxo em cima da pedra mármore do balcão, a fim de o açúcar assentar e com recurso a uma corredora, deitava ou retirava mais uma pitada de açúcar ou duas, até o fiel da balança “António Pessoa”, indicar o peso pretendido. Depois era o ritual do fecho do cartucho, que ficava imponentemente vertical, com o vago ar de prisma paralelepipédico, com duas orelhas de papel. Cinquenta anos depois, continuo a gostar de ver um cartucho com as orelhas arrebitadas.
Assim se pesava também o sal, a farinha, o arroz, o grão, o feijão e o café. Só que neste último caso, o aroma começava logo ali a povoar-nos as narinas e a revelar ou não a sua qualidade.
Dada a variedade dos produtos encartuchados, as mercearias dispunham de uma gama diversificada de carimbos que eram apostos nos cartuchos, para cada um de nós saber o que se transportava lá dentro.
A manteiga e a banha de porco eram retiradas de latas grandes, com o auxílio das respectivas espátulas e eram pesadas em papel vegetal, com o qual se fazia o embrulho, o qual, por sua vez, era embrulhado em papel manteigueiro.
O azeite era aviado em garrafa levada de casa pelo cliente e medido e tirado de um bidão, situado por debaixo do balcão, com o recurso a uma bomba de dar à manivela. Este azeite, na altura da sua compra ao fornecedor, tinha a acidez testada pelo merceeiro, que para o efeito dispunha dum estojo de óleo-acidímetro. É que a vida comercial era respeitável e não se podia vender gato por lebre.
As especiarias (pimenta, cravinho, cominhos, noz moscada, colorau) eram pesadas em folhas de papel de chá, de dimensão adequada, com as quais se improvisava a embalagem. Esta, algumas vezes era cónica e obtida por enrolamento, fixado no fim, através de dobragem na ponta.
As bolachas, independentemente de serem Marias, torradas ou de água e sal, eram fornecidas às mercearias em caixa cúbica, com cerca de 25 centímetros de aresta, fabricadas em folha-de-flandres, forrada a papel vegetal. Dali eram retiradas com uma pinça metálica, na quantidade pretendida e enroladas em papel de chá ou acomodadas num cartucho, dependendo da quantidade. Em ocasiões especiais também se compravam biscoitos sortidos, que eram logo pesados em cartuxos. Chegavam à mercearia, embalados em caixas como as das bolachas, mas tinham para aí metade da altura daquelas.
Enlatados, levavam-se para casa: atum “Tenório”, sardinhas em azeite “Tricana” e salsichas “Frescata”. Embalados, levavam-se caixas grandes de fósforos “Clube”, a fim de serem usados na cozinha, assim como farinha “Amparo”, “Predilecta” ou “33”, para adicionar ao leite do pequeno-almoço.
Habitualmente levava-se bacalhau que a gente escolhia e que era cortado com a respectiva faca, mesmo ali à nossa frente, para depois ser embrulhado em papel de jornal. Era uma operação que, invariavelmente, eu acompanhava sempre atento. Quando uma vez no liceu, o meu professor de História, o saudoso Dr. Azevedo, a propósito da Revolução Francesa perguntou à turma:
- Sabem o que é uma guilhotina?
Eu respondi desembaraçadamente:
- É um género de faca de bacalhau para cortar a cabeça à Nobreza!
O vinagre e o vinho compravam-se avulsos na taberna, embora também pudessem ser comprados na mercearia. Ali, se compravam para as ocasiões especiais, garrafas de vinho maduro, verde, do Porto, moscatel, assim como licores, brandes e aguardentes.
As batatas, as cebolas, os alhos, os ovos, os queijos e os enchidos eram geralmente comprados no mercado municipal, mas também podiam ser comprados na mercearia.
Para a higiene pessoal compravam-se sabonetes de glicerina ou “Musgo Real”, assim como "Pasta Medicinal Couto”.
Para a lavagem da roupa e para fazer barrelas, levava-se sabão azul e branco ou sabão macaco, vendidos à barra. Se não queríamos uma barra inteira, o caixeiro cortava com mestria, o peso certo de sabão. E dizia ufano:
- Nunca falha!
É que ele sabia empiricamente que, sendo a barra de sabão homogénea, o peso de sabão era proporcional ao comprimento cortado na barra. Feito isto, o sabão era meticulosamente embrulhado em papel de jornal, que assim cumpria mais uma fase da sua reciclagem.
O ROL
Quando ia às compras levava sempre um rol, elaborado previamente pela minha mãe. Só se comprava o que fazia falta, já que o dinheiro não nasce do chão e acabávamos de sair da II Guerra Mundial e das cadernetas de racionamento.
O rol servia também para fazer as contas do avio, desde que não se quisesse factura, o que era o meu caso. No final do avio, o caixeiro conferia sempre as coisas connosco, não se desse o caso de ter havido algum engano.
O REGRESSO A CASA
Para os miúdos como eu, o melhor do avio era o fim, pois o Senhor Luís Campos era generoso e dava guloseimas à rapaziada: rebuçados de fruta, de coco, de seiva de pinheiro, de Santo Onofre ou do Dr. Bentes. De resto, tinha sempre uma palavra amável, bem como recomendações para os meus pais, assim como os caixeiros, os quais, cada um à sua maneira, procediam de modo análogo, seguindo as orientações do patrão.
O AVIO LEVADO A CASA
O Senhor Luís Campos tinha um empregado, o Mourinha, que num carro de mão, de razoáveis dimensões, ia entregar os grandes avios, às casas dos fregueses da “alta”, assim como transportar mercadoria da estação da CP para a mercearia. Só em condições excepcionais, o Senhor Luís Campos recorria aos serviços dum carreiro, que trabalhasse com um carro de carga (alentejano, é claro!), puxado por uma besta. Lembro-me de dois carreiros: o Fateixa e outro do qual não recordo o nome, mas que trabalhava para a avó do Serafim, meu amigo e companheiro de carteira na Escola Primária. Eram eles que faziam o grosso do transporte que abastecia as mercearias. O cancioneiro popular regista a sua presença:

“Ailé,
Lá em Estremoz,
Meu amor é carreiro,
Acarreta arroz.”

O LIVRO DOS FIADOS
O “Livro dos Fiados” era uma instituição que vigorava nas antigas mercearias, no tempo em que toda a gente tinha vergonha. Ou porque o chefe de família não tinha recebido ainda o magro salário ou por dificuldades económicas, eram registadas em livros estreitos e de capa negra, os avios que as carências da época não permitiam satisfazer imediatamente, mas que a honra de cada um avalizava que seriam pagas, o que infalivelmente era feito, no mais curto espaço de tempo possível.
OLHANDO PARA TRÁS
O capitalismo ou seja a ânsia de lucro fácil e o desrespeito pela condição humana, quer de consumidores, quer de funcionários, não tinha ainda inventado, nem os supermercados nem os hipermercados, os quais são templos de consumo aos incautos, que quando se aviam estão a trabalhar para o dono da grande superfície, que não lhes paga para isso. Muitos acabam por comprar o que não querem, já que não tiveram a disciplina de fazer um rol de compras, como a minha mãe, sensatamente fazia. E que dizer do desperdício que originam, com a parafernália de embalagens e sacos que lhes impingem, umas vezes dados, outras vezes comprados?
Nos anos cinquenta do século passado, as mercearias antigas eram os nossos templos do consumo possível e necessário. Então, a barriga dava horas, como, de resto, hoje dá, porque a barriga é um imparável relógio suíço. Contudo, nós éramos mais sensatos que muitos hoje são, pois as compras eram apenas para satisfação das necessidades inadiáveis e nunca para escape de frustrações acumuladas. Comprava-se com conta, peso e medida. E éramos felizes, muito mais que alguns são hoje, com todas as loucuras de consumo que cometem.
Oh que saudades que eu tenho das mercearias antigas!

Publicado anteriormente a 11 de Abril de 2011
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

Bilhete-postal comercial da Mercearia de José Tomé Natário Feteira na Rua 5 de Outubro,
 nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de Estremoz, em 30 de Janeiro
de 1912, para o Porto. Impresso na Tipografia Minerva, de Adriano Motta, editora do  jornal
 “Eco de Estremoz”, onde iniciei a minha actividade jornalística, cerca de 1960.

Bilhete-postal comercial e ilustrado da “Loja Popular” de Joaquim Teodoro Duarte Campos,
no Largo General Graça, nº 31, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de
Estremoz, em 29 de Fevereiro de 1916 (em plena 1ª Guerra Mundial), para o Porto. A Joaquim Teodoro Duarte Campos sucedeu Luís Campos, cuja actividade comercial é referida no texto.

Bilhete-postal dos Correios com carimbo comercial da “Mercearia Central” de Luís Rosado,
no Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108. Expedido de Estremoz, em
12 de Maio de 1918 (já no final da 1ª Guerra Mundial), para o Porto. Mais tarde foi ali a
Mercearia  de Rosado & Louro.     

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Livro de Leitura da Primeira Classe


Livro de Leitura da Primeira Classe

Há sessenta anos atrás
Sou duma geração que há sessenta anos atrás se iniciou na leitura, através do bem conhecido livro de leitura da 1ª Classe do Ensino Primário. Tratava-se de um livro profusamente ilustrado, com um grafismo que marcou uma época. Através dele aprendíamos a juntar as letras, formando sílabas, que reunidas geravam palavras, ali ilustradas, para o reforço visual apoiar a memorização.
Estávamos no Estado Novo, pelo que não é de admirar que doutrinariamente o livro veiculasse a Trilogia da Educação Nacional: “Deus, Pátria e Família”. O mesmo se passava com aqueles que se lhe seguiram até à 4ª classe.
Na Aritmética, decorávamos a tabuada até à casa do 10. Qualquer um de nós sabia de cor, o resultado de 100 operações de multiplicação, as quais iam desde o 1x1 até ao 10x10. Na aula, o professor passava-nos contas para fazer, o que era feito em lousas de ardósia nas quais escrevíamos com lápis de pedra. Era o “Magalhães” que Salazar e bem, punha à nossa disposição. Assim adquiríamos aptidão de cálculo mental e treinávamos o cálculo necessário à nossa vida do dia a dia.
Levávamos como trabalho para casa, fazer contas num caderno quadriculado, para disciplinar a escrita e a dimensão dos algarismos. E tínhamos sempre uma cópia para fazer, não só para aperfeiçoar a caligrafia, mas também porque a cópia ajudava à memorização. Para o efeito, usava-mos um caderno de linhas. Porém, aqueles que tinham uma escrita mais irregular faziam cópias em cadernos de duas linhas, para aprenderem a dimensionar as letras, até conseguirem ficar com uma caligrafia padrão.
Fazíamos também ditados, nos quais o professor nos lia pausadamente um texto relativamente curto, que nós tínhamos que escrever no caderno. Assim treinávamos a capacidade de converter a oralidade da língua na sua forma escrita. E acabava-mos por não dar erros.
Fazíamos ainda redacções com tema igual para todos, visando despertar e exercitar a capacidade criadora de cada um, bem como exercitar a correcção da ortografia e da caligrafia.
Fazíamos igualmente desenhos com lápis de carvão e lápis de cor, para o que utilizávamos um caderno de folhas lisas.
Os cadernos tinham geralmente na capa, ilustrações apelando ao amor à Pátria ou exaltando instituições gratas ao Regime, como era a Mocidade Portuguesa. Na capa do caderno, escrevíamos sempre o nosso nome, o número e a classe.
Tínhamos também um “caderno de significados”, que era um caderno de duas linhas com um traço vertical a vermelho, onde registávamos por indicação do professor, as palavras difíceis à esquerda do traço e o respectivo significado à direita.
Escrevíamos com canetas de molhar o aparo nos tinteiros que havia em cada carteira. Não se podia molhar de mais para não borrar. Ao virar a página, tínhamos que secar com um mata- borrão que trazíamos sempre dentro do caderno.
A caneta de molhar, os aparos, o lápis de carvão, os lápis de cor, o apara-lápis e a borracha eram guardados dentro duma caixa de madeira, com tampa de correr. Esta, conjuntamente com os cadernos, o livro de leitura e mais tarde outros livros, era transportada numa sacola de serapilheira que levávamos a tiracolo.

E hoje?
Pelos mais diversos motivos, algumas das práticas escolares atrás referidas foram abandonadas. Algumas naturalmente por serem obsoletas. Hoje não faz sentido escrever com canetas de molhar e provavelmente fazer contas em lousa de ardósia. Mas não é a posse e a utilização de um “Magalhães” que treina o cálculo mental e a prática das operações elementares, bem como a prática da caligrafia e a execução livre de desenhos.
Hoje já não se usam sacolas de serapilheira, mas mochilas à medida da bolsa dos pais de cada um. Aí o personagem principal é o “Magalhães” – Faz Tudo!
Já não é preciso saber fazer contas, basta ter o “Magalhães” ligado à Internet e fazem-se as contas no Google. Este motor de busca é a cabeça deles.
Fazer cópias para quê? Por um lado não precisam de memorizar nada e por outro lado basta utilizar o “Magalhães” e escrever no Word. Podem dar erros à vontade, que o Word assinala a vermelho os erros de ortografia e a verde os erros de sintaxe. Depois basta tirar uma cópia na impressora. Esta é a caneta deles.
A caligrafia é a que eles quiserem, é o tipo de letra que escolherem no Word, seja ela Areal, Times New Roman, Comic Sans MS, ou outro tipo qualquer, que lhes der na real gana. Não há caligrafia individualizada, reflexo do todo uno que é cada ser humano. Há o estereótipo gráfico porque cada um optou, no tamanho que escolheu.
O desenho é executado no “Magalhães” com um programa gráfico melhor ou pior, que permite gerir espessuras de traço, cores, luminosidade, contraste, texturas e estilos de desenho. A procura de perfeição a desenhar tem a ver com o domínio do programa utilizado. Essa é a arte deles.
Cadernos de significados para quê? Vai-se ao Google e lá está a Wikipédia. A Wikipédia diz tudo. Para que é que eles precisam de saber, se está na Wikipédia?
Fazer redacções hoje é fácil. Vai-se à Wikipédia e com o ponteiro do rato, copia-se e cola-se. Pesquisa em múltiplas fontes? Rearranjo dos materiais recolhidos em linguagem própria? Trabalho de síntese? Para quê? O que está na Wikipédia é que é! Mas cautela meninos, que os professores dispõem de um programa gratuito existente na Internet que permite ver se os meninos copiaram e colaram ou não. Depois não se queixem se forem acusados de ter copiado à letra, o trabalho apresentado, muitas vezes de forma abrasileirada.

Aviso à navegação
Assiste-se hoje aos mais diferentes níveis, ao facilitismo que o pervertido Sistema Educativo Português concede aos alunos, impreparando-os para a vida. E tudo começa por uma coisa muito simples. O esquecimento ou a ignorância de que cada um de nós só dá valor aquilo que foi fruto do seu esforço pessoal de aprendizagem e aperfeiçoamento, o que longe de facilitismos, passa pela aquisição e memorização de saberes, sem os quais o ser humano não consegue em cada instante julgar e decidir com propriedade.
Corremos o risco de estar a preparar seres humanos dependentes do “Magalhães”, da Internet e da Wikipédia, os quais longe de serem pessoas livres, estão condicionados à informação padrão veiculada “on line”.
Cerca de dois mil anos depois de Spartacus, o gladiador, ter liderado um exército de mais de cem mil escravos contra a opressão do Império Romano, é chegada a altura em que como homens livres, devemos consciencializar toda a gente dos riscos resultantes em termos de liberdade, da utilização de informação estereotipada e padronizada, bem como pela subordinação da criança e do jovem às rotinas do “Magalhães” – Faz tudo.

Texto publicado inicialmente em 28 de Setembro de 2011
O presente texto integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

 Caderno "Lusito"

Lousa

Caderno de significados

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Redundância olárica em moringue de Estremoz

 


Moringue de barro vermelho de Estremoz. Morfologia ovóide, base circular e asa que liga duas zonas em posições opostas sobre a superfície do bojo. Produção da Olaria Regional de Mestre Mário Lagartinho (1935-2016).
Embelezado por decoração mista, riscada, empedrada e relevada, qualquer delas integrando os cânones da tradição oleira local. Alto relevo da Torre de Menagem do Castelo de Estremoz, com o nome da cidade nele inscrito. Obtido por moldagem, seguida de colagem com barbutina no bojo.
A Torre de Menagem do Castelo de Estremoz há muito que foi adoptada como indiscutível ex-líbris desta terra transtagana, já que se situa no centro do burgo medieval, dominando tudo, altaneira e vigilante sobre a planície, outrora heróica e actualmente rendida à cultura da vinha.
A coexistência do alto relevo da afamada Torre com a inscrição ESTREMOZ nela inserida, é como que uma redundância olárica, já que a meu ver esta inscrição era desnecessária, visto o perfil da Torre ser sobejamente conhecido.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Púcaro de barro vermelho de Estremoz (séc. XVIII ?)



Púcaro de barro vermelho de Estremoz, acusando marcas de erosão. Recolhido em areal do rio Tejo, próximo de Abrantes. A morfologia do púcaro é uma das identificadas por VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Algumas palavras a respeito de púcaros de Portugal.  Nova edição da revista Ocidente. Lisboa, 1957. (Pag. 64). Trata-se de uma morfologia muito antiga, presumivelmente do séc. XVIII.

A fama dos púcaros de barro vermelho de Estremoz, propagandeada desde sempre por visitantes ilustres, levava a que eles fossem comercializados a partir da área geográfica de produção para “os quatro cantos do mundo”, seguindo rotas terrestres, fluviais e marítimas, o que poderá justificar o local de recolha.

Hernâni Matos

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Bonecos de Estremoz: Mário Lagartinho


FIg. 1 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção  Joaquim Vermelho.

Nasceu a 22 de Junho de 1935 na Rua Magalhães de Lima, nº 15, freguesia de Santo André, concelho de Estremoz. Filho legítimo de Marcolino Augusto Lagartinho, de 26 anos, natural da mesma freguesia, e de Leonilde da Conceição Raleiro, de 30 anos, natural da freguesia de Alcáçova, concelho de Elvas (2). Começou a modelar o barro aos 12 anos de idade, na Olaria Regional, situada na Rua do Afã, em Estremoz e que era propriedade de Mestre José António Ourelo – Zé Russo (1916-1980), formado na Olaria Alfacinha e que adquirira a oficina a Mestre Cassiano, fundador da Regional, já avançado na idade. A 2 de Maio de 1958, com 23 anos de idade, casou catolicamente na Igreja Paroquial de Santa Maria com Ana Pascoal Ourelo, de 22 anos, doméstica, natural da freguesia de Santo André, concelho de Estremoz, onde nasceu a 11 de Janeiro de 1936, filha de César Augusto Pascoal e de Albertina de Jesus Carrapiço, moradores na Rua dos Carvoeiros nº 6, da mesma freguesia. Pelo casamento, a noiva adoptou o apelido Lagartinho de seu marido (1). A Olaria Regional viria a passar das mãos de José Ourelo para Mário Lagartinho, que nunca deixou os seus créditos em mãos alheias e foi um oleiro de nomeada.
A necessidade de aumentar os seus rendimentos levou Mestre Lagartinho (Figs. 1 e 2), nos anos 70-90 do século passado, a confeccionar Bonecos de Estremoz, o que fez por auto-aprendizagem a partir de exemplares que lhe foram emprestados por José Marcelino Moreira. Tenho, na minha colecção, alguns desses exemplares que me foram cedidos pela sua esposa, Ana Pascoal Ourelo Lagartinho. Mestre Lagartinho reproduziu então os exemplares do conjunto dos “Bonecos da Tradição”. Foi bonequeiro, mas era sobretudo oleiro e era ele que cavava o barro dos barreiros e o preparava, até este estar capaz de ser afeiçoado pela suas mãos. Os Bonecos eram também cozidos em forno de lenha, prática que foi abandonada. Sua mulher (Fig. 2), além de pintar a produção do marido, também confeccionava os seus próprios Bonecos. Uns e outros eram comercializados no stand da Olaria Regional, no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. Para além da mulher, Ana Pascoal Ourelo Lagartinho (1936-2024), Mestre Lagartinho transmitiu os seus saberes a Arlindo Ginja (1938-2018), que viria a ser seu discípulo. Em termos pessoais, Mário Lagartinho nunca conseguiu recuperar do abalo causado em 2011 pela morte do filho, também ele Mário Lagartinho, ex-jogador de hóquei do Clube de Futebol de Estremoz, do qual foi treinador, assim como do Hóquei Clube Vasco da Gama, de Sines, cidade onde foi o grande impulsionador daquela modalidade. Foi assim que, a 4 de Setembro de 2016, na sua casa da Rua João de Sousa Carvalho, lote 25, 1º esqdº, em Estremoz, se regista o falecimento com a idade de 81 anos, de Mestre Mário Lagartinho, decano da olaria e o último oleiro de Estremoz, o que constituiu uma tragédia cultural, numa cidade que já foi um dos maiores centros oleiros do Alto Alentejo. Estremoz ficou luto e, com a cidade, a Cultura Popular Alentejana, da qual o Mestre foi um ícone (3), (5). Mestre Mário Lagartinho partiu, mas deixou connosco as suas criações: bilhas, moringues, garrafas de água, barris e púcaros que, entre outros, saíram das suas mãos mágicas de oleiro. Os seus Bonecos estão dispersos por colecções particulares, como é o caso da minha. Também o Museu Municipal de Estremoz conta no seu acervo com exemplares, tanto de olaria como de Bonecos de Estremoz, afeiçoados pelas suas mãos. Por iniciativa daquele Museu, a sua obra foi objecto de destaque recente nas exposições: “Mário Lagartinho - Olaria de Estremoz” (2004) e “Motivos decorativos na olaria de Estremoz do século XX” (2013), às quais há que acrescentar  “O vasilhame de barro  de Estremoz” (2012), graças à iniciativa da Associação Filatélica Alentejana. Pessoalmente, Mário Lagartinho, a quem conhecia desde os anos 70 do século passado, concedeu-me o privilégio da sua amizade, o que permitiu organizar, em 1999, uma jornada de divulgação da olaria de Estremoz na Escola Secundária, quando era director do seu Centro de Recursos. Foi um evento que nos marcou a todos, Mestre Mário, professores e alunos, já que as raízes da Escola entroncam na antiga Escola Industrial de António Augusto Gonçalves, por onde paira a memória do Curso de Olaria e de Mestre Mariano da Conceição (o Alfacinha) que, conjuntamente com ti Ana das Peles e sob a acção do Director Sá Lemos, fizeram com que os Bonecos de Estremoz, em processo de extinção, se tornassem numa Fénix renascida das cinzas. Morreu Mário Lagartinho, o último oleiro de Estremoz. Pessoalmente, como não tenho espírito sebastianista, não estou à espera de um novo Sá Lemos, que venha a reactivar a extinta olaria de Estremoz. Apenas me resta o registo da sua Memória, que me leva a proclamar, alto e bom som:
- MÁRIO LAGARTINHO, PRESENTE!

BIBLIOGRAFIA
(1) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Casamento Informatizado nº 633 de 2015, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(2) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Nascimento Informatizado nº 351 de 2014, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(3) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Óbito nº 487 de 2016, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(4) - MATOS, Hernâni. Mário Lagartinho, bonequeiro de Estremoz in Brados do Alentejo nº 890, 29/09/2016. Estremoz, 2016 (pág. 15).
(5) - MATOS, Hernâni. Mário Lagartinho, o último oleiro de Estremoz in Brados do Alentejo nº 889, 15/09/2016. Estremoz, 2016 (pág. 1 e 6).

Publicado a 26 de abril de 2020

Fig. 2 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016) e sua mulher Ana Lagartinho (1936-2024),
bonequeiros. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz /
BMETZ – Colecção Joaquim Vermelho.

Nossa Senhora ajoelhada.

Presépio de trono ou altar (Montagem incorrecta).

Mulher a lavar a roupa.

Pastor com tarro.

Pastor com dois borregos

Pastor das migas.

Pastor do harmónio.

Mulher dos perús.

Matança do porco.

Mulher a vender chouriços.

Amazona.