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segunda-feira, 10 de março de 2025

Sinos: Velhos Tempos e Tempo Novo


Igreja de Santo André com as suas duas torres sineiras (Foto de C. J. Walowski - 1891).
Situada na Rua 5 de Outubro, em Estremoz, no local onde hoje está o Palácio da Justiça.
Muito rica e imponente no seu estilo barroco, foi sede de Paróquia. A sua construção
iniciada em 1705, levou 20 anos, tendo sido inaugurada em 26 de Novembro de 1725.
Foi demolida em 1960, por ordem do regime de Salazar, o que foi sem sombra de dúvida,
o maior crime alguma vez perpetrado contra o património construído em Estremoz. 

Velhos Tempos
O som dos sinos é um dos sons mais antigos que povoam as memórias da minha infância. Quando frequentava a Escola Primária, tanto o início das aulas como da missa dominical eram anunciadas por toques de sinos.
Ao longo dos séculos os sinos têm sido utilizados como alfaias religiosas que assinalam os actos litúrgicos, dão as horas e funcionam como meio de comunicação, tocando a rebate a fogo e anunciando desastres como naufrágios, bem como reuniões de conselhos de anciãos ou de câmaras, assim como reunindo o povo para trabalhos agrícolas ou batidas a lobos.
Os sinos distinguem-se uns dos outros pelo modo como se exprimem: variando a altura, a intensidade e o timbre, assim como a duração, o ritmo e o compasso do som.
As técnicas de percussão sineira incluem: picar, repicar, badalar, bater, rebater, tanger, destanger, bambolear, bandear e dobrar. Através delas podem ser gerados códigos acústicos entendíveis pela comunidade: canto em ocasiões de festa e choro em momentos de dor.

Literatura Oral
O sino encontra-se abundantemente registado na nossa literatura de tradição oral. Assim, a nível de ADAGIÁRIO, diz-se: “Menino e sino só com pancada”, “O sino chama para a missa mas não vai a ela”, “Os sinos tangem-se pelos mortos e não pelos vivos”, “Quem toca o sino não acompanha a procissão”, “Sino forte, vento húmido”, “Sino pequeno berra muito”. No campo da GÍRIA POPULAR são conhecidas expressões como: Andar num sino (Andar contente), Sino (Copo de vinho), Sino da Sé (Copo de litro para vinho, usado nas tabernas do Porto), Sino de correr (Toque que marcava a hora de fechar as tabernas e recolherem a casa, judeus e mouros), Sino grande (Pena máxima aplicada ao réu). No âmbito das LENGALENGAS são conhecidas diversas, entre as quais esta: “Amanhã é Domingo / Toca o sino / O sino é de ouro / Mata-se o touro / O touro é bravo / Ataca o fidalgo / O fidalgo é valente / Defende a gente / A gente é fraquinha / Mata a galinha / Para a nossa barriguinha”. Quanto a ADIVINHAS, existem várias cuja solução óbvia é o sino. Eis uma: "Alto está, / alto mora, / todos o veem, / ninguém o adora./ O que é? ".

Literatura Portuguesa
Em prosa, a referência literária mais antiga relativa a sinos remonta a Portugaliae Monumenta Historica (870). Posteriormente surge em António Tenreiro – Itinerário (1560), Frei Pantaleão de Aveiro – Itinerário da Terra Santa (1593), Frei Gaspar de São Bernardino – Itinerário da Índia por Terra (1611), Fernão Mendes Pinto – Peregrinação (1614) e mais tarde ainda em Eça de Queirós - O Primo Basílio (1878), Camilo Castelo Branco - A Maria da Fonte (1885) e Ramalho Ortigão – As Farpas – I (1887). Na poesia, entre os inúmeros poetas que falam de sinos, destacamos: Luís de Camões - Os Lusíadas (1572), António Nobre – Os sinos (1892), António Correia de Oliveira – O sino (1899), Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia (1913), Florbela Espanca - Noite trágica (1923) e António Lopes Ribeiro – Procissão (1956).

Tempo Novo
A Constituição da República Portuguesa consigna como direitos fundamentais, o direito à diferença e a igualdade de género. Daí que sob o ponto de vista social, não faça qualquer sentido existirem dois toques distintos, conforme o finado é homem ou mulher. Trata-se de uma questão que a Igreja deve rever, já que ela própria nos leva a crer que aos olhos de Deus todos são iguais. Quanto ao comum dos mortais não interessa saber se morreu homem ou mulher, mas apenas quem foi que partiu e isso os sinos não dizem. 

Publicado inicialmente em 27 de Janeiro de 2016

domingo, 9 de março de 2025

Machismo? Não, obrigado.


A orgia (c. 1775). William Hogarth (1697-1764). Óleo sobre tela (62,5 x 75 cm).
Sir John Soane's Museum, Londres.

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), utilizou abundantemente provérbios nas suas obras literárias. Para ele, tratava-se de “sentenças verdadeiras que a experiência, suma mestra das artes, pronunciou pelas bocas do povo”. Se isso é verdade em relação a alguns provérbios, não o é em relação a outros, como é o caso dos que se referem à mulher. Esta, desde a Antiguidade Clássica que via o seu papel reduzido face ao do homem, com a esfera de actuação circunscrita ao campo doméstico e familiar, não gozando de direitos sociais e políticos como o homem, que chamava a si as responsabilidades inerentes ao trabalho e à chefia. Tal não acontece hoje, pelo que há provérbios que revelam uma atitude machista, de que o homem é superior à mulher, a quem protege e de quem é chefe de família.
O vasto universo desses provérbios é sistematizável pelo menos em quatro grandes grupos: - A mulher é considerada inferior e dependente do homem: A sombra de um homem vale mais que cem mulheres. Uma mulher sem um homem é como uma guitarra sem cordas. - A mulher é equiparada aos animais: Mulher e mula, o pau as cura. Mulheres, burros e nozes, carecem de mãos fortes. - A mulher deve estar confinada ao lar: A sertã e a mulher, na cozinha é que se quer. Galinhas e mulher, não se deixam passear. - A mulher não se deve divertir: Mulher que não perde festa, pouco presta. Quem perde muitas horas à janela, esquece-se, concerteza, da panela. - Mulheres juntas são encaradas com desconfiança: Duas mulheres fazem um mercado, quatro uma feira. Uma mulher faz tudo, duas fazem pouco e três não fazem nada. - São dados conselhos aos homens: Do vinho e da mulher, livre-se o homem se puder. Guarda-te de traseiro de mula e de língua de mulher.
A leitura destes adágios merece reflexão. Em primeiro lugar, em termos bíblicos: Após ter criado Adão “O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.”” (Génesis 2, 18). De acordo com a Bíblia, Deus terá então criado Eva, por conveniência de Adão: “Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar.” (Génesis 2, 21). “E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem.” (Génesis 2, 22). “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” (Génesis 2, 23). Ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, Deus “Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” (Génesis 3, 16). Tais versículos bíblicos colocam a mulher numa situação de subalternidade ante o homem, registando a desigualdade de género, através daquelas que são consideradas as palavras de Deus. Para além disso, a doutrina católica advoga actualmente a igualdade de género, mas apresenta razões teologais que inviabilizam a ordenação sacerdotal de mulheres.
Em segundo lugar, os provérbios aqui transcritos são merecedores de toda a nossa repulsa. Todavia até há bem pouco tempo integraram a voz do povo masculino. A isso não terão sido estranhos os interesses mais retrógrados da sociedade, alicerçada no obscurantismo da idade média, no absolutismo real, no feudalismo, na inquisição e no fascismo. Foram tempos deploráveis, cujo regresso não queremos. Daí o título da presente crónica. 

Publicado inicialmente em 6 de Outubro de 2015

terça-feira, 4 de março de 2025

Os xexés


Xexé (1921). Ilustração de Leal da Câmara (1876-1948). Capa da revista “ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA”, nº 781 de 5 de Fevereiro de 1921

Uma figura característica do Carnaval doutros tempos, pelo menos até ao primeiro quartel do século XX, era o “xexé”, caricatura do Portugal miguelista, caído em desgraça. O personagem foi retratado entre outros por José Malhoa (1895), Rafael Bordalo Pinheiro (1903), Augusto Bobone (antes de 1910) e Leal da Câmara (1921). O xéxé trajava uma casaca de seda colorida, calção e meia branca, sapatos de fivela, cabeleira de estopa, punhos de renda e um enorme chapéu bicorne, à moda de finais do séc. XVIII - séc XIX. Usava muitas vezes lunetas, andava armado com um grande facalhão de madeira e um cacete adornado com um chavelho. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é um substantivo masculino que designa “Personagem carnavalesco típico, caracterizado como um velho ridículo e senil”. Para este dicionário, o termo terá sido utilizado pela primeira vez no “Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa”, de Caldas Aulete. Como refere a “Gíria Portugueza” [1], “Chéché” é um termo popular que designa “Mascarado repelente e ridículo, em Lisboa, que importuna os transeuntes pedindo “dez reisinhos p’r’o velho””. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é também um substantivo e adjectivo com os dois géneros, aplicável a “quem está desprovido de lucidez em decorrência de idade avançada”, sendo sinónimo de ”senil”, “caduco” e “gagá”. É ainda aplicável “àqueles que possuem comportamento ridículo ou estúpido”. Julgo que é neste último sentido, que o termo seja aplicável aos responsáveis políticos ao mais alto grau que:
- Se queixam-se que as suas reformas chorudas não chegam para as despesas pessoais;
- Chamam “piegas” àqueles que civicamente protestam pela dureza das condições de vida que lhes estão a ser impostas;
- Mandam os licenciados, mestres e doutores emigrarem, por cá não arranjarem emprego; 
- Mandam os militares sair das fileiras, quando estes protestam civicamente;
- Reformados da política, nos sugam dinheiro diariamente com as suas benesses vitalícias.
Perante um panorama sombrio deste quilate, apenas uma atitude é possível: o direito à indignação, acompanhado da legítima conclusão de que somos governados por “xéxés”. É caso para bradar bem alto:
- ACABEMOS COM ESTE CARNAVAL!

Publicado inicialmente a 15 de Dezembro de 2012

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] – HOUAISS, António et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.

Xexé (1895). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (27,4 x 47,4 cm).
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa.

Xexé (1898), desfilando na Praça D. Pedro IV, em Lisboa. Fotógrafo não identificado.
Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da Câmara
Municipal de Lisboa.

Xexé (1903). Ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). Capa da revista “A PARÓDIA”,
nº5 de 18 de Fevereiro de 1903.

Xexé (anterior a 1910), desfilando na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Augusto Bobone
(1852-1910). Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da
Câmara Municipal de Lisboa.

sábado, 1 de março de 2025

CARNAVAL DE ESTREMOZ: Oh tempo, volta para trás!


1 - Corso carnavalesco de 1919 na Praça Luís de Camões, onde ainda não existia o
passeio junto ao qual estacionam os táxis na actualidade. Na parte central ao fundo,
é visível a torre sineira da Igreja da Antiga Misericórdia, situada no local onde está
hoje sedeada a Sociedade Recreativa Popular Estremocense (Porta Nova).

Origem do Carnaval
O período de três dias que precedem a Quaresma é conhecido por Carnaval e nele decorrem alegres brincadeiras e festas populares, que assumem múltiplas formas.
Apontado por muitos como tendo uma remota origem pré-cristã, o Carnaval assumiu importância no séc. IV d.C., quando a Igreja Católica estabeleceu a Semana Santa antecedida dos quarenta dias da Quaresma. Um período de tão longa penitência e privações, incentivaria a realização de festas populares nos três dias que antecediam a Quarta-feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. Os três dias de Carnaval são conhecidos por dias gordos, especialmente a Terça-feira Gorda.
Carnavais com personalidade própria
O Carnaval é uma festa de âmbito planetário. Por esse mundo fora ocorrem Carnavais afamados como os de Veneza, Nice, Santa Cruz de Tenerife, Nova Orleães e Rio de Janeiro. Cada um deles tem a sua identidade cultural intrínseca, forjada por vezes há mais de 100 anos e consolidada pelo tempo. São Carnavais com personalidade própria, que não têm necessidade de copiar outros Carnavais. Sem sombra de dúvida que o mais famoso de todos é o Carnaval do Rio de Janeiro, considerado a maior festa do mundo, que decorre durante 5 dias e se manifesta de múltiplas formas, das quais a mais mediática é o desfile das escolas de samba no Sambódromo da Marquês de Sapucaí.
Em Portugal são inúmeros os locais onde de modos variados é comemorado o Carnaval. Deles destaco os Carnavais de Lindoso, Podence, Lazarim, Cabanas de Viriato, Guimarães, Barcelos, Torres Vedras e Loures, por terem individualidade própria e não serem decalcados de outros.
A 1ª Batalha de Flores em Estremoz
Em Estremoz, a primeira notícia conhecida e referente à realização de um corso carnavalesco, remonta a Fevereiro de 1919, na sequência do final da I Grande Guerra Mundial, travada entre 28 de Julho de 1914 e 11 de Novembro de 1918. A seguir ao horror e à destruição daquele conflito europeu e entre muitas outras coisas, alteraram-se os padrões de vida. Daí não ser de estranhar a criação de um corso carnavalesco em Estremoz. Estava-se na ante porta dos loucos anos 20 e o corso assumiu a forma de uma “Batalha de flores”. Os carros, pertencentes a lavradores e a elementos da melhor sociedade de então, iam enfeitados com flores que deles eram também lançadas sobre a assistência que se encontrava ao longo do percurso, o qual é seguido ainda hoje. Tratou-se de uma batalha amigável em que os projécteis eram flores de cores variegadas e que perfumavam o ar.
O Orfeão e a revitalização do Carnaval de Estremoz
Após a criação em 1930 do Orfeão de Estremoz "Tomaz Alcaide", este chamou a si a iniciativa de promover corsos carnavalescos designados também por “Batalhas de flores”, integradas por carros alegóricos, grupos de cavaleiros, grupos de ciclistas, grupos de foliões e ranchos folclóricos do concelho. Os corsos eram abrilhantados pelas bandas locais, Sociedade Filarmónica Luzitana e Sociedade Filarmónica Artística Estremocense, as quais tocavam música portuguesa, assegurando a animação do evento. “Cabeçudos” e “gigantones” completavam o ramalhete de animação que percorria as ruas da parte baixa da cidade, previamente engalanadas.
O primeiro corso carnavalesco organizado pelo Orfeão teve lugar em 1935 e saldou-se por um assinalável êxito, não só pela participação da população, como pelo impacto junto de forasteiros que visitaram a cidade. O sucesso reeditou-se nos anos subsequentes até 1939, ano em que em 1 de Setembro teve início a II Guerra Mundial. Após o interregno causado pelo conflito bélico, o Orfeão retomou a organização dos corsos carnavalescos em Estremoz em 1951. O auge do Carnaval de Estremoz terá acontecido nos anos 50-60 do século passado. As flores já eram de papel e os projécteis eram papelinhos, serpentinas e saquinhos com serradura. Também apareciam saquinhos com areia e dalguns carros lançavam-se tremoços ou grão-de-bico e ocorriam também as inevitáveis farinhadas e bisnagadas. A música era bem portuguesa e havia foliões que em grupo ou individualmente fizeram História: Joaquim António Chouriço, José Gancho, João Mourinha, Padre-Santo, José Manuel Figo, Francisco Chouriço, José Albano França, Joaquim Viana, António José Martins (Costeleta), Ezequiel Chouriço e António Pegado (Pendão). Não deixavam o seu crédito por mãos alheias, quer encarnassem o papel de um personagem respeitável ou pelo contrário fossem caricaturalmente exagerados. Eram a elite vanguardista e bem disposta de um Carnaval bem português: o Carnaval de Estremoz. Isto no “Tempo da Outra Senhora”. 
Abrasileiramento do Carnaval de Estremoz
Com o eclodir da Guerra Colonial em 1961, os corsos carnavalescos viriam a ser interrompidos e só seriam retomados pontualmente em 1972 e 1973, graças à iniciativa particular de um grupo de foliões estremocenses. Fruto de múltiplas condicionantes, a organização dos corsos carnavalescos só seria retomada pelo Orfeão em 1993, ano em que para além daquilo que era tradicional no Carnaval de Estremoz, alguém teve a triste ideia de acrescentar “escolas de samba”. Foi o abrasileiramento do Carnaval de Estremoz, que fez com que este se abastardasse e que por isso constituiu um atentado histórico e social à sua identidade cultural local.
Actualmente, o Carnaval de Estremoz tem o samba como música de fundo, ao som da qual os blocos de marchantes “sacodem as pulgas”, enquanto no seu imaginário é projectado um filme em que se sentem bailarinos duma escola de samba. Foram obliterados pela colonização brasileira e sentem-se como passistas no Sambódromo da Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro, quando afinal estão no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. Querer transformar as ruas de Estremoz em sambódromo é como em Lisboa, querer meter o Rossio na Rua da Betesga.
O samba, expressão privilegiada da cultura popular brasileira, música e dança alegre para quem as sente no corpo e na alma porque é brasileiro, faz tanto sentido no Carnaval de Estremoz como um elefante numa loja de cristais. Quem desfila por aqui ao som da aparelhagem sonora, não consegue transmitir a alegria nem tem o poder de comunicação dos marchantes cariocas. É uma tristeza. É como se Domingo e Terça-feira Gorda se tivessem transformado em Quarta-feira de Cinzas. O Carnaval de Estremoz é um arremedo do Carnaval carioca. Daí que seja legítimo questionar:
- Quem te manda a ti sapateiro, tocar rabecão?
No corso carnavalesco de Estremoz constata-se a ausência de qualquer tipo de crítica social ou política. Para além disso e pese embora o Carnaval ser um período propício a consumos proscritos durante a Quaresma, não é pedagógica e eticamente aceitável que marchantes consumam álcool durante o desfile, já que esse consumo pode transmitir a ideia errada que para haver alegria é preciso haver consumo de álcool.     
É Carnaval, ninguém leva a mal
Curiosamente, no desfile deste ano, o locutor de serviço proclamava de vez em quando:
- O Carnaval de Estremoz tem o apoio incondicional da Câmara Municipal de Estremoz!
Da minha parte só uma resposta é possível:
- É Carnaval. Ninguém leva a mal.

Hernâni Matos
Cronista do Jornal E, folião e tudo
Publicado inicialmente em 11 de Fevereiro de 2018
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)

CRÉDITOS DAS FOTOGRAFIAS
1 - Fotografia de Mendes Lopes – Jaime dos Santos. Arquivo de Hernâni Matos.
2,3,6,7 – Fotografias de Rogério de Carvalho (1915-1988). Arquivo do Orfeão de Estremoz “Tomaz Alcaide”.
4 - Fotografia de Manuel Gato (1908-1994). Arquivo de Hernâni Matos.
5 - Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988). Arquivo de Hernâni Matos.


  2 Corso carnavalesco de 1935. Carro alegórico da papelaria “A Tabaqueira”.

 3 - Corso carnavalesco de 1935. Carro alegórico de temática equestre frente ao
Quiosque Maniés.


4 - Anos 30 do séc. XX. Mascarados fazendo-se transportar numa Dona-elvira
descapotável e florida, com uma matrícula digna de figurar num vetusto
relicário. Ao fundo, o edifício do RC3 com uma cerca de tabuinhas,
no mesmo local onde hoje existe uma sebe de buxo.

 
 5 - Corso carnavalesco de 1951, frente ao edifício do extinto Círculo Estremocense,
sociedade recreativa frequentada pela alta sociedade da época e cuja criação
em 1850 foi autorizada por alvará régio de D. Pedro V.

6 -Corso carnavalesco de 1954. Grupo de “cabeçudos” e “gigantones”
junto ao Jardim Municipal. 

7 - Corso carnavalesco de 1957. Carro Alegórico do Orfeão de Estremoz “Tomaz Alcaide”.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Massa crítica


O GRUPO DO LEÃO (1885). Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Óleo sobre tela (200 x 380 cm). Museu do Chiado, Lisboa.

O conceito de “massa crítica”, originário da física nuclear, é extensível a múltiplos domínios como sociologia, política, dinâmica de grupos, publicidade, marketing, etc. Em qualquer destas áreas, “massa crítica” é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que um determinado fenómeno possa ocorrer e adquirir uma dinâmica própria que lhe permita autosustentar-se e crescer.
Uma questão que se põe imediatamente é a de saber se a comunidade estremocense tem ou não, massa crítica que lhe permita induzir dinâmicas sociais, indispensáveis ao desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Uma análise do problema poderá levar à conclusão de que Estremoz não tem massa crítica. Contudo, a situação não é irreversível como passo a demonstrar.
Estremoz tem entre os seus filhos, naturais ou adoptivos, bastantes individualidades com currículo respeitável, com percursos de vida notáveis, com provas dadas e obra feita que merece o reconhecimento da comunidade. Todavia, atomizados na sua individualidade não constituem massa crítica. Estão dispersos por variadas coutadas doutrinárias, ideológicas e partidárias, muitas vezes estanques, avessas a pensar para além do dogma que as sustenta, o que inevitavelmente as acabará por aniquilar. Estão ainda disseminados por capelas e tertúlias, que reproduzem alguns dos vícios anteriores. Estão igualmente espalhados por grupos de acção escolar ou confinados a torres de marfim ou celas individuais de pensamento pró-monástico.
Naquelas circunstâncias nunca constituirão massa crítica, já que como nos ensina o gestaltismo, o todo é mais que um mero somatório das suas partes, pois tem características próprias. Estas só poderão ser alcançadas se todos e cada um tiverem a humildade de reconhecer que atomizados não conseguem chegar a parte nenhuma, limitando-se a cumprir um caminho de penitência. Todavia é impensável e ilegítimo que cada um dos múltiplos grupos cogite em arregimentar os restantes, visando o seu auto-reforço. O que é possível e legítimo é cada um desses grupos ou individualidades proceder a uma profunda reflexão que lhe permita separar em termos de objectivos e de linhas de acção, o que é essencial do que é acessório. Feito isto, é então possível procurar equacionar quais os caminhos que podem ser percorridos conjuntamente. Então, Estremoz terá massa crítica, indutora de dinâmicas sociais conducentes ao desenvolvimento nas suas distintas vertentes. Então poderá ocorrer uma mudança de paradigma, que como Fénix renascida das cinzas, nos devolva o orgulho de sermos estremocenses.

Publicado inicialmente em 18 de Dezembro de 2014

sábado, 22 de fevereiro de 2025

As duas culturas


 Imagem recolhida no blogue "Esqueci a Ana"

                                                                        À Catarina, minha filha:

Nos meus tempos de rapaz, já depois dos 18 anos, um Homem com H grande e que se chamava Charles Percy Snow (1905-1980), viu publicada em Portugal em 1965 e graças à acção clarividente de Snu Abecassis (1940-1980), a bem amada de Francisco Sá Carneiro (1934-1980), o livro "As Duas Culturas".
Embora não folheie e releia aquela obra há muito tempo, com ela ocorreu uma mudança de paradigma. Percebi que o problema da cisão da Cultura em dois campos aparentemente opostos (A Ciência e as Humanidades) é um falso problema que alguns procuram acicatar. A posição do Homem no Universo é unívoca e singular. Ele é o objecto e o actor principal de ambas. A ele cabe fazer uma síntese dialéctica e pô-las ao seu serviço.
Na nossa pátria lusitana, como percursor dessa ideia peregrina, que constitui afinal um ovo de Colombo, temos o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), quando pela voz de Álvaro de Campos (1) proclama que:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Também o matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948) na sua conferência “A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo“ (edições Mocidade Livre – 1933), conclui que “a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo”. Para ele também só há uma Cultura. Daí falar em “Cultura Integral do Indivíduo”
Igualmente o professor Rómulo de Carvalho (1906-1997), poeticamente conhecido por António Gedeão, soube integrar na sua magistral poesia e duma forma natural, aquilo que faz parte do arsenal científico da nossa formação. De igual modo eu, físico de formação, andei por caminhos poéticos convergentes, apesar de distintos. Aí pelos 20 anos fui desintegracionista, sob a influência do poema “A Astronave” de Armando Ventura Ferreira (Arcádia-1963) e manuscrevia poemas com tinta cor de barro – a cor do meu Alentejo e dos campos de Estremoz, os quais oferecia nas ruas de Lisboa aos transeuntes que os queriam aceitar. Integrava então um grupo heterogéneo, o qual se dispersou no tempo e que foi emergindo posteriormente, alguns com certa notoriedade. É dessa época de não-rima e com pontuação à Saramago, o excerto:

endotermizaste em mim uma amizade no tempo
cristaliza agora analiticamente um amor no espaço
e nunca mais nos bombardearemos com palavras virgens
ávidonautas, sexonautas, astronautas seremos
astronautas partiremos na minha nave
para anunciarmos aos povos do infinito-dimensional
que como experimentados sexólogos terrestres
descobrimos por fim o metafísico deus dos rabis

Publicado inicialmente a a 1 de Outubro de 2013

 (1) - s.d. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 110.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Resposta a quem elogiou a minha escrita

 

Hernâni Matos (2023). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.

Mesteiral das palavras, lá isso sou. Mão de obra gratuita à disposição da comunidade, eventualmente usada para zurzir os que se portam mal e me fazem chegar a mostarda ao nariz. Todavia, prefiro filigranar palavras que traduzem sentimentos e emoções que têm a ver com a matriz identitária alentejana. E o que eu gosto de transmitir uma visão polifacetada das coisas... Creio firmemente que a realidade possa ser no limite o resultado da sobreposição dum número considerável de visões de diferentes actores no palco da vida. Como tal, a minha visão global sobre qualquer coisa é fruto do modo como eu vejo essa qualquer coisa sobre múltiplos pontos de vista. O Homem não é uma alimária que tenha que estar sujeita a ver numa única direcção. Isso é o que querem os manipuladores de consciências. Mas com eles, há muito que perdi a paciência ou melhor, as paciências.

- PIM! O TEXTO CHEGOU AO FIM!
- PAM! A PALAVRA NÃO É CORTESÃ!
- PUM! (É que não há nenhum).

Hernâni Matos

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Eu e António Aleixo

 

António Aleixo (1899-1949)

No final dos anos 60 do séc. XX, enquanto membro do Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, participei em ocupações da cantina da Faculdade, como forma de protesto por não haver uma Associação de Estudantes democraticamente eleita e como processo de luta contra o regime fascista.
Eram ocupações feitas à noite e em que não deixávamos fechar a cantina às 21 horas. É claro que os informadores da PIDE na Faculdade, cumpriam a sua missão e passado pouco tempo, tínhamos a visita da famigerada Polícia de Choque, a qual cercava a Faculdade. O desfecho dessas ocupações foi variável, o que incluiu muitas vezes bordoada e prisões.
Durante as ocupações, havia intervenções políticas e actuação de cantores que se solidarizavam connosco, com especial destaque para o Zeca Afonso e o para o padre Fanhais. Também me lembro da participação do actor Rogério Paulo.
Numa dessas ocupações lembro-me de ter subido para cima de uma mesa e ter declamado, com agrado geral, quadras de António Aleixo, que era praticamente desconhecido em Lisboa. Era sobretudo conhecido no Algarve e em Coimbra, onde fora divulgado pelo pintor Tossan, que era natural de Vila Real de Santo António e membro do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). De Coimbra até Estremoz, a poesia de António Aleixo viajaria com a alma e a convicção do João Carlos Gargaté, natural de Estremoz, estudante de Direito, membro do TEUC e meu grande amigo. Foi ele que me transmitiu o culto da poesia de António Aleixo, uma poesia muitas vezes amarga, mas poesia do real e arma de combate contra a injustiça. Foi essa poesia que me levou a subir para cima da mesa e a fazer minhas as palavras de António Aleixo. Terá sido a primeira divulgação pública do trabalho do poeta, na cidade de Lisboa, por via do meu vozeirão, então no seu esplendor.

Publicado inicialmente em 17 de Novembro de 2021 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Erros de sacristia


Fig. 1 – Capitulares do meu nome. 



No dia 19 de Agosto de 1946 veio a este mundo uma criança do sexo masculino, o qual sou eu e a quem no dia do baptismo, a madrinha deu o nome de “Hernâni António Carmelo de Matos”. Trata-se de um nome constituído pelo antropónimo composto “Hernâni António” e pelos sobrenomes “Carmelo” e “Matos”. Iremos ver que foi um nome que veio a alimentar uma estória quase tão comprida como a légua da Póvoa.
O antropónimo
Começando pelo antropónimo “Hernâni António”, importa conhecer o porquê e as consequências de ter recebido cada um destes nomes. Em primeiro lugar “Hernâni”. A minha madrinha e tia, pessoa simples do povo e desprovida de conhecimentos literários, desconhecia completamente a existência do drama “Hernâni” da autoria do escritor francês Vítor Hugo. Todavia, era do conhecimento público a existência de um alentejano ilustre, natural do Redondo, de seu nome Hernâni António Cidade (Fig. 2), distinto homem de letras e amiúde falado nos jornais. A minha madrinha terá achado o nome bonito e para mais o nome de um alentejano e tudo. E eu lá fiquei “Hernâni António”. Foi um nome que teve consequências ao longo da minha vida. Primeiramente na vida escolar, pelo facto de me chamar “Hernâni”, palavra começada por “H”, a oitava letra do alfabeto português, então com 23 letras, fazia com que eu não fosse dos primeiros a ser chamado a provas orais. Primeiro iam os Abeis, os Balbinos, os Carlos, os Danieis, os Edgares, os Faustinos e os Gaspares. Só depois ia eu, o que me deixava mais algum tempo para estudar para as orais, afim de poder “tapar buracos” que tivessem ficado abertos durante o ano escolar. Lá diz o provérbio optimista: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Todavia, as consequências de me chamar “Hernâni” não ficaram por aqui.
Com o desenvolvimento da minha personalidade, adquiri hábitos de leitura e como coleccionador tornei-me bibliófilo. Naturalmente que a minha biblioteca começou então a incorporar entre outras, obras do Dr. Hernâni António Cidade, algumas com dedicatória autógrafa a terceiros. O facto de me chamar “António”, levou-me também a coleccionar iconografia antoniana, nomeadamente a nível de barrística popular estremocense (Fig. 3). A nível bibliófilo, além dos seus Sermões e de biografias que sobre ele têm sido escritas, interesso-me por obras que abordam Santo António na Literatura de Tradição Oral, os aspectos etnográficos das festividades populares do Dia de Santo António, bem como a iconografia antoniana, sobretudo nas suas vertentes pictórica e azulejar.

Fig. 2 – Hernâni António Cidade (1887-1975), professor universitário, ensaísta,
historiador e crítico literário, natural do Redondo.

Significado de Hernâni
O antropónimo “Hernâni” encontra a sua origem em “Hernan”, variante de “Hernando”, versão espanhola de “Fernando”.
Este último nome é uma contracção de “Ferdinando” do latim “Ferdinandus”, que por sua vez proveio do gótico “Ferdinand”, palavra composta de “fardi” (viagem) e “nand” (pronto). O antropónimo “Hernâni”, poderá então significar “pronto/preparado para a viagem".
Por outro lado, “Fernando” pode derivar do alemão “Firthunands”, palavra composta de “firthu” (paz)  e “nands” (audaz). O antropónimo “Hernâni” poderá assim designar "Aquele que se atreve a tudo para conservar a Paz".
O antropónimo Hernâni popularizou-se por ser o pseudónimo do herói e título homónimo da obra teatral do escritor francês Victor Hugo, representada pela primeira vez em 1830 e a partir do qual o compositor italiano Giuseppe Verdi, compôs em 1844 uma ópera em 4 actos.
Significado de António
O antropónimo “António” provém do latim “Antonius”, que significa “digno de apreço” ou “de valor inestimável”. É um dos nomes mais populares da antroponímia portuguesa, devido, sobretudo, a Santo António de Lisboa.
O sobrenome Carmelo
O meu primeiro sobrenome e muito bem, é “Carmelo”, nome de família do meu avô materno, Manuel Carmelo (ferroviário), mais conhecido por “Manuel Alturas”. É um sobrenome que encerra em si várias estórias. A primeira é a sorte de que sendo neto do Manuel Alturas e muito mais alto que ele, nunca ninguém se ter lembrado de me chamar “Monte Carmelo”. A segunda é o facto de eu ter uma caligrafia que mais parece um desenho abstracto. Não porque eu tenha estrabismo, não senhor. Quem tem de me ler é que pode ficar estrábico. Era uma alegria ler as pautas de exame afixadas na Faculdade de Ciências que frequentei, nas quais figurava o meu nome. Raramente aparecia a palavra ”Carmelo”. Esta era substituída por sobrenomes como “Carrelo”, “Carpelo”, “Corvelo”, “Carvalho”, “Camelo”, “Capeto”, “Corneto” e “Carapeto”, constituindo uma cornucópia de sobrenomes espúrios. É claro que nunca me queixei. A culpa era minha e só minha. Desabituado de escrever nos cadernos de duas linhas usados na Instrução Primária, comecei a escrever à rédea solta logo no Liceu. Este facto veio a agravar-se na Universidade, onde a necessidade de rapidamente tirar apontamentos nas aulas para ter por onde estudar, distorceu ainda mais a minha caligrafia. Para além disso, a palavra “Carmelo” aparecia, por diversas vezes, substituída pela palavra “Caramelo” e daí o mal o menos, já que ambas as palavras são variantes do mesmo sobrenome. Todavia, o sobrenome “Carmelo” sugere algo de natureza monástica ao passo que “Caramelo” é um sobrenome polivalente. Tanto designa um rebuçado confeccionado a partir de açúcar queimado, como a água congelada (gelo), alguém de nome desconhecido (sinónimo de tipo ou gajo) ou trabalhador rural do distrito de Coimbra que noutros tempos vinha trabalhar para o Alentejo.
O sobrenome “Carmelo” aparece na genealogia alentejana e para além da família “Carmelo de Matos, existem outras como “Carmelo Grazina”, “Carmelo Morais”, “Carmelo Aires” e “Carmelo Alcaide”.
O sobrenome Matos
Chegámos aqui a um ponto crucial desta crónica e é aqui que “a porca torce o rabo”. Vejamos porquê.
A 1 de Julho de 1923 nasce na aldeia da Cunheira da freguesia e concelho de Chança, uma criança do sexo masculino (o meu futuro pai), que seria o primeiro de 4 filhos de Manuel Sabino (pedreiro) e Antónia Matos (doméstica). À criança foi dado o nome que consta no registo baptismal “João Sabino de Matos”. Trata-se de um facto estranho já que de acordo com a tradição em vigor, consignada na lei, o último sobrenome a atribuir a um recém-nascido deve ser o do pai. De acordo com tal disposição, os meus tios (duas tias e um tio) saíram “Matos Sabino”. Todavia, o meu pai saiu “Sabino de Matos” e não “Matos Sabino”, como se o pai tivesse deixado de ser pai para passar a ser mãe e esta tivesse deixado de ser mãe, para passar a ser pai. Se o caso não se tivesse passado na Igreja, eu diria que tinha sido obra do “Diabo”. Mas não, foi troca dos sobrenomes pelo padre de serviço, quem sabe se às voltas com uma digestão difícil.
O sono de Deus
Reza o adagiário português que “Deus não dorme”. Com o devido e democrático respeito pelas crenças do próximo, não penso que assim seja. Se Deus não dormisse ou pelos menos não estivesse distraído, o padre da Cunheira não teria invertido a ordem dos sobrenomes de família. Creio piamente que o Senhor teria dado no padre um celestial abanão, que o levasse a emendar o erro crasso em que incorreu. Fruto dele, sou “Carmelo de Matos” e não “Carmelo Sabino”. Felizmente que o sobrenome “Matos”, que até está antecedido de um “de”, não se escreve com dois “tt” ou seja “Mattos”. Se assim fosse, algum maldizente daqueles que por aí abundam, poder-se-ia lembrar de me acusar de ser pretensioso, por onomasticamente me travestir em “sangue azul”, que de facto não sou. De salientar, que embora por efeitos práticos, mantenha o nome com um sobrenome errado, para efeitos genealógicos deverei ser encarado como um “Carmelo Sabino” e não como um “Carmelo de Matos”. 
Erro de sacristia
Todas as estórias têm um fim e esta chegou ao fim. Todavia, todas as estórias têm também uma moral. Neste caso, creio ser legítimo concluir que o erro cometido pelo padre foi um “erro de palmatória”, daqueles que levavam os professores do antigamente a dar pelo menos uma palmatoada da praxe em cada mão do aluno com a “Dona Rosa” de uso pessoal. Para além disso, foi um “erro de sacristia” que eu não perdoo e que só o Senhor na sua infinita benevolência poderá perdoar.

Estremoz, 19 de Setembro de 2019
(Jornal E nº 231, de 7-10-2019)
Publicado inicialmente em 20 de Outubro de 2010


Fig. 3 – Santo António. Imagem devocional em barro de Estremoz, da autoria do
barrista e oleiro Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O que gostaria de ver em Estremoz em 2025?

 


“Estremoz é uma cidade que me dói,
por tudo aquilo que lhe falta”

Cai o pano para 2024 e entra 2025. Lançámos um desafio aos nossos colaboradores pedindo-lhes que nos fizessem chegar os seus votos para o novo ano, respondendo a uma pergunta: “O que gostaria de ver (ou ter) em Estremoz para o ano de 2025?” Hernâni Matos respondeu ao repto.

Jornal E

 

Estremoz é uma cidade que me dói, por tudo aquilo que lhe falta. O que é não só consequência da falta de visão estratégica de algumas edilidades, como pela definição de prioridades questionáveis ao longo dos tempos.

Estremoz carece de uma resposta urgente a problemas prementes que na minha óptica são de priorizar sequencialmente assim: rede de abastecimento de água, rede de esgotos, requalificação urbana, construção habitacional, rede de ecopontos, mobilidade e acessibilidade urbanas.

2025 é ano de eleições autárquicas a ocorrer em Setembro. Neste momento, os cabeças de lista das várias formações em confronto já terão obtido o beneplácito dos estados maiores partidários ou o acordo pró-forma dos seus apaniguados. Já terão, decerto, constituído as suas equipas ou estarão em vias de as concretizar.

Será que o Executivo Municipal gerado pelas eleições setembrinas, elaborou uma lista de faltas semelhante à minha? Não sei, mas provavelmente não. Apenas sei que qualquer dia começam a meter-nos papelinhos debaixo das portas, a contactar-nos pessoalmente com o seu melhor sorriso e a azucrinar-nos com os seus hinos, enquanto apregoam bacalhau a pataco. E as artimanhas são muitas. Lá diz o rifão: “Com papas e bolos se enganam os tolos”. Convém aguentar as investidas a pé firme e mesmo de pé atrás. Pela minha parte não se admirem, se eu não estiver nos meus dias e lhes atirar à cara com esta do Aleixo: “Vós que lá do vosso império / prometeis um mundo novo, / calai-vos, que pode o povo / q'rer um mundo novo a sério!”


Publicado inicialmente em 1 de Janeiro de 2025
Publicado no jornal E, nº 347, de 2 Janeiro de 2025

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

CONCERTO DOS UHF – A heroína ali foi a música

 

UHF - Capa do album À FLOR DA PELE (1981)


CONCERTO DOS UHF – A heroína ali foi a música [1]

Crónica rock [2] ou talvez não, por Hernâni Matos

 

Crónica publicada no jornal
Brados do Alentejo nº48 (3ª série),
de 25 de Setembro de 1981


Uma viola baixo, uma viola ritmo e uma bateria poderão não fazer uma orquestra. Fazem, porém, um concerto de rock. Que o digam a meia bancada e o terço de ringue que no passado dia 18 de Setembro [3], na Esplanada Parque em Estremoz, assistiram ao concerto dos UHF.

Amplificador que difunde vibrações, volts transformados em decibéis, poluição sonora estandardizada dum conjunto desfalcado dum vocalista que é também viola ritmo.

Montanhas de amplificadores e um aparato de projectores verde-laranja-branco, verde-laranja-branco, verde-… Poça que já me doía a vista.

Corpo forrado de jeans, camisetes e ténis. Homens programados, gestos computorizados, corpos electrificados geradores de música. E nas convoluções epilépticas, violas tricotam música que as malhas que o som tece lá vão aquecendo a malta. É preciso é conjugar o verbo pular.

Embora se vissem senhoras em traje de passeio, predominava a juventude, que o rock não liga com o reumático. Havia tipos exóticos, cabelos à Black Power, rapazes tipo West Side com Marias para todos os paladares. Havia também uma bebedeira com um lenço ao pescoço e um chapéu à 3 mosqueteiros, enfiado num pau de virar tripas. É que estas coisas têm os seus próprios regulamentos e a malta tem de ir fardada a rigor.

Ambiente morno, que em Estremoz nada pega. Um palco decorado com barreiras e uma mão cheia de PSP´s e PE’s que não chegaram a fazer falta, que não houve problemas com a malta. Oh, meu! Ainda dizem que a juventude é violenta!

Na escuridão, beijos generosos que se dão e óculos escuros que se tiram, pois à noite todos os gatos são pardos.

Os cigarros que tremulam são os novos pirilampos da sociedade de consumo.

Há quem deambule por aqui e por ali e há quem beba cerveja, que o escuro não mata a sede.

As coisas aqueceram aí pelo “Modelo Fotográfico”, não percebemos se vestido se despido, que por essa altura os tímpanos já tinham pifado. O quê? Queres um fósforo? Toma lá pá! Não tens de quê!

Com o “Cavalo de Corrida” atingiu-se o auge da morneza, com a malta de braços erguidos como quem protesta contra o preço da carne, o que não era o caso, pois ali todos tinham ido ao concerto por sua livre vontade.

Quanto à encenação, aquilo tava uma maravilha, pá! Era a gaja da saia transparente que tirava fotografias à contraluz e foi o blusão despido aí por alturas do “Cavalo de Corrida”, que era p’ra a gente acreditar que aquilo estava mesmo a aquecer. E até deu p’ra haver publicidade, que um sumo que se bebe no palco é sede comercial que é preciso promover.

Vale tudo menos tirar olhos. Não pensava isto quem no outro dia ia tirando um ao António Manuel Ribeiro (vocalista - viola ritmo), pois estava acompanhando o rock ao ritmo da fisga. Aquilo de colcheias e projecteis à mistura não resultou e o Tó Manel ia ficando como o Luís Vaz, vulgo Camões.

Isqueiros que se se acendem aqui e ali nos braços erguidos ao alto, como quem paga uma promessa a Fátima.

E eis que um fogo de artifício cria a apoteose que os espectáculos devem apresentar no fim. E aqui houve encenação de pormenor na cor cardinalícia que conferiu a solenidade que a apoteose precisava ter.  E no momento em que termina o concerto, os músicos erguem as violas bem alto, como um sacerdote num templo ao proceder à consagração da hóstia.

Música que se extingue, artifício de fogo que se acaba. Resta o fumo que o vento acaba por levar. E com aquela nuvem passageira, os músicos saem pela esquerda baixa para logo de seguida, numa semi-escuridão e com blusas trocadas entre si por questões de segurança, irem direitinhos à cozinha do bufete. A traça não perdoa. É preciso encher a mula, pá!

Uma hora de espectáculo. 13 composições, 85 contos de cachet. Nada mau. E o “Estremoz”[4]? Terá reforçado a verba ou averbado o esforço?

E é isto o rock. Rock à Portuguesa, pois claro!

Quando tiver um puto, hei de lhe dizer:

- Porta-te bem ou levo-te ao rock!

 Hernâni Matos

[1] Concerto realizado pelos UHF no ringue da Esplanada Parque em Estremoz, no dia 18 de Setembro de 1981.
[2] Crónica publicada no jornal Brados do Alentejo nº48 (3ª série), de 25 de Setembro de 1981.
[3] De 1981.
[4] Clube Futebol Estremoz.