Mostrar mensagens com a etiqueta Crítica Social. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Crítica Social. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ora agora falo eu!

 

O discurso de Hernâni Matos. Fotografia de Luís Mariano Guimarães.


Palavras proferidas no acto inaugural da exposição
NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / COLECÇÃO HERNÂNI MATOS
que no dia 15 de Junho de 2024 teve lugar na
Sala de Exposições Temporárias do
Museu Municipal de Estremoz Professor Joaquim Vermelho

 

 Vejamos o que aqui nos traz aqui

Em boa hora o Município de Estremoz teve a iniciativa de promover um conjunto de iniciativas, de índole diversificada e plural, sob a epígrafe "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”.
Nestas comemorações se insere a presente exposição de artes plásticas, designada por NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / COLECÇÃO HERNÂNI MATOS.
Este certame tem 3 objectivos precisos e claros: - Comemorar os 50 anos do 25 de Abril; - Realçar o papel da arte neo-realista como arte de resistência; - Divulgar trabalhos de artistas plásticos neo-realistas.

Falemos de Abril
Foi em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do Movimento das Forças Armadas – MFA, que foi conseguido o derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime totalitário e fascista de Salazar e de Caetano.
No desenrolar dos acontecimentos teve papel determinante um esquadrão do RC3 comandado pelo então capitão Andrade Moura, o qual cumprida a missão que o levara a Lisboa, à chegada a Estremoz foi alvo de grandiosa recepção popular, sendo aclamado pela multidão entusiasmada e recebendo honras militares.
Estremoz, através do seu prestigiado RC3, participara na libertação, o que muito nos congratula.
No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o de Abril de 1974:

“Quem o fez era soldado
homem novo Capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.”

E mais adiante:

“Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.”

Com o 25 de Abril de 1974 houve uma mudança de paradigma. Como preito de homenagem a Luís Vaz de Camões, cujo 5º Centenário de Nascimento está a decorrer, mas pensando sempre no 25 de Abril de 1974, não resisto a parafrasear um excerto de um dos seus mais famosos sonetos:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

Antecedentes do 25 de Abril
O 25 de Abril foi antecedido de muitas lutas contra o regime, por parte de múltiplos sectores da sociedade portuguesa: operários, camponeses, trabalhadores de serviços e intelectuais.
É nesse contexto de luta que surge informalmente uma frente cultural de escritores e artistas plásticos, descontentes com a política cultural do Estado Novo, frente essa que viria a ser designada por “Movimento neo-realista português”.
Tratou-se dum movimento filosófico, literário e artístico, o qual se manifestaria pela primeira vez em meados dos anos 30 através de polémicas literárias surgidas nos jornais “O Diabo” e “Sol Nascente”, bem como na revista “Vértice”, que defendiam uma arte virada para os verdadeiros problemas da sociedade, entrando em ruptura com o que era preconizado pela revista “Presença”, a qual defendia uma literatura expurgada de ideologia e não comprometida socialmente e que ao contrário do neo-realismo dava mais importância à “forma” que ao “conteúdo”.
O Movimento neo-realista português estender-se-ia já nos anos 40 às artes plásticas.
Os neo-realistas assumem-se então como representantes e porta-vozes dos anseios das classes trabalhadoras, propondo-se retratar a realidade social e económica do país, ao mesmo tempo que se empenham na transformação das condições sociais do mesmo. Para tal, focam-se no homem e na mulher comuns, procurando saber como vivem e trabalham operários e camponeses. Para além disso, abordam e aprofundam temas como as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Escrutinam as injustiças e analisam o modelo social vigente. Pugnam pela elevação moral dos oprimidos e depositam esperança no futuro do Homem.
É claro que a defesa de todos estes valores se processa nas condições mais duras de repressão, que incluem no mínimo a censura (caso dos frescos de Júlio Pomar no Cinema Batalha no Porto em 1948, os quais foram mandados destruir), a apreensão de obras de arte (como aconteceu, entre outros, com Júlio Pomar, Lima de Freitas e Manuel Ribeiro de Pavia na Exposição Geral de Artes Plásticas de 1947, em Lisboa), a censura prévia de exposições (como aconteceu nas Exposições Gerais de Artes Plásticas entre 1948 e 1956), a proibição da realização de exposições (como aconteceu em 1952 em que não se realizou a Exposição Geral de Artes Plásticas, porque a Sociedade Nacional de Belas Artes esteve encerrada pela PIDE), a interdição do desempenho de cargos públicos (caso de Júlio Pomar e Alice Jorge) e no limite, a prisão (como aconteceu com os pintores Rogério Ribeiro, Júlio Pomar e Lima de Freitas) e mesmo o assassinato a tiro na via pública (como aconteceu com o escultor José Dias Coelho).

Memórias guardadas
Os trabalhos neo-realistas aqui expostos são registos da realidade de uma época nos seus múltiplos aspectos: social, económico e político. São pois, memórias do passado.
Por outro lado, ao reunir um acervo pessoal dessas obras, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.
Estas memórias guardadas, conjuntamente com muitas outras memórias integram a chamada “memória colectiva”, a qual nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.

A terminar
Dou-vos conta da minha disponibilidade para vos conduzir numa visita guiada à exposição.
Mas antes disso gostaria de expressar publicamente alguns agradecimentos:
Em primeiro lugar, ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, José Daniel Pena Sadio, que teve a gentileza de redigir um texto de abertura para o catálogo, que muito o valoriza e me honra, já que no mesmo é reconhecido o valor e o interesse de parte do meu acervo estar patente ao público, o que o levou a conceder o seu aval à presente exposição.
Em segundo lugar, ao estimado filósofo e meu prezado amigo António Júlio Rebelo, que igualmente teve a gentileza de redigir o texto “O imaginário desceu à terra”, um monumento de pensamento cuja inserção no catálogo muito me orgulha.
Em terceiro lugar, quero agradecer a curadoria da exposição, de Isabel Borda d’Água, Directora do Museu Municipal de Estremoz, que se mostrou inexcedível na preparação da exposição e na divulgação da mesma.
Por último, quero agradecer à equipa de montagem do Museu, liderada pelo Senhor Manuel Broa, a dedicação e a competência técnica reveladas na concretização do “visual da exposição”.
A todos, o meu muito obrigado. Bem hajam!
Para todos eles, peço uma calorosa salva de palmas.


Hernâni Matos
Texto publicado em 17 de Junho de 2024

Uma aspecto inicial da assistência. Fotografia de Luís Mariano Guimarães.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

A rua onde eu moro, que impressão me faz

 

Pedras há muitas


Há 52 anos que moro na rua de Santo André em Estremoz e há mais de 70 que habito na área circundante da vetusta Igreja de Santo André, demolida criminosamente nos anos 60 do século passado, vítima da sanha empreendedora do autodenominado Estado Novo, o qual não olhou a meios para ali construir o actual Palácio da Justiça.
Tenho plena consciência de que a “minha” rua não é o centro do Universo pelo facto de eu lá morar, nem tampouco o centro da cidade, apesar de se situar na sua zona central, contígua ao Rossio Marquês de Pombal, considerado a sala de visitas da urbe. Contudo, a minha sensibilidade leva-me a ter a percepção da realidade de tal microcosmo. Daí que o imperativo da minha consciência cívica me leve a partilhar com o leitor, em tom coloquial, algumas preocupações que por um motivo ou por outro, grassam o meu espírito.

Pedras há muitas
No início do passado mês de Fevereiro rebentaram as águas à terra-mãe, mesmo à entrada da rua de Santo André, junto ao local onde resido. Depois da rápida e bem-sucedida intervenção dos competentes serviços, o problema estava resolvido já no dia 4. Como memória desse dia, decorridos que são 3 meses, perduram as pedras da calçada, encostadas à parede lateral do Palácio da Justiça, como se de contraforte se tratasse. É sabido que a Justiça em Portugal está a precisar de uma reforma profunda. Porém, daí até pôr contrafortes nos Palácios da Justiça que por aí há, vai uma grande distância. É caso para dizer:
- Pedras há muitas, calceteiros é que não!

A sede do felino

A sede do felino
Há dias, em tarde soalheira, fui dar com um gatinho abandonado a beber água de uma cova da calçada, que a chuva da véspera ali vertera. Trata-se de uma das muitas concavidades presentes no local, cuja existência remonta ao tempo dos anteriores senhores. São depressões que teimam em manter uma convivência indesejada com os transeuntes e os veículos que por ali transitam. A imagem enternecedora do gatinho sequioso perdura ainda na minha retina. De tal modo que sou levado a perguntar:
- Que acontecerá ao gatinho se taparem as covas?

 O cemitério de beatas

O cemitério de beatas
A calçada negra, irregular e escalavrada, encontra-se em determinada zona, pejada e conspurcada por uma multiplicidade de beatas nela semeadas, preenchendo os interstícios das pedras. Em tempos de pandemia foram para ali atiradas, pisadas e esmagadas por fumadores, no decurso das infindáveis filas junto à padaria e ao multibanco. Por ali permanecem, vítimas da sua e nossa pouca sorte de termos um tal cemitério em plena via pública. Nem o céu as salvou. Pelo contrário, as águas celestiais vertidas por São Pedro sempre que assim o entendeu, encarregaram-se do resto, consolidando no solo as beatas jazentes. Qualquer delas, em ar de desafio, parece dizer-nos:
- Daqui não saio, daqui ninguém me tira!
No tempo em que havia varredores, elas já não estariam ali. Mas hoje, quando as vassouras são passeadas pela calçada, só é recolhido o lixo maior. Por isso, as beatas ali permanecem como libelo acusatório da falta de civismo dos fumadores, bem como indício e denúncia muda da falta de higiene urbana no local.
Todavia, o despontar das ervas nos passeios, associado a um cíclico renascer da natureza, constituem um lenitivo para as nossas mágoas e um hino de esperança em melhores dias que hão de vir.

Todos ao molho e fé em Deus

Todos ao molho e fé em Deus
No tempo da coligação da mãozinha com as setas (1986-1990) foi criado um parque de estacionamento em cima do passeio, junto aos contentores, o qual sem sobressaltos tem sido utilizado ao longo do tempo. A mãozinha livrou-se das setas (1990-1993), mas o parque de estacionamento continuou, prosseguindo no tempo da foicinha (1994-2005), a que se seguiu novamente o regresso da mãozinha (2005-2009). Depois, foi a vez do polegar levantado, à maneira de César (2009-2021). Retirado este de cena, lá veio novamente a mãozinha (2021-2025) e o parque continuou a ser usado. Por outras palavras, as pessoas têm usufruído do parque de estacionamento ao longo de quase 40 anos.
Acontece que por muitos afazeres ou por estarem distraídos, os senhores nos quais descarregamos periodicamente o papelinho, se esqueceram todos de legalizar o estacionamento, colocando no local a sinalização vertical prevista na lei. Tal omissão foi corrigida recentemente com a aposição no local de sinalização vertical, que restringe o estacionamento a 3 lugares, visando facilitar o acesso aos contentores do lixo e o trânsito pedonal para a Rua 5 de Outubro. Tratou-se de uma medida acertada, uma vez que o estacionamento no local foi sempre do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”, como é timbre do Zé português.
Apesar de tudo, o problema não ficou resolvido, uma vez que a instalação da sinalização vertical não foi acompanhada da marcação horizontal a amarelo no pavimento, identificando a localização dos 3 lugares de estacionamento. Na sequência dessa omissão, continua “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Por outras palavras, o estacionamento no local continua a ser do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”. Daí que cada um vá estacionando o carro onde lhe dá mais jeito. Até ver.
Publicado no jornal E nº 356 de 8 de Maio de 2025

terça-feira, 15 de abril de 2025

Benfica - Arouca

 

Bacia de barro vermelho vidrado, de Redondo. Decoração esgrafitada e pintada
com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.

O emproamento verbal de quem se regozija com o empate Benfica-Arouca, leva-me a concluir que “A mau falar, boa resposta dar”, acrescido de “Quem muito fala, pouco acerta” e como nada está decidido, remato proclamando: “Bom é saber calar até ser tempo de falar”.

- VIVA O BENFICA!

A matriz do meu pensamento, expressa e veiculada através do texto supra, é invariante e inalterável. Não reage a diatribes verbais reactivas, independentemente da sua origem e motivação. Fazê-lo seria contemporizar com o clima tóxico alimentado pelo fanatismo que grassa nas hostes clubistas.
A meu ver, o exemplo a apresentar à juventude, que é o futuro, é a da elevação e da verdade desportiva, a qual deve ser transversal, abrangendo dirigentes, jogadores e adeptos. O contrário é suicídio dos intervenientes e a morte do desporto. Para tal não podem contar com o meu contributo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Rua de Santo André em Estremoz vai ter cara lavada

 


Estremoz, 1 de Abril de 2025

Foi tornado público que o Município de Estremoz deliberou recentemente regularizar a intransitável calçada da Rua de Santo André, bem como combater o estacionamento selvagem ali patente.

Trata-se de um gesto de elevada compreensão pelas dificuldades sentidas pelo trânsito pedonal naquela artéria citadina.

Trata-se igualmente de um gesto magnânimo relativamente aos peões que por ali se vêem forçados a transitar, não só moradores como também clientes dos estabelecimentos comerciais instalados naquela via urbana.

Pessoalmente, congratulo-me com o alcance social das providências tomadas pelo Município.

Bem hajam!

Hernâni Matos

(Morador há 52 anos na Rua de Santo André,
onde até ao presente era frequente ouvi-lo vociferar:
- ONDE É QUE JÁ SE VIU UMA RUA ASSIM!)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Sinos: Velhos Tempos e Tempo Novo


Igreja de Santo André com as suas duas torres sineiras (Foto de C. J. Walowski - 1891).
Situada na Rua 5 de Outubro, em Estremoz, no local onde hoje está o Palácio da Justiça.
Muito rica e imponente no seu estilo barroco, foi sede de Paróquia. A sua construção
iniciada em 1705, levou 20 anos, tendo sido inaugurada em 26 de Novembro de 1725.
Foi demolida em 1960, por ordem do regime de Salazar, o que foi sem sombra de dúvida,
o maior crime alguma vez perpetrado contra o património construído em Estremoz. 

Velhos Tempos
O som dos sinos é um dos sons mais antigos que povoam as memórias da minha infância. Quando frequentava a Escola Primária, tanto o início das aulas como da missa dominical eram anunciadas por toques de sinos.
Ao longo dos séculos os sinos têm sido utilizados como alfaias religiosas que assinalam os actos litúrgicos, dão as horas e funcionam como meio de comunicação, tocando a rebate a fogo e anunciando desastres como naufrágios, bem como reuniões de conselhos de anciãos ou de câmaras, assim como reunindo o povo para trabalhos agrícolas ou batidas a lobos.
Os sinos distinguem-se uns dos outros pelo modo como se exprimem: variando a altura, a intensidade e o timbre, assim como a duração, o ritmo e o compasso do som.
As técnicas de percussão sineira incluem: picar, repicar, badalar, bater, rebater, tanger, destanger, bambolear, bandear e dobrar. Através delas podem ser gerados códigos acústicos entendíveis pela comunidade: canto em ocasiões de festa e choro em momentos de dor.

Literatura Oral
O sino encontra-se abundantemente registado na nossa literatura de tradição oral. Assim, a nível de ADAGIÁRIO, diz-se: “Menino e sino só com pancada”, “O sino chama para a missa mas não vai a ela”, “Os sinos tangem-se pelos mortos e não pelos vivos”, “Quem toca o sino não acompanha a procissão”, “Sino forte, vento húmido”, “Sino pequeno berra muito”. No campo da GÍRIA POPULAR são conhecidas expressões como: Andar num sino (Andar contente), Sino (Copo de vinho), Sino da Sé (Copo de litro para vinho, usado nas tabernas do Porto), Sino de correr (Toque que marcava a hora de fechar as tabernas e recolherem a casa, judeus e mouros), Sino grande (Pena máxima aplicada ao réu). No âmbito das LENGALENGAS são conhecidas diversas, entre as quais esta: “Amanhã é Domingo / Toca o sino / O sino é de ouro / Mata-se o touro / O touro é bravo / Ataca o fidalgo / O fidalgo é valente / Defende a gente / A gente é fraquinha / Mata a galinha / Para a nossa barriguinha”. Quanto a ADIVINHAS, existem várias cuja solução óbvia é o sino. Eis uma: "Alto está, / alto mora, / todos o veem, / ninguém o adora./ O que é? ".

Literatura Portuguesa
Em prosa, a referência literária mais antiga relativa a sinos remonta a Portugaliae Monumenta Historica (870). Posteriormente surge em António Tenreiro – Itinerário (1560), Frei Pantaleão de Aveiro – Itinerário da Terra Santa (1593), Frei Gaspar de São Bernardino – Itinerário da Índia por Terra (1611), Fernão Mendes Pinto – Peregrinação (1614) e mais tarde ainda em Eça de Queirós - O Primo Basílio (1878), Camilo Castelo Branco - A Maria da Fonte (1885) e Ramalho Ortigão – As Farpas – I (1887). Na poesia, entre os inúmeros poetas que falam de sinos, destacamos: Luís de Camões - Os Lusíadas (1572), António Nobre – Os sinos (1892), António Correia de Oliveira – O sino (1899), Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia (1913), Florbela Espanca - Noite trágica (1923) e António Lopes Ribeiro – Procissão (1956).

Tempo Novo
A Constituição da República Portuguesa consigna como direitos fundamentais, o direito à diferença e a igualdade de género. Daí que sob o ponto de vista social, não faça qualquer sentido existirem dois toques distintos, conforme o finado é homem ou mulher. Trata-se de uma questão que a Igreja deve rever, já que ela própria nos leva a crer que aos olhos de Deus todos são iguais. Quanto ao comum dos mortais não interessa saber se morreu homem ou mulher, mas apenas quem foi que partiu e isso os sinos não dizem. 

Publicado inicialmente em 27 de Janeiro de 2016

domingo, 9 de março de 2025

Machismo? Não, obrigado.


A orgia (c. 1775). William Hogarth (1697-1764). Óleo sobre tela (62,5 x 75 cm).
Sir John Soane's Museum, Londres.

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), utilizou abundantemente provérbios nas suas obras literárias. Para ele, tratava-se de “sentenças verdadeiras que a experiência, suma mestra das artes, pronunciou pelas bocas do povo”. Se isso é verdade em relação a alguns provérbios, não o é em relação a outros, como é o caso dos que se referem à mulher. Esta, desde a Antiguidade Clássica que via o seu papel reduzido face ao do homem, com a esfera de actuação circunscrita ao campo doméstico e familiar, não gozando de direitos sociais e políticos como o homem, que chamava a si as responsabilidades inerentes ao trabalho e à chefia. Tal não acontece hoje, pelo que há provérbios que revelam uma atitude machista, de que o homem é superior à mulher, a quem protege e de quem é chefe de família.
O vasto universo desses provérbios é sistematizável pelo menos em quatro grandes grupos: - A mulher é considerada inferior e dependente do homem: A sombra de um homem vale mais que cem mulheres. Uma mulher sem um homem é como uma guitarra sem cordas. - A mulher é equiparada aos animais: Mulher e mula, o pau as cura. Mulheres, burros e nozes, carecem de mãos fortes. - A mulher deve estar confinada ao lar: A sertã e a mulher, na cozinha é que se quer. Galinhas e mulher, não se deixam passear. - A mulher não se deve divertir: Mulher que não perde festa, pouco presta. Quem perde muitas horas à janela, esquece-se, concerteza, da panela. - Mulheres juntas são encaradas com desconfiança: Duas mulheres fazem um mercado, quatro uma feira. Uma mulher faz tudo, duas fazem pouco e três não fazem nada. - São dados conselhos aos homens: Do vinho e da mulher, livre-se o homem se puder. Guarda-te de traseiro de mula e de língua de mulher.
A leitura destes adágios merece reflexão. Em primeiro lugar, em termos bíblicos: Após ter criado Adão “O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.”” (Génesis 2, 18). De acordo com a Bíblia, Deus terá então criado Eva, por conveniência de Adão: “Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar.” (Génesis 2, 21). “E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem.” (Génesis 2, 22). “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” (Génesis 2, 23). Ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, Deus “Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” (Génesis 3, 16). Tais versículos bíblicos colocam a mulher numa situação de subalternidade ante o homem, registando a desigualdade de género, através daquelas que são consideradas as palavras de Deus. Para além disso, a doutrina católica advoga actualmente a igualdade de género, mas apresenta razões teologais que inviabilizam a ordenação sacerdotal de mulheres.
Em segundo lugar, os provérbios aqui transcritos são merecedores de toda a nossa repulsa. Todavia até há bem pouco tempo integraram a voz do povo masculino. A isso não terão sido estranhos os interesses mais retrógrados da sociedade, alicerçada no obscurantismo da idade média, no absolutismo real, no feudalismo, na inquisição e no fascismo. Foram tempos deploráveis, cujo regresso não queremos. Daí o título da presente crónica. 

Publicado inicialmente em 6 de Outubro de 2015

terça-feira, 4 de março de 2025

Os xexés


Xexé (1921). Ilustração de Leal da Câmara (1876-1948). Capa da revista “ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA”, nº 781 de 5 de Fevereiro de 1921

Uma figura característica do Carnaval doutros tempos, pelo menos até ao primeiro quartel do século XX, era o “xexé”, caricatura do Portugal miguelista, caído em desgraça. O personagem foi retratado entre outros por José Malhoa (1895), Rafael Bordalo Pinheiro (1903), Augusto Bobone (antes de 1910) e Leal da Câmara (1921). O xéxé trajava uma casaca de seda colorida, calção e meia branca, sapatos de fivela, cabeleira de estopa, punhos de renda e um enorme chapéu bicorne, à moda de finais do séc. XVIII - séc XIX. Usava muitas vezes lunetas, andava armado com um grande facalhão de madeira e um cacete adornado com um chavelho. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é um substantivo masculino que designa “Personagem carnavalesco típico, caracterizado como um velho ridículo e senil”. Para este dicionário, o termo terá sido utilizado pela primeira vez no “Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa”, de Caldas Aulete. Como refere a “Gíria Portugueza” [1], “Chéché” é um termo popular que designa “Mascarado repelente e ridículo, em Lisboa, que importuna os transeuntes pedindo “dez reisinhos p’r’o velho””. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é também um substantivo e adjectivo com os dois géneros, aplicável a “quem está desprovido de lucidez em decorrência de idade avançada”, sendo sinónimo de ”senil”, “caduco” e “gagá”. É ainda aplicável “àqueles que possuem comportamento ridículo ou estúpido”. Julgo que é neste último sentido, que o termo seja aplicável aos responsáveis políticos ao mais alto grau que:
- Se queixam-se que as suas reformas chorudas não chegam para as despesas pessoais;
- Chamam “piegas” àqueles que civicamente protestam pela dureza das condições de vida que lhes estão a ser impostas;
- Mandam os licenciados, mestres e doutores emigrarem, por cá não arranjarem emprego; 
- Mandam os militares sair das fileiras, quando estes protestam civicamente;
- Reformados da política, nos sugam dinheiro diariamente com as suas benesses vitalícias.
Perante um panorama sombrio deste quilate, apenas uma atitude é possível: o direito à indignação, acompanhado da legítima conclusão de que somos governados por “xéxés”. É caso para bradar bem alto:
- ACABEMOS COM ESTE CARNAVAL!

Publicado inicialmente a 15 de Dezembro de 2012

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] – HOUAISS, António et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.

Xexé (1895). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (27,4 x 47,4 cm).
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa.

Xexé (1898), desfilando na Praça D. Pedro IV, em Lisboa. Fotógrafo não identificado.
Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da Câmara
Municipal de Lisboa.

Xexé (1903). Ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). Capa da revista “A PARÓDIA”,
nº5 de 18 de Fevereiro de 1903.

Xexé (anterior a 1910), desfilando na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Augusto Bobone
(1852-1910). Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da
Câmara Municipal de Lisboa.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Massa crítica


O GRUPO DO LEÃO (1885). Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Óleo sobre tela (200 x 380 cm). Museu do Chiado, Lisboa.

O conceito de “massa crítica”, originário da física nuclear, é extensível a múltiplos domínios como sociologia, política, dinâmica de grupos, publicidade, marketing, etc. Em qualquer destas áreas, “massa crítica” é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que um determinado fenómeno possa ocorrer e adquirir uma dinâmica própria que lhe permita autosustentar-se e crescer.
Uma questão que se põe imediatamente é a de saber se a comunidade estremocense tem ou não, massa crítica que lhe permita induzir dinâmicas sociais, indispensáveis ao desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Uma análise do problema poderá levar à conclusão de que Estremoz não tem massa crítica. Contudo, a situação não é irreversível como passo a demonstrar.
Estremoz tem entre os seus filhos, naturais ou adoptivos, bastantes individualidades com currículo respeitável, com percursos de vida notáveis, com provas dadas e obra feita que merece o reconhecimento da comunidade. Todavia, atomizados na sua individualidade não constituem massa crítica. Estão dispersos por variadas coutadas doutrinárias, ideológicas e partidárias, muitas vezes estanques, avessas a pensar para além do dogma que as sustenta, o que inevitavelmente as acabará por aniquilar. Estão ainda disseminados por capelas e tertúlias, que reproduzem alguns dos vícios anteriores. Estão igualmente espalhados por grupos de acção escolar ou confinados a torres de marfim ou celas individuais de pensamento pró-monástico.
Naquelas circunstâncias nunca constituirão massa crítica, já que como nos ensina o gestaltismo, o todo é mais que um mero somatório das suas partes, pois tem características próprias. Estas só poderão ser alcançadas se todos e cada um tiverem a humildade de reconhecer que atomizados não conseguem chegar a parte nenhuma, limitando-se a cumprir um caminho de penitência. Todavia é impensável e ilegítimo que cada um dos múltiplos grupos cogite em arregimentar os restantes, visando o seu auto-reforço. O que é possível e legítimo é cada um desses grupos ou individualidades proceder a uma profunda reflexão que lhe permita separar em termos de objectivos e de linhas de acção, o que é essencial do que é acessório. Feito isto, é então possível procurar equacionar quais os caminhos que podem ser percorridos conjuntamente. Então, Estremoz terá massa crítica, indutora de dinâmicas sociais conducentes ao desenvolvimento nas suas distintas vertentes. Então poderá ocorrer uma mudança de paradigma, que como Fénix renascida das cinzas, nos devolva o orgulho de sermos estremocenses.

Publicado inicialmente em 18 de Dezembro de 2014

sábado, 22 de fevereiro de 2025

As duas culturas


 Imagem recolhida no blogue "Esqueci a Ana"

                                                                        À Catarina, minha filha:

Nos meus tempos de rapaz, já depois dos 18 anos, um Homem com H grande e que se chamava Charles Percy Snow (1905-1980), viu publicada em Portugal em 1965 e graças à acção clarividente de Snu Abecassis (1940-1980), a bem amada de Francisco Sá Carneiro (1934-1980), o livro "As Duas Culturas".
Embora não folheie e releia aquela obra há muito tempo, com ela ocorreu uma mudança de paradigma. Percebi que o problema da cisão da Cultura em dois campos aparentemente opostos (A Ciência e as Humanidades) é um falso problema que alguns procuram acicatar. A posição do Homem no Universo é unívoca e singular. Ele é o objecto e o actor principal de ambas. A ele cabe fazer uma síntese dialéctica e pô-las ao seu serviço.
Na nossa pátria lusitana, como percursor dessa ideia peregrina, que constitui afinal um ovo de Colombo, temos o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), quando pela voz de Álvaro de Campos (1) proclama que:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Também o matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948) na sua conferência “A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo“ (edições Mocidade Livre – 1933), conclui que “a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo”. Para ele também só há uma Cultura. Daí falar em “Cultura Integral do Indivíduo”
Igualmente o professor Rómulo de Carvalho (1906-1997), poeticamente conhecido por António Gedeão, soube integrar na sua magistral poesia e duma forma natural, aquilo que faz parte do arsenal científico da nossa formação. De igual modo eu, físico de formação, andei por caminhos poéticos convergentes, apesar de distintos. Aí pelos 20 anos fui desintegracionista, sob a influência do poema “A Astronave” de Armando Ventura Ferreira (Arcádia-1963) e manuscrevia poemas com tinta cor de barro – a cor do meu Alentejo e dos campos de Estremoz, os quais oferecia nas ruas de Lisboa aos transeuntes que os queriam aceitar. Integrava então um grupo heterogéneo, o qual se dispersou no tempo e que foi emergindo posteriormente, alguns com certa notoriedade. É dessa época de não-rima e com pontuação à Saramago, o excerto:

endotermizaste em mim uma amizade no tempo
cristaliza agora analiticamente um amor no espaço
e nunca mais nos bombardearemos com palavras virgens
ávidonautas, sexonautas, astronautas seremos
astronautas partiremos na minha nave
para anunciarmos aos povos do infinito-dimensional
que como experimentados sexólogos terrestres
descobrimos por fim o metafísico deus dos rabis

Publicado inicialmente a a 1 de Outubro de 2013

 (1) - s.d. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 110.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Resposta a quem elogiou a minha escrita

 

Hernâni Matos (2023). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.

Mesteiral das palavras, lá isso sou. Mão de obra gratuita à disposição da comunidade, eventualmente usada para zurzir os que se portam mal e me fazem chegar a mostarda ao nariz. Todavia, prefiro filigranar palavras que traduzem sentimentos e emoções que têm a ver com a matriz identitária alentejana. E o que eu gosto de transmitir uma visão polifacetada das coisas... Creio firmemente que a realidade possa ser no limite o resultado da sobreposição dum número considerável de visões de diferentes actores no palco da vida. Como tal, a minha visão global sobre qualquer coisa é fruto do modo como eu vejo essa qualquer coisa sobre múltiplos pontos de vista. O Homem não é uma alimária que tenha que estar sujeita a ver numa única direcção. Isso é o que querem os manipuladores de consciências. Mas com eles, há muito que perdi a paciência ou melhor, as paciências.

- PIM! O TEXTO CHEGOU AO FIM!
- PAM! A PALAVRA NÃO É CORTESÃ!
- PUM! (É que não há nenhum).

Hernâni Matos

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Eu e António Aleixo

 

António Aleixo (1899-1949)

No final dos anos 60 do séc. XX, enquanto membro do Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, participei em ocupações da cantina da Faculdade, como forma de protesto por não haver uma Associação de Estudantes democraticamente eleita e como processo de luta contra o regime fascista.
Eram ocupações feitas à noite e em que não deixávamos fechar a cantina às 21 horas. É claro que os informadores da PIDE na Faculdade, cumpriam a sua missão e passado pouco tempo, tínhamos a visita da famigerada Polícia de Choque, a qual cercava a Faculdade. O desfecho dessas ocupações foi variável, o que incluiu muitas vezes bordoada e prisões.
Durante as ocupações, havia intervenções políticas e actuação de cantores que se solidarizavam connosco, com especial destaque para o Zeca Afonso e o para o padre Fanhais. Também me lembro da participação do actor Rogério Paulo.
Numa dessas ocupações lembro-me de ter subido para cima de uma mesa e ter declamado, com agrado geral, quadras de António Aleixo, que era praticamente desconhecido em Lisboa. Era sobretudo conhecido no Algarve e em Coimbra, onde fora divulgado pelo pintor Tossan, que era natural de Vila Real de Santo António e membro do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). De Coimbra até Estremoz, a poesia de António Aleixo viajaria com a alma e a convicção do João Carlos Gargaté, natural de Estremoz, estudante de Direito, membro do TEUC e meu grande amigo. Foi ele que me transmitiu o culto da poesia de António Aleixo, uma poesia muitas vezes amarga, mas poesia do real e arma de combate contra a injustiça. Foi essa poesia que me levou a subir para cima da mesa e a fazer minhas as palavras de António Aleixo. Terá sido a primeira divulgação pública do trabalho do poeta, na cidade de Lisboa, por via do meu vozeirão, então no seu esplendor.

Publicado inicialmente em 17 de Novembro de 2021 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Erros de sacristia


Fig. 1 – Capitulares do meu nome. 



No dia 19 de Agosto de 1946 veio a este mundo uma criança do sexo masculino, o qual sou eu e a quem no dia do baptismo, a madrinha deu o nome de “Hernâni António Carmelo de Matos”. Trata-se de um nome constituído pelo antropónimo composto “Hernâni António” e pelos sobrenomes “Carmelo” e “Matos”. Iremos ver que foi um nome que veio a alimentar uma estória quase tão comprida como a légua da Póvoa.
O antropónimo
Começando pelo antropónimo “Hernâni António”, importa conhecer o porquê e as consequências de ter recebido cada um destes nomes. Em primeiro lugar “Hernâni”. A minha madrinha e tia, pessoa simples do povo e desprovida de conhecimentos literários, desconhecia completamente a existência do drama “Hernâni” da autoria do escritor francês Vítor Hugo. Todavia, era do conhecimento público a existência de um alentejano ilustre, natural do Redondo, de seu nome Hernâni António Cidade (Fig. 2), distinto homem de letras e amiúde falado nos jornais. A minha madrinha terá achado o nome bonito e para mais o nome de um alentejano e tudo. E eu lá fiquei “Hernâni António”. Foi um nome que teve consequências ao longo da minha vida. Primeiramente na vida escolar, pelo facto de me chamar “Hernâni”, palavra começada por “H”, a oitava letra do alfabeto português, então com 23 letras, fazia com que eu não fosse dos primeiros a ser chamado a provas orais. Primeiro iam os Abeis, os Balbinos, os Carlos, os Danieis, os Edgares, os Faustinos e os Gaspares. Só depois ia eu, o que me deixava mais algum tempo para estudar para as orais, afim de poder “tapar buracos” que tivessem ficado abertos durante o ano escolar. Lá diz o provérbio optimista: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Todavia, as consequências de me chamar “Hernâni” não ficaram por aqui.
Com o desenvolvimento da minha personalidade, adquiri hábitos de leitura e como coleccionador tornei-me bibliófilo. Naturalmente que a minha biblioteca começou então a incorporar entre outras, obras do Dr. Hernâni António Cidade, algumas com dedicatória autógrafa a terceiros. O facto de me chamar “António”, levou-me também a coleccionar iconografia antoniana, nomeadamente a nível de barrística popular estremocense (Fig. 3). A nível bibliófilo, além dos seus Sermões e de biografias que sobre ele têm sido escritas, interesso-me por obras que abordam Santo António na Literatura de Tradição Oral, os aspectos etnográficos das festividades populares do Dia de Santo António, bem como a iconografia antoniana, sobretudo nas suas vertentes pictórica e azulejar.

Fig. 2 – Hernâni António Cidade (1887-1975), professor universitário, ensaísta,
historiador e crítico literário, natural do Redondo.

Significado de Hernâni
O antropónimo “Hernâni” encontra a sua origem em “Hernan”, variante de “Hernando”, versão espanhola de “Fernando”.
Este último nome é uma contracção de “Ferdinando” do latim “Ferdinandus”, que por sua vez proveio do gótico “Ferdinand”, palavra composta de “fardi” (viagem) e “nand” (pronto). O antropónimo “Hernâni”, poderá então significar “pronto/preparado para a viagem".
Por outro lado, “Fernando” pode derivar do alemão “Firthunands”, palavra composta de “firthu” (paz)  e “nands” (audaz). O antropónimo “Hernâni” poderá assim designar "Aquele que se atreve a tudo para conservar a Paz".
O antropónimo Hernâni popularizou-se por ser o pseudónimo do herói e título homónimo da obra teatral do escritor francês Victor Hugo, representada pela primeira vez em 1830 e a partir do qual o compositor italiano Giuseppe Verdi, compôs em 1844 uma ópera em 4 actos.
Significado de António
O antropónimo “António” provém do latim “Antonius”, que significa “digno de apreço” ou “de valor inestimável”. É um dos nomes mais populares da antroponímia portuguesa, devido, sobretudo, a Santo António de Lisboa.
O sobrenome Carmelo
O meu primeiro sobrenome e muito bem, é “Carmelo”, nome de família do meu avô materno, Manuel Carmelo (ferroviário), mais conhecido por “Manuel Alturas”. É um sobrenome que encerra em si várias estórias. A primeira é a sorte de que sendo neto do Manuel Alturas e muito mais alto que ele, nunca ninguém se ter lembrado de me chamar “Monte Carmelo”. A segunda é o facto de eu ter uma caligrafia que mais parece um desenho abstracto. Não porque eu tenha estrabismo, não senhor. Quem tem de me ler é que pode ficar estrábico. Era uma alegria ler as pautas de exame afixadas na Faculdade de Ciências que frequentei, nas quais figurava o meu nome. Raramente aparecia a palavra ”Carmelo”. Esta era substituída por sobrenomes como “Carrelo”, “Carpelo”, “Corvelo”, “Carvalho”, “Camelo”, “Capeto”, “Corneto” e “Carapeto”, constituindo uma cornucópia de sobrenomes espúrios. É claro que nunca me queixei. A culpa era minha e só minha. Desabituado de escrever nos cadernos de duas linhas usados na Instrução Primária, comecei a escrever à rédea solta logo no Liceu. Este facto veio a agravar-se na Universidade, onde a necessidade de rapidamente tirar apontamentos nas aulas para ter por onde estudar, distorceu ainda mais a minha caligrafia. Para além disso, a palavra “Carmelo” aparecia, por diversas vezes, substituída pela palavra “Caramelo” e daí o mal o menos, já que ambas as palavras são variantes do mesmo sobrenome. Todavia, o sobrenome “Carmelo” sugere algo de natureza monástica ao passo que “Caramelo” é um sobrenome polivalente. Tanto designa um rebuçado confeccionado a partir de açúcar queimado, como a água congelada (gelo), alguém de nome desconhecido (sinónimo de tipo ou gajo) ou trabalhador rural do distrito de Coimbra que noutros tempos vinha trabalhar para o Alentejo.
O sobrenome “Carmelo” aparece na genealogia alentejana e para além da família “Carmelo de Matos, existem outras como “Carmelo Grazina”, “Carmelo Morais”, “Carmelo Aires” e “Carmelo Alcaide”.
O sobrenome Matos
Chegámos aqui a um ponto crucial desta crónica e é aqui que “a porca torce o rabo”. Vejamos porquê.
A 1 de Julho de 1923 nasce na aldeia da Cunheira da freguesia e concelho de Chança, uma criança do sexo masculino (o meu futuro pai), que seria o primeiro de 4 filhos de Manuel Sabino (pedreiro) e Antónia Matos (doméstica). À criança foi dado o nome que consta no registo baptismal “João Sabino de Matos”. Trata-se de um facto estranho já que de acordo com a tradição em vigor, consignada na lei, o último sobrenome a atribuir a um recém-nascido deve ser o do pai. De acordo com tal disposição, os meus tios (duas tias e um tio) saíram “Matos Sabino”. Todavia, o meu pai saiu “Sabino de Matos” e não “Matos Sabino”, como se o pai tivesse deixado de ser pai para passar a ser mãe e esta tivesse deixado de ser mãe, para passar a ser pai. Se o caso não se tivesse passado na Igreja, eu diria que tinha sido obra do “Diabo”. Mas não, foi troca dos sobrenomes pelo padre de serviço, quem sabe se às voltas com uma digestão difícil.
O sono de Deus
Reza o adagiário português que “Deus não dorme”. Com o devido e democrático respeito pelas crenças do próximo, não penso que assim seja. Se Deus não dormisse ou pelos menos não estivesse distraído, o padre da Cunheira não teria invertido a ordem dos sobrenomes de família. Creio piamente que o Senhor teria dado no padre um celestial abanão, que o levasse a emendar o erro crasso em que incorreu. Fruto dele, sou “Carmelo de Matos” e não “Carmelo Sabino”. Felizmente que o sobrenome “Matos”, que até está antecedido de um “de”, não se escreve com dois “tt” ou seja “Mattos”. Se assim fosse, algum maldizente daqueles que por aí abundam, poder-se-ia lembrar de me acusar de ser pretensioso, por onomasticamente me travestir em “sangue azul”, que de facto não sou. De salientar, que embora por efeitos práticos, mantenha o nome com um sobrenome errado, para efeitos genealógicos deverei ser encarado como um “Carmelo Sabino” e não como um “Carmelo de Matos”. 
Erro de sacristia
Todas as estórias têm um fim e esta chegou ao fim. Todavia, todas as estórias têm também uma moral. Neste caso, creio ser legítimo concluir que o erro cometido pelo padre foi um “erro de palmatória”, daqueles que levavam os professores do antigamente a dar pelo menos uma palmatoada da praxe em cada mão do aluno com a “Dona Rosa” de uso pessoal. Para além disso, foi um “erro de sacristia” que eu não perdoo e que só o Senhor na sua infinita benevolência poderá perdoar.

Estremoz, 19 de Setembro de 2019
(Jornal E nº 231, de 7-10-2019)
Publicado inicialmente em 20 de Outubro de 2010


Fig. 3 – Santo António. Imagem devocional em barro de Estremoz, da autoria do
barrista e oleiro Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O que gostaria de ver em Estremoz em 2025?

 


“Estremoz é uma cidade que me dói,
por tudo aquilo que lhe falta”

Cai o pano para 2024 e entra 2025. Lançámos um desafio aos nossos colaboradores pedindo-lhes que nos fizessem chegar os seus votos para o novo ano, respondendo a uma pergunta: “O que gostaria de ver (ou ter) em Estremoz para o ano de 2025?” Hernâni Matos respondeu ao repto.

Jornal E

 

Estremoz é uma cidade que me dói, por tudo aquilo que lhe falta. O que é não só consequência da falta de visão estratégica de algumas edilidades, como pela definição de prioridades questionáveis ao longo dos tempos.

Estremoz carece de uma resposta urgente a problemas prementes que na minha óptica são de priorizar sequencialmente assim: rede de abastecimento de água, rede de esgotos, requalificação urbana, construção habitacional, rede de ecopontos, mobilidade e acessibilidade urbanas.

2025 é ano de eleições autárquicas a ocorrer em Setembro. Neste momento, os cabeças de lista das várias formações em confronto já terão obtido o beneplácito dos estados maiores partidários ou o acordo pró-forma dos seus apaniguados. Já terão, decerto, constituído as suas equipas ou estarão em vias de as concretizar.

Será que o Executivo Municipal gerado pelas eleições setembrinas, elaborou uma lista de faltas semelhante à minha? Não sei, mas provavelmente não. Apenas sei que qualquer dia começam a meter-nos papelinhos debaixo das portas, a contactar-nos pessoalmente com o seu melhor sorriso e a azucrinar-nos com os seus hinos, enquanto apregoam bacalhau a pataco. E as artimanhas são muitas. Lá diz o rifão: “Com papas e bolos se enganam os tolos”. Convém aguentar as investidas a pé firme e mesmo de pé atrás. Pela minha parte não se admirem, se eu não estiver nos meus dias e lhes atirar à cara com esta do Aleixo: “Vós que lá do vosso império / prometeis um mundo novo, / calai-vos, que pode o povo / q'rer um mundo novo a sério!”


Publicado inicialmente em 1 de Janeiro de 2025
Publicado no jornal E, nº 347, de 2 Janeiro de 2025