Mostrar mensagens com a etiqueta Crítica Social. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Crítica Social. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Entrevista sobre o 25 de Abril, concedida ao jornal E, de Estremoz

 


Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”

No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.

Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?

A NÍVEL DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; -  A constatação de que havia crianças que iam descalças para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; - A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade diária de gorilas, que eram ex-militares das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir, impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar o caso de haver bufos (informadores) na vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de 14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no Estado Novo, regime de partido único: a UN - União Nacional.

Esteve na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?

Ingressei na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de 1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis. Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda, participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações, greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto, mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974 pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.

Nas eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas pela UN - União Nacional, liderada por Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da Oposição.

Sentiu, na altura que a ditadura tinha os dias contados?

Apesar da repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento Militar das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam.  Bem hajam por isso!

Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?

Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias.  A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.

Olhando para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a democracia que tivemos em Portugal?

A avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa transição: as Forças Armadas Portuguesas.

O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do MFA - Movimento das Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército, instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do denominado Movimento dos Capitães, o qual aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3 frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela previsibilidade de uma derrota militar iminente.

No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na prisão.” E mais adiante: “Foi então que Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.

A chamada Revolução dos cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo fora.

Que impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?

Em 1º lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em 2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades, teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o exercício da cidadania.

Um pouco por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve. Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser consignadas na Constituição da República Portuguesa.

O 25 de Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).

Como foi para si o período que se seguiu à Revolução?

O período pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo Revolucionário em Curso foi marcado por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de 6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de 1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2 do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil, legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA

Teve, nessa altura, alguma militância ou intervenção política?

Logo a seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos professores na Escola Secundária de Estremoz.

A nível político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me identificava com a CDE - Comissão Democrática Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o 25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz, participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral e se registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974, se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves. Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU – Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos, até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre foi e continua a ser a minha grande motivação.

E que avaliação faz da democracia que temos na actualidade?

A democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na prática não é bem assim.

Qual o estado da democracia em Portugal?

A democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego, trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade, salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação, especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice, Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a esmagadora maioria das pessoas.

50 anos depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos. 

Hernâni Matos

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O frio na gíria popular

 

Costumes alentejanos (1923). Jaime Martins Barata (1899-1970).
Aguarela sobre papel. Museu Grão Vasco, Viseu.

 

Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar
Rui Veloso in "Não há estrelas no céu"


Em Janeiro, o frio “é fruta da época”, pelo que não é de estranhar ouvirem-se frases que em gíria popular traduzem o rigor da frialdade:- “Está cá um barbeiro”; - “Está cá um briol”; - “Está cá um griso”, - “Está frio como o diabo”, - “Está um frio de rachar”, - “Estou frio como um cão”. De resto, o frio que impera, faz-nos:  - “Bater o dente”; - “Tiritar de frio”; - “Tremer de frio”.

A abundância de expressões idiomáticas atinentes ao vocábulo “frio“, é reveladora da riqueza da nossa língua, sem a qual não há cultura portuguesa e identidade cultural nacional, uma vez que a construção desta se alicerça naquelas.

Há, pois, que lutar contra a agressiva operação de colonização linguística, veiculada maioritariamente pelos meios de comunicação social, os quais nos bombardeiam com estrangeirismos e muito em especial com anglicismos em nome da globalização, apregoada por alguns como uma fatalidade irreversível.

Publicado inicialmente em 10 de Janeiro de 2024

sábado, 27 de maio de 2023

"O Alentejo e a Cultura: que futuro?" - Manifesto contra o desmantelamento da DRCA

 

Direcção Regional de Cultura do Alentejo, Évora. Fotografia de Pedro Roque (2020),
recolhida através do Google e aqui reproduzida com a devida vénia.

Ao anúncio da extinção da Direção Regional de Cultura do Alentejo e da sua integração na Comissão de Desenvolvimento Regional do Alentejo, um grupo de homens e mulheres, com raízes no Alentejo, respondeu com um protesto contra o que consideram um “clamoroso erro”. O resultado é o manifesto que aqui se publica, subscrito por muitas dezenas de cidadãos, entre as quais figuras conhecidas, como os historiadores António Borges Coelho e António Ventura, os músicos Vitorino, Janita Salomé e Francisco Fanhais, autarcas, escritores, atores e de inúmeras outras profissões.

"O Alentejo e a Cultura: que futuro?'

Sendo do conhecimento público que está prevista a integração da(s) Direcção Regional de Cultura na(s) Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, os subscritores, defensores da sua importância como organismo autónomo, decidem manifestar-se através do presente documento.
Para um país cronicamente preocupado com os elevados índices de pobreza e dos parâmetros de bem-estar e desenvolvimento económico, aquém da média europeia, tudo o que à Cultura respeita é relegado para plano secundário, sem que, da parte dos decisores políticos, exista sensibilidade e percepção do erro em que persistem. Não obstante, e apesar dessa indiferença, ela “move-se” e, mesmo no interior do país, em acelerado ritmo de envelhecimento e de desertificação, são as práticas culturais, tais como a gastronomia, o artesanato, as tradições religiosas e profanas e inúmeras formas de actividades laborais e de transformação tradicionais, da carne, do leite e do vinho, mas, também, do empenho artístico do povo, no que respeita ao teatro, à música, à dança, ao folclore, que, associadas a monumentos de vária ordem e a sítios arqueológicos inseridos em importantes e ricas paisagens, movimentam e, em não poucas situações, sustêm, economicamente, lugares e terras e prendem, ainda, os seus habitantes a lugares cujo sustento de outrora desapareceu, na voragem de outros paradigmas económicos e sociais.
Com cerca de um terço do território nacional, o Alentejo foi palco de passagem e habitat de inúmeros povos, os quais deixaram vestígios abundantes da sua actividade, da sua organização social e das suas práticas “divinas”. O Alentejo e as suas gentes são, hoje, um caldo de Cultura que deriva do convívio e apropriação de técnicas de muitas origens e que resulta numa riqueza ímpar, que há que preservar, estudar e desenvolver.
Com uma economia assente na produção agrícola, ao longo de séculos, e numa divisão do território profundamente desigual e injusta, da qual resultou a concentração da riqueza num reduzido número de famílias e uma pobreza extrema da esmagadora maioria dos Alentejanos, restou a esperança e a luta por melhores condições de vida, mas que, por fim, na década de 50/60 do século XX, gerou o êxodo para o litoral do país e para o estrangeiro.
O Alqueva, que se propunha democratizar a exploração e a posse da terra, foi uma desilusão que o presente e o futuro se encarregam de demonstrar, com a introdução de culturas nocivas para a natureza, o ambiente, o património e a paisagem, parecendo haver ainda uma maior concentração da posse da terra, agravada pela sua venda a pessoas e grupos estrangeiros, numa dimensão nefasta, de cujos proventos nada sobra, nem para o Alentejo, nem para o país.
A aposta parece ser, pois, antes que aconteça o impensável – alienar o património ao capital estrangeiro, tal como à terra se fez –, a de que se defenda esse património único.
Património que, nas suas diferenciadas formas de apresentação e manifestação, é um denominador comum para os Alentejanos, enquanto identidade colectiva e regional.
Defender este legado é manifestar solidariedade institucional e reconhecimento, a todos aqueles que fizeram, e fazem, do seu quotidiano uma luta, sem tréguas, contra a desertificação da memória e do território e que, incompreensivelmente, são esquecidos por quem decide e traça, a régua e esquadro, políticas estranhas à realidade dos seus dias e do seu futuro.
A estratégia de defesa, manutenção e desenvolvimento cultural exige, dos poderes públicos, uma atenção redobrada, com o envolvimento de técnicos e especialistas, empenhados cientificamente na abordagem necessária e nas diferentes fases da sua indispensável intervenção, do mesmo modo que, na sua abordagem técnica, se exige, no campo da deliberação e da gestão, equipas com profundo conhecimento científico e estratégico, para a necessária decisão de prioridades. Acresce a imprescindível apetência para o diálogo, com particulares, autarquias, clero, técnicos e outros intervenientes. No fundo, uma proximidade com grande parte dos decisores, assim como com associações, agentes culturais e público.
Tem mantido estas funções a Direção Regional de Cultura do Alentejo, na qual temos sentido um comportamento sério, altamente responsável e de grande empenho e que, apesar da crónica falta de verbas, tem sabido e procurado manter a causa da Cultura, no Alentejo, um organismo vivo e ao serviço da comunidade e do seu desenvolvimento, assim como da sua história e da defesa de valores considerados da sua identidade e memória.
É, pois, um sinal de alerta e de grande preocupação para os signatários o desmantelamento previsto da Direção Regional de Cultura do Alentejo e a sua integração na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo. Não parece avisado politicamente que um organismo desta natureza, que tem cumprido, com rigor e competência, ao longo de décadas, a gestão do património e a promoção das mais diversas iniciativas culturais, dê lugar a uma amálgama de organismos não explicados, até ao momento, mas cuja legislação já está em marcha, nomeadamente, pela Lei n.º 58/2018, de 21 de Agosto, e pela Lei n.º 27/2022, de 17 de Junho.
Tal como os seres humanos, poderíamos dizer que o território, para além do seu aspecto físico, também tem espírito e é necessário zelar pela sua manutenção. Será que, a par da alienação da terra, com monoculturas estranhas à região, exaurindo até ao limite recursos hídricos, vamos assistir, impávidos e serenos, a um retrocesso cultural, devido a políticas mal calculadas ou intencionalmente canhestras, para atingir desígnios ainda não esclarecidos?
É tempo de exigirmos respostas às tutelas políticas sobre o que se pretende, e de exigir a salvaguarda de quanto se fez até aqui, com o esforço e a criatividade de muitas gerações, do nosso tempo e dos que nos precederam. Em sua memória, é imperioso o protesto e a exigência do respeito que a Cultura nos deve merecer.

sábado, 22 de abril de 2023

quinta-feira, 20 de abril de 2023

A incomensurável beleza e diversidade da geometria natural

 

A Natureza na sua gigante insignificância. Fotografia de Manuela Mendes.


A NATUREZA NA SUA GIGANTE INSIGNIFICÂNCIA, foi a legenda associada por Manuela Mendes, à magnífica fotografia que publicou no seu Facebook, a qual aqui reproduzo.
A imagem, de uma beleza extraordinária, revela a coabitação num tronco de eucalipto, de dois frutos (cápsulas) deiscentes, que se abrem, um por 4 e outro por 5 válvulas apicais, por onde podem sair muitas sementes.
Sem rejeitar aquela legenda, alvitrei, todavia, como legenda alternativa a seguinte: A INCOMENSURÁVEL BELEZA E DIVERSIDADE DA GEOMETRIA NATURAL.
Repare-se que as válvulas num caso assumem a forma de uma cruz, simbolicamente associada a Jesus, encarado como condutor de multidões e salvador do mundo.
No outro caso, as válvulas assumem a forma de uma estrela de 5 pontas, curiosamente o símbolo do internacionalismo proletário, dos trabalhadores que lutam pela emancipação social.
A natureza parece oferecer dois caminhos distintos, que provavelmente sob um ponto de vista epistemológico não serão opostos, já que cada um à sua maneira, aposta na valorização humana.

 Hernâni Matos 

sábado, 18 de março de 2023

Muros de pedra seca

 

Algures na freguesia de Beirã, concelho de Marvão. Fotografia de Manuela Mendes.

À Manuel Mendes, a quem agradeço
a gentileza de me ter autorizado a utilizar
esta excelente imagem por si captada,
algures no norte alentejano
e que esteve na origem do presente texto.

Que vejo eu?

Uma estrada que já conheceu melhores dias. Que vai dar não sei para onde. Talvez para o cú de Judas!

Árvores que se tocam e se beijam nas copas.

Valetas que já o foram, atapetadas por ervas que ali, ciclicamente se agigantam e depois perecem com o ciclo inescapável das estações.

Nuvens que não chegam para toldar um céu que se quer azul e se associa simbolicamente à serenidade, à harmonia e à espiritualidade. Céu onde nos ensinaram estar Deus, Todos-os-Santos e os Anjos.

Muros de pedra seca, votados ao abandono e que ladeiam a estrada como se fossem condenados. Muros que se tivessem mãos, as ergueriam para o céu e pensando nos edis, clamariam:

- PERDOAI-LHES PAI, QUE ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM!

quarta-feira, 15 de março de 2023

Casa do Largo do Outeiro n.ºs 24 e 25, em Estremoz, classificada como de interesse municipal


Fachada da casa com os números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz, 
patenteando esgrafito na fachada.

Extrapolação do esgrafito. Interpretação do professor Hernâni Matos
e grafismo do  designer Miguel Belfo.

Fotografia e design gráfico
de Miguel Belfo

Na reunião ordinária da Câmara Municipal de Estremoz do passado dia 8 de Março de 2023 foi aprovada por unanimidade uma proposta de “Classificação como imóvel de interesse municipal do imóvel sito no Largo do Outeiro nºs 24 e 25, em Estremoz – Fachada com Esgrafito”, elaborada por Rita Laranjo, arqueóloga do Município. A proposta foi elaborada na sequência da descoberta dos esgrafitos por pintores a trabalhar no edifício, que a comunicaram ao co-proprietário senhor Nuno Ramalho, que além de mandar interromper a pintura, me contactou, visando a interpretação dos esgrafitos. A interpretação foi por mim feita e divulgada no jornal E, sob a forma de dois textos:
No trabalho de interpretação e divulgação dos esgrafitos, foi importante o trabalho do designer gráfico Miguel Belfo, o qual tirou no local, fotografias de elevada qualidade e resolução e que posteriormente, seguindo indicações minhas, extrapolou a parte residual do esgrafito, de modo a reconstitui-lo naquele que, porventura, terá sido o seu aspecto primitivo.
Porque creio ter sido importante para a classificação agora aprovada, o trabalho por nós realizado e o acolhimento dado ao mesmo pelo jornal E, reproduzo aqui, na íntegra, o segundo daqueles textos.


Da pintura à arqueologia
No princípio do mês de Outubro, o meu amigo Nuno Ramalho mandou pintar a fachada da casa dos seus pais, localizada nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. Os pintores começaram por limpar a parede com jacto de água. Qual não foi o espanto, quanto aquele jacto revela a existência daquilo que configurava ser uma pintura anterior à existência da janela do 1º andar esquerdo e que terá sido sacrificada para rasgar aquela janela. Significa isto que primitivamente a casa só teria a janela do 1º andar direito, a qual seria mais pequena que actualmente, uma vez que as ombreiras foram acrescentadas na parte superior, para a janela ficar com a mesma altura da janela que então foi aberta no lado esquerdo da fachada.
Qualquer das janelas ostenta sobre as ombreiras, padieiras em alvenaria, características do séc. XVIII, ornamentadas com florões em estuque.
Comparando a tipologia da fachada com a das casas limítrofes, constata-se que falta ali uma chaminé, a qual terá sido sacrificada em benefício da abertura de uma janela, tendo a chaminé sido edificada noutra zona da casa. Trata-se de uma conclusão importante na medida em que a decoração da fachada posta agora a descoberto, era uma decoração da chaminé abatida.

O esmiuçar da “pintura”
A análise minuciosa da decoração conseguida com fotografias de pormenor de elevada resolução, revelou que a técnica usada na decoração da fachada foi uma técnica mista, a qual combinou o esgrafito com a pintura do mesmo com almagre, o qual também foi utilizado na pintura de zonas delimitadas por esgrafito. A maioria das zonas pintadas perdeu a coloração conferida pelo almagre e ostenta apenas a coloração devida à cor da argamassa usada no revestimento da chaminé. Apenas dois símbolos conhecidos por “9 pontos rodeados” que se encontram na parte inferior da decoração, exibem a cor do almagre.
O facto de a decoração ter sido efectuada numa chaminé, permite concluir estar-se em presença de uma decoração apotropaica, efectuada com símbolos apotropaicos, isto é, símbolos em relação aos quais existia a crença de possuírem poder para afastar espíritos perversos ou danosos, tais como as bruxas ou o mau olhado. É que existia a crença de que embora as portas e as janelas estivessem bem fechadas, os espíritos malignos poderiam entrar pela chaminé.
O facto de a parte inferior da decoração ser simétrica em relação ao eixo central e vertical, leva a admitir que a composição da decoração seria toda ela simétrica em relação a esse mesmo eixo. A grande incógnita parece ser a parte central da decoração. Todavia são visíveis 2 sectores semicirculares a castanho avermelhado e um outro incompleto, situado num plano superior aos outros dois. Este conjunto parece procurar representar um amontado de pedras, o qual poderá corresponder a uma representação do Calvário, ou seja, da colina onde Jesus foi crucificado. A parte desaparecida da representação incluiria assim na sua parte central, uma cruz latina disposta segundo a vertical. A cruz latina é o símbolo principal do cristianismo. Para os cristãos representa não só a crucificação, como evoca a ressurreição e a esperança de vida eterna.
Incluindo a parte desaparecida da decoração apotropaica, o conjunto incluiria 4 símbolos conhecidos por “nove pontos rodeados”, um no centro duma roda e oito distribuídos à volta da mesma. Cada símbolo “9 pontos rodeados” está inscrito noutra roda, a qual reforça o poder do símbolo. A roda é um símbolo de libertação do lugar e do estado espiritual que lhe está associado.
Vejamos qual o simbolismo dos “9 pontos rodeados”. Desses 9 pontos, 1 está no centro da roda central e os outros 8 distribuem-se regularmente ao longo dessa roda. Numa perspectiva cristã, o ponto central corresponde a 1 e representa Deus, o Único, o Princípio de tudo. Os outros 8 pontos correspondem ao oitavo dia, que sucede aos 6 da criação e ao sabat (dia sagrado e de descanso no judaísmo) e é o símbolo da ressurreição, da transfiguração, anúncio da vida eterna. Sintetizando: os “9 pontos rodeados” simbolizam a criação do mundo por Deus, tal como é referida no Genesis e como tal a crença no poder de Deus sobre todas as coisas. A existência de 4 conjuntos de “9 pontos rodeados”, dispostos na decoração apotropaica em quadrangulação em simetria, resulta de o número quatro se comportar na Bíblia Sagrada como aquele que apresenta a criação de Deus e a totalidade das coisas.
A decoração apotropaica incluiria ainda, aquilo que me parecem ser dois vasos com flores, dispostos de cada um dos lados da cruz latina. Como o simbolismo da decoração apotropaica agora descoberta é de natureza cristã, sou levado a admitir que o vaso com flores possa ser um vaso com açucenas brancas. O vaso é símbolo do princípio feminino e as açucenas simbolizam a pureza, a castidade, a feminilidade e a virgindade da Virgem Maria. Resumindo: o vaso com açucenas é uma representação simbólica da Virgem Maria e um atributo presente em representações da anunciação. A existência de dois vasos com açucenas, um de cada lado da cruz latina, é justificado porque a Virgem Maria como Mãe de Jesus, tem associado a ela o princípio feminino, ao qual era na antiguidade atribuído o número dois. Por outro lado, os dois corações em cada vaso simbolizam a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, inseparáveis um do outro. A primeira destas devoções é dedicada a Jesus humano, misericordioso e sempre pronto a perdoar. A segunda destas devoções, atende ao sofrimento da Virgem Maria aos pés da cruz de Jesus e ao facto de ela guardar todas as palavras de Jesus no seu Coração.
Na decoração apotropaica objecto do presente estudo, aparecem representados simbolicamente: DEUS (“9 pontos rodeados”), JESUS (Calvário com cruz latina) e a VIRGEM MARIA (Vaso com açucenas). Significa isto que no seu conjunto, a decoração apotropaica visava invocar a protecção do Poder Divino de Deus para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. De salientar que para os cristãos, Jesus e Deus é um só, além que que é ilimitado o poder de intercessão da Virgem Maria junto de Jesus.
A decoração apotropaica está datada com um número que me parece ser 1668, número inscrito numa figura delimitada por quatro chavetas dispostas entre 4 pontos, como se formassem um losango. A figura aqui referida está ainda delimitada por dois óvulos a cheio, dispostos segundo a vertical, aos quais se juntam dois círculos a cheio, inscritos em duas circunferências dispostas segundo a horizontal. Tudo aponta para que esta seja a mais antiga decoração apotropaica do Alentejo.

Extrapolação da decoração apotropaica residual
A decoração apotropaica agora posta a descoberto é uma jóia preciosa do nosso património cultural imaterial local do séc. XVII. Na verdade, ela testemunha a existência naquela época de uma crença popular no poder protector dos símbolos apotropaicos, que no seu conjunto atestam a fé no Poder Divino de Deus.
A importância da descoberta e a interpretação da mesma por mim efectuada, exigiam que a mesma fosse divulgada junto do público em geral. Para tal, havia que criar uma imagem gráfica que desse conta de como seria a decoração apotropaica inicial, antes de ter sido mutilada. Tal foi feito com recurso a uma extrapolação da decoração apotropaica residual, tendo em conta a minha interpretação. Essa extrapolação foi executada magistralmente pelo designer gráfico Miguel Belfo, meu companheiro de estrada nesta loucura mansa de “dar à luz” o jornal E, de 15 em 15 dias. Nessa extrapolação tiveram-se em conta os seguintes procedimentos:
1 - A parte residual da representação apotropaica primitiva está representada a castanho e a parte extrapolada está representada a azul;
2 - A partir das porções existentes da moldura rectangular na qual se insere a decoração, foram extrapoladas as partes em falta;
3 - A parte superior do Calvário foi extrapolada a partir da parte inferior, tendo em conta as representações habituais do mesmo;
4 - A cruz latina foi extrapolada a partir da visualização do símbolo do Calvário;
5 - Teve-se em conta que o Calvário com cruz latina definia um eixo de simetria na composição decorativa;
6 - Os “9 pontos rodeados” do canto superior esquerdo foram extrapolados a partir dos correspondentes do canto superior direito e do canto inferior esquerdo;
7 - O contorno lateral direito do vaso do lado esquerdo foi extrapolado a partir do contorno lateral esquerdo;
8 - A decoração (coração) do lado direito do vaso do lado direito, foi extrapolada a partir da decoração do lado esquerdo do mesmo vaso;
9 - No vaso do lado direito, a parte omissa das flores no lado esquerdo do vaso foi extrapolada a partir das flores no lado direito do mesmo vaso;
10 - O vaso de flores à esquerda da cruz latina foi extrapolado a partir do vaso situado à direita da mesma cruz;
11 - A data de 1668 foi extrapolada a partir da observação da data 16?8 patente na decoração, a partir de fotografia de elevada resolução obtida por Miguel Belfo;
12 - Foram eliminadas da imagem final extrapolada, todos os pormenores existentes e visíveis na decoração primitiva residual, tais como defeitos no reboco do fundo que se soltaram, bem como porções mais brancas do fundo, devidas a intervenções posteriores que por ali ocorreram. Ali chegaram a estar cravados um suporte em ferro de fios condutores da EDP, bem como um candeeiro de iluminação pública cravado na parede. Estes, após remoção, deram origem a rebocos que acabaram por ficar pintados numa coloração branca superficial mais nítida.
13 - Onde houve mais dificuldade na extrapolação foi nas flores do vaso direito, já que para além do traçado visível, há reboco em falta distribuído desorganizadamente. Optou-se então por fazer uma extrapolação conjunta do traçado e do reboco em falta.

Agradecimentos
A interpretação e divulgação do significado profundo da decoração apotropaica da casa do Largo do Outeiro, só foi possível graças a uma sequência de boas vontades:
1º) A descoberta da decoração pelos pintores que a comunicaram ao senhor Nuno Ramalho;
2º) A decisão deste último no sentido da pintura da fachada não cobrir a decoração então descoberta, seguida da decisão de me contactar, visando interpretar tudo aquilo;
3º) A disponibilidade mostrada pelo designer gráfico Miguel Belfo que tirou no local, fotografias de elevada qualidade e resolução e que posteriormente, seguindo indicações minhas, extrapolou a parte residual da decoração apotropaica primitiva, de modo a reconstitui-la com o aspecto que ela teria primitivamente;
4º) A benevolência revelada pela directora do jornal E, Ivone Carapeto, face a texto meus, por vezes mais compridos que a légua da Póvoa.

Tem a palavra o Município de Estremoz
A decoração apotropaica agora descoberta, é seguramente a mais antiga do Alentejo, pelo que pode constituir um pólo de atracção turística, desde que devidamente divulgada. É um papel que cabe ao Turismo Municipal.
Ficamos à espera.

 Texto publicado no jornal E nº 299, de 10 de Novembro de 2022

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Um benfiquista através do seu cabelo

 

Espelho de bolso, com ilustração alegórica ao Sport Lisboa e Benfica.
Cortesia de PATINE ESTREMOZ 

No princípio da minha juventude, aí pelos anos 60 do século passado, o rock an roll andava no ar e eu usava brilhantina ou brylcreem para modelar o cabelo à Elvis. Nas calças, dentro da carteira, trazia sempre um pentinho e um espelho, para poder compor o cabelo, para o que desse e viesse. O espelho era do Benfica. Pois claro!
Aí pelo Maio de 68, com 20 anos feitos, eu sonhava com as barricadas de Paris e punha-me ao lado de tudo aquilo que elas representavam. O cabelo dava-me então pelos ombros. Não havia pente que entrasse com ele. Passei a usar escova em casa. O pentinho e o espelho passaram à reforma, mas não a alma que continuou a ser benfiquista.
Já depois do 25 de Abril, passei a usar o cabelo mais curto, estilo senhor todo direitinho com os impostos e confissões em dia. É que não quis ser confundido com rapaziada que andava metida nos químicos para fugir ao real e usava o cabelo à Amália Rodrigues. Vermelho por dentro e por fora, continuei a ter o Benfica no coração.
Chegado à terceira idade, menos direitinho que dantes, mas com os impostos em dia e as confissões atrasadas, sou considerado um kota pela rapaziada de agora. A crina branca, sem fartura e a vastidão de outrora, só quer a escova e mais nada. Quanto ao resto: BENFICA, ATÉ DEBAIXO DE ÁGUA!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ESTREMOZ / Uma tragédia nunca vem só

 

Fachada da actual Biblioteca Municipal de Estremoz, no Largo General Graça.
Fotografia recolhida com a devida vénia no sítio do Município de Estremoz.


Exórdio
Ainda pairam no ar, os ecos de toda a trapalhada suscitada pela intenção do anterior executivo municipal (MIETZ) de implementação do Monumento ao Boneco de Estremoz no polémico Parque Municipal de Santa Catarina. Apesar disso, o actual executivo municipal (PS) vê-se novamente com “uma criança nos braços”, herdada do anterior executivo. Trata-se do gravíssimo estado em que ficou o novo edifício da Biblioteca Municipal, após as intensas e fortes chuvadas do passado dia 13 de Dezembro, para o qual fora decretado estado de alerta vermelho pelo Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA).
O que ali aconteceu foi uma autêntica tragédia, a qual relatarei mais adiante, recorrendo ás palavras de José Sadio, actual Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, no decurso da reunião ordinária daquele órgão, ocorrida no passado dia 14 de Dezembro.
Como demostrarei no desenvolvimento do presente texto, o espaço em que foi construída a actual Biblioteca é um espaço de tragédia. Daí urge inferir as necessárias ilações para memória futura e com fins preventivos.

1ª tragédia
Por omissão de sucessivos executivos municipais, o chamado Edifício Luís Campos nunca foi classificado como imóvel de interesse público, pese embora o facto de o historiador de arte, Túlio Espanca, no Inventário Artístico de Portugal, o qual abrange o concelho de Estremoz e foi dado à estampa em 1975, ter realçado o interesse do imóvel, o qual remontava aos finais do séc. XVIII e incluía um património azulejar notável, que só por si justificaria aquela classificação.

2ª tragédia
Após o 25 de Abril, a Mercearia Luís Campos foi á falência e o edifício ficou ao abandono, até que alguém o adquiriu para o despojar de toda a azulejaria e não só, que depois vendeu a quem muito bem entendeu, uma vez que o edifício não se encontrava classificado. O referido património azulejar está actualmente exposto no Museu Berardo Estremoz.

3ª tragédia
Por motivos ainda hoje desconhecidos, o executivo municipal MIETZ resolveu adquirir o edifício e em 2016 já era publica a intenção de aí construir a futura Biblioteca Municipal, que do edifício anterior apenas viria a manter a fachada.
A decisão foi então objecto de fortes críticas da opinião pública, na medida em que o local e o espaço em que iria decorrer a construção, condicionavam fortemente as opções dos projectistas.

4ª tragédia
No decurso das obras, manifestou-se uma nascente de água nas fundações, a qual indiciava a conveniência ou melhor a necessidade de abandono da intenção de ali construir o futuro edifício da Biblioteca Municipal. Todavia, essa não foi a opção do executivo municipal em exercício de funções. Este decidiu prosseguir as obras projectadas até á sua finalização, procurando fazer passar a mensagem segundo a qual, a instalação de duas bombas hidráulicas em funcionamento permanente, permitiriam escoar a água que continuamente brotava da nascente.

5ª tragédia
Na sequência da forte intempérie ocorrida no passado dia 13 de Dezembro, o Presidente José Sadio, no decurso da reunião camarária ocorrida no dia seguinte, fez o balanço possível das sequelas da inclemência do tempo.
Referindo-se em particular á Biblioteca Municipal, informou que a situação da mesma era gravíssima e explicou porquê. As bombas de água instaladas na Biblioteca e que retiram a água no caso de o poço encher, revelaram-se manifestamente insuficientes, o que exigiu o reforço com outra bomba. Por outro lado e face ao risco, de inundação grave, houve que fazer prevenção no local. Tornou-se ainda necessário instalar sistemas de vigilância e detecção para emitir alarmes para o exterior, uma vez que eles não existiam.
Deu também conhecimento de que havia água por todo o edifício, muito em particular no auditório, registando-se graves prejuízos nos equipamentos de som e de luz.
Informou ainda que foi convocada a empresa construtora e a fiscalização, tendo sido reportadas todas as anomalias verificadas. De resto, vai ser accionada a garantia, esperando que se resolvam os problemas detectados para que o sucedido não volte a ocorrer.

O futuro é imprevisível
Ainda que o pessimismo não integre a matriz do meu pensamento, não sou um optimista irritante como o nosso actual Primeiro Ministro. Daí que dada a instabilidade cada vez maior do clima e que conduz a eventos meteorológicos cada vez mais extremos, ao contrário do Presidente José Sadio, não acalento a esperança de que o sucedido no passado dia 13 não se volte a repetir. É que o edifício da Biblioteca foi construído sobre uma nascente de água, está situado numa zona de acentuado declive e encontra-se na vizinhança dum curso de água subterrâneo.
A construção da Biblioteca no local onde foi efectuada, consistiu, a meu ver, numa tentativa vã de vencer as leis da Natureza. Estas, quando constrangidas ou desviadas do seu curso natural, procuram caminhos alternativos de acordo com as leis da Física. Surgem então os estragos consequentes, quase sempre irreversíveis e irreparáveis, que só surpreendem os ignorantes e os incautos, mas que são prejudiciais à comunidade no seu todo.
A sabedoria popular acerca do futuro é diversificada: “Não se pode contar com o futuro”, "Confiar no futuro mas pôr a casa no seguro", “O futuro a Deus pertence". Pessoalmente, encaro o futuro como imprevisível, o que me leva a não excluir os piores cenários. Daí que faça votos para que no local da antiga e prestigiada Mercearia Luís Campos, apostada em vender bacalhau sempre bem seco, não venham os amantes da leitura, a ter que consumir livros de molho.

Epílogo
Somos um país de brandos costumes, no qual a perda de memória colectiva tem tendência a branquear e validar situações lesivas do interesse geral da comunidade. Daí a importância da memória no exercício pleno da cidadania.
Ensina-nos a ancestral sabedoria popular que “A culpa não pode morrer solteira”, o que implica o exercício da cidadania através do sufrágio popular. Através dele, cada um de nós e de acordo com a sua consciência, pode prescindir daqueles cuja prática considera ter sido lesiva dos interesses da comunidade.
Pela minha parte, aguardo com serenidade a realização das próximas eleições autárquicas. Quando? Não sei!
Publicado no jornal E, nº 302, de 22 de Dezembro de 2022

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Mais esgrafitos no Outeiro?

 

Chaminé do prédio com os nºs 2 e 4 da Travessa do Outeiro, em Estremoz. São visíveis
3 peças oláricas, incrustadas na chaminé e pintadas de branco.

Imóvel de Interesse Municipal
No passado dia 22 de Outubro, a convite do meu amigo Nuno Ramalho, fui observar e fotografar a fachada da casa dos seus pais, localizada nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. O registo da observação efectuada, permitiu-me interpretar a decoração apotropaica aí patente, trabalho de decifração que foi divulgado nos nºs 299 e 300 do Jornal E. A descoberta e o trabalho de decifração realizados, despertaram o interesse do Município, que solicitou aos correspondentes Serviços, a elaboração de uma proposta de classificação do edifício como Imóvel de Interesse Municipal. Uma tal proposta será submetida a discussão e votação numa próxima reunião do Executivo Municipal. O edifício ficará então com protecção legal que assegurará a preservação do esgrafito recentemente descoberto. Entretanto, no passado dia 24 de Novembro, uma responsável da Direcção Regional de Cultura do Alentejo, deslocou-se a Estremoz para se inteirar da descoberta e fotografar o local.

Não há uma sem duas
Na mesma altura e por sugestão de Nuno Ramalho, fotografei igualmente a chaminé do prédio com os nºs 2 e 4 da Travessa do Outeiro, contíguo pelo lado direito, ao prédio com os nºs 24 e 25 do Largo do Outeiro. A observação da chaminé revelou a existência daquilo que configura ser a incrustação de três recipientes para transporte de líquidos, dois iguais situados ao mesmo nível e outro diferente, situado no eixo central e vertical da chaminé, mas num nível inferior ao dos outros dois. A superfície daquilo que parecem ser recipientes de barro está pintada de branco, tal como o resto da chaminé.
Segundo Nuno Ramalho, trata-se de bilhas de barro, cuja superfície revelava a cor natural deste material, mas que há cerca de 20 anos foram pintadas conjuntamente com a chaminé. Nessa mesma altura, conforme refere, foram também pintados dois anjos esgrafitados na chaminé, virados um para o outro e que seguravam nas mãos as duas vasilhas de barro, situadas no nível superior. Na parte debaixo da chaminé, junto ao recipiente de barro inferior, também haveria vestígios de esgrafitos, cuja natureza não conseguiu precisar. De acordo com ele, tudo tinha sido posto a descoberto pela inclemência do tempo, até que que o proprietário do prédio, o mandou pintar novamente.
Admito que aquilo que Nuno Ramalho diz, possa ser verificado na própria chaminé, a qual a meu ver merecia um estudo mais aprofundado, nomeadamente através da iniciativa de remoção cuidadosa de camadas de pintura, até surgirem os referidos esgrafitos.
A meu ver, devemos estar em presença de outra decoração apotropaica de inspiração cristã. Vejamos porquê.
De acordo com a tradição bíblica e a fé cristã, Deus criou os Anjos da guarda, aos quais é confiada individualmente cada pessoa ao nascer, protegendo-a do mal até onde Deus o determine: “Eis que eu envio um anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho, e te leve ao lugar que te tenho preparado” (Êxodo 23:20).
De acordo com a minha interpretação, na presente decoração apotropaica de inspiração cristã e de época desconhecida, na óptica da crença vigente, os anjos da guarda asseguravam a protecção divina daquela casa, decerto casa de oleiro e/ou olaria e seus moradores e/ou artífices. Tudo estaria, assim, protegido de espíritos malignos que pretendessem entrar pela chaminé, ainda que as portas e janelas estivessem bem fechadas.

Não há duas sem três
As inúmeras indicações e referências que vou recolhendo aqui e ali, parecem fornecer pistas que me levam a crer que os esgrafitos do Largo do Outeiro e da Travessa do Outeiro, possam não ser os únicos por aquelas bandas. São dúvidas que formulo e que só poderão ser respondidas através duma investigação sistemática e profunda a realizar no local, o que exige meios técnicos e materiais, cuja disponibilidade está sempre condicionada pelos meios financeiros e pela oportunidade da sua disponibilização. De qualquer modo, esta é uma reflexão que se impunha e que aqui registo para memória futura.

Publicado no jornal E, nº 301, de 07 de Dezembro de 2022

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Câmara Municipal de Estremoz propõe classificação da decoração apotropaica descoberta no Largo do Outeiro

 


LER AINDA

No princípio do mês de Outubro foi posta a descoberto na fachada duma casa do Largo do Outeiro, em Estremoz, a parte residual de uma decoração apotropaica primitiva, datada do séc. XVII, a qual, em data desconhecida do séc. XVIII, foi mutilada para permitir a abertura de uma janela no local onde antes existiu uma chaminé. A decoração apotropaica agora descoberta, é seguramente a mais antiga do Alentejo.
A interpretação da mesma pelo professor Hernâni Matos, levou-o a concluir estar-se em presença de uma representação simbólica de índole cristã, a qual visava invocar a protecção do Poder Divino de Deus para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. Uma tal interpretação permitiu a extrapolação da decoração apotropaica residual, numa perspectiva de reconstituição do aspecto que a mesma teria antes de ser mutilada, tendo sido criada a respectiva imagem gráfica.
A descoberta foi tema dos dois anteriores números do Jornal E’, apresentado e analisado pelo referido professor Hernâni Matos, colaborador deste Jornal.
Chegado o momento de passar a palavra às entidades públicas com responsabilidade na matéria, o E’ quis saber, junto da Câmara Municipal de Estremoz e da Direção Regional de Cultura do Alentejo qual a importância que dão a esta descoberta arqueológica, quais as medidas que pretendem tomar no sentido de conservar e salvaguardar aquele património cultural do séc. XVII, qual a divulgação para efeitos do turismo, nomeadamente do turismo religioso que entendem merecer.
Ao E’ o Presidente da Câmara Municipal de Estremoz fez saber que o município “está a trabalhar para que numa próxima reunião de Câmara se possa apresentar a classificação do edifício como de “imóvel de interesse municipal”, de acordo com a lei 107/2003, de 8 de setembro”. Segundo o autarca, “o objetivo será o de acrescentar uma proteção legal para preservação do esgrafito descoberto, dado que o mesmo já se encontra salvaguardado, pois o referido imóvel está enquadrado na Zona Especial de Proteção do recinto muralhado de Estremoz”, acrescentando que as demais questões colocadas “carecem de maior aprofundamento e análise”.

Publicado no nº 300 do jornal E, de 24 de Novembro de 2011

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Largo do Outeiro revela segredos ocultos


Extrapolação da decoração apotropaica residual da fachada da casa com os
números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz.

Decoração apotropaica residual da fachada da casa com os números 24 e 25
do Largo do Outeiro, em Estremoz.

Fachada da casa com os números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz, 
patenteando decoração apotropaica residual.

Fotografia e design gráfico
de Miguel Belfo

Da pintura à arqueologia
No princípio do mês de Outubro, o meu amigo Nuno Ramalho mandou pintar a fachada da casa dos seus pais, localizada nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. Os pintores começaram por limpar a parede com jacto de água. Qual não foi o espanto, quanto aquele jacto revela a existência daquilo que configurava ser uma pintura anterior à existência da janela do 1º andar esquerdo e que terá sido sacrificada para rasgar aquela janela. Significa isto que primitivamente a casa só teria a janela do 1º andar direito, a qual seria mais pequena que actualmente, uma vez que as ombreiras foram acrescentadas na parte superior, para a janela ficar com a mesma altura da janela que então foi aberta no lado esquerdo da fachada.
Qualquer das janelas ostenta sobre as ombreiras, padieiras em alvenaria, características do séc. XVIII, ornamentadas com florões em estuque.
Comparando a tipologia da fachada com a das casas limítrofes, constata-se que falta ali uma chaminé, a qual terá sido sacrificada em benefício da abertura de uma janela, tendo a chaminé sido edificada noutra zona da casa. Trata-se de uma conclusão importante na medida em que a decoração da fachada posta agora a descoberto, era uma decoração da chaminé abatida.

O esmiuçar da “pintura”
A análise minuciosa da decoração conseguida com fotografias de pormenor de elevada resolução, revelou que a técnica usada na decoração da fachada foi uma técnica mista, a qual combinou o esgrafito com a pintura do mesmo com almagre, o qual também foi utilizado na pintura de zonas delimitadas por esgrafito. A maioria das zonas pintadas perdeu a coloração conferida pelo almagre e ostenta apenas a coloração devida à cor da argamassa usada no revestimento da chaminé. Apenas dois símbolos conhecidos por “9 pontos rodeados” que se encontram na parte inferior da decoração, exibem a cor do almagre.
O facto de a decoração ter sido efectuada numa chaminé, permite concluir estar-se em presença de uma decoração apotropaica, efectuada com símbolos apotropaicos, isto é, símbolos em relação aos quais existia a crença de possuírem poder para afastar espíritos perversos ou danosos, tais como as bruxas ou o mau olhado. É que existia a crença de que embora as portas e as janelas estivessem bem fechadas, os espíritos malignos poderiam entrar pela chaminé.
O facto de a parte inferior da decoração ser simétrica em relação ao eixo central e vertical, leva a admitir que a composição da decoração seria toda ela simétrica em relação a esse mesmo eixo. A grande incógnita parece ser a parte central da decoração. Todavia são visíveis 2 sectores semicirculares a castanho avermelhado e um outro incompleto, situado num plano superior aos outros dois. Este conjunto parece procurar representar um amontado de pedras, o qual poderá corresponder a uma representação do Calvário, ou seja, da colina onde Jesus foi crucificado. A parte desaparecida da representação incluiria assim na sua parte central, uma cruz latina disposta segundo a vertical. A cruz latina é o símbolo principal do cristianismo. Para os cristãos representa não só a crucificação, como evoca a ressurreição e a esperança de vida eterna.
Incluindo a parte desaparecida da decoração apotropaica, o conjunto incluiria 4 símbolos conhecidos por “nove pontos rodeados”, um no centro duma roda e oito distribuídos à volta da mesma. Cada símbolo “9 pontos rodeados” está inscrito noutra roda, a qual reforça o poder do símbolo. A roda é um símbolo de libertação do lugar e do estado espiritual que lhe está associado.
Vejamos qual o simbolismo dos “9 pontos rodeados”. Desses 9 pontos, 1 está no centro da roda central e os outros 8 distribuem-se regularmente ao longo dessa roda. Numa perspectiva cristã, o ponto central corresponde a 1 e representa Deus, o Único, o Princípio de tudo. Os outros 8 pontos correspondem ao oitavo dia, que sucede aos 6 da criação e ao sabat (dia sagrado e de descanso no judaísmo) e é o símbolo da ressurreição, da transfiguração, anúncio da vida eterna. Sintetizando: os “9 pontos rodeados” simbolizam a criação do mundo por Deus, tal como é referida no Genesis e como tal a crença no poder de Deus sobre todas as coisas. A existência de 4 conjuntos de “9 pontos rodeados”, dispostos na decoração apotropaica em quadrangulação em simetria, resulta de o número quatro se comportar na Bíblia Sagrada como aquele que apresenta a criação de Deus e a totalidade das coisas.
A decoração apotropaica incluiria ainda, aquilo que me parecem ser dois vasos com flores, dispostos de cada um dos lados da cruz latina. Como o simbolismo da decoração apotropaica agora descoberta é de natureza cristã, sou levado a admitir que o vaso com flores possa ser um vaso com açucenas brancas. O vaso é símbolo do princípio feminino e as açucenas simbolizam a pureza, a castidade, a feminilidade e a virgindade da Virgem Maria. Resumindo: o vaso com açucenas é uma representação simbólica da Virgem Maria e um atributo presente em representações da anunciação. A existência de dois vasos com açucenas, um de cada lado da cruz latina, é justificado porque a Virgem Maria como Mãe de Jesus, tem associado a ela o princípio feminino, ao qual era na antiguidade atribuído o número dois. Por outro lado, os dois corações em cada vaso simbolizam a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, inseparáveis um do outro. A primeira destas devoções é dedicada a Jesus humano, misericordioso e sempre pronto a perdoar. A segunda destas devoções, atende ao sofrimento da Virgem Maria aos pés da cruz de Jesus e ao facto de ela guardar todas as palavras de Jesus no seu Coração.
Na decoração apotropaica objecto do presente estudo, aparecem representados simbolicamente: DEUS (“9 pontos rodeados”), JESUS (Calvário com cruz latina) e a VIRGEM MARIA (Vaso com açucenas). Significa isto que no seu conjunto, a decoração apotropaica visava invocar a protecção do Poder Divino de Deus para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. De salientar que para os cristãos, Jesus e Deus é um só, além que que é ilimitado o poder de intercessão da Virgem Maria junto de Jesus.
A decoração apotropaica está datada com um número que me parece ser 1668, número inscrito numa figura delimitada por quatro chavetas dispostas entre 4 pontos, como se formassem um losango. A figura aqui referida está ainda delimitada por dois óvulos a cheio, dispostos segundo a vertical, aos quais se juntam dois círculos a cheio, inscritos em duas circunferências dispostas segundo a horizontal. Tudo aponta para que esta seja a mais antiga decoração apotropaica do Alentejo.

Extrapolação da decoração apotropaica residual
A decoração apotropaica agora posta a descoberto é uma jóia preciosa do nosso património cultural imaterial local do séc. XVII. Na verdade, ela testemunha a existência naquela época de uma crença popular no poder protector dos símbolos apotropaicos, que no seu conjunto atestam a fé no Poder Divino de Deus.
A importância da descoberta e a interpretação da mesma por mim efectuada, exigiam que a mesma fosse divulgada junto do público em geral. Para tal, havia que criar uma imagem gráfica que desse conta de como seria a decoração apotropaica inicial, antes de ter sido mutilada. Tal foi feito com recurso a uma extrapolação da decoração apotropaica residual, tendo em conta a minha interpretação. Essa extrapolação foi executada magistralmente pelo designer gráfico Miguel Belfo, meu companheiro de estrada nesta loucura mansa de “dar à luz” o jornal E, de 15 em 15 dias. Nessa extrapolação tiveram-se em conta os seguintes procedimentos:
1 - A parte residual da representação apotropaica primitiva está representada a castanho e a parte extrapolada está representada a azul;
2 - A partir das porções existentes da moldura rectangular na qual se insere a decoração, foram extrapoladas as partes em falta;
3 - A parte superior do Calvário foi extrapolada a partir da parte inferior, tendo em conta as representações habituais do mesmo;
4 - A cruz latina foi extrapolada a partir da visualização do símbolo do Calvário;
5 - Teve-se em conta que o Calvário com cruz latina definia um eixo de simetria na composição decorativa;
6 - Os “9 pontos rodeados” do canto superior esquerdo foram extrapolados a partir dos correspondentes do canto superior direito e do canto inferior esquerdo;
7 - O contorno lateral direito do vaso do lado esquerdo foi extrapolado a partir do contorno lateral esquerdo;
8 - A decoração (coração) do lado direito do vaso do lado direito, foi extrapolada a partir da decoração do lado esquerdo do mesmo vaso;
9 - No vaso do lado direito, a parte omissa das flores no lado esquerdo do vaso foi extrapolada a partir das flores no lado direito do mesmo vaso;
10 - O vaso de flores à esquerda da cruz latina foi extrapolado a partir do vaso situado à direita da mesma cruz;
11 - A data de 1668 foi extrapolada a partir da observação da data 16?8 patente na decoração, a partir de fotografia de elevada resolução obtida por Miguel Belfo;
12 - Foram eliminadas da imagem final extrapolada, todos os pormenores existentes e visíveis na decoração primitiva residual, tais como defeitos no reboco do fundo que se soltaram, bem como porções mais brancas do fundo, devidas a intervenções posteriores que por ali ocorreram. Ali chegaram a estar cravados um suporte em ferro de fios condutores da EDP, bem como um candeeiro de iluminação pública cravado na parede. Estes, após remoção, deram origem a rebocos que acabaram por ficar pintados numa coloração branca superficial mais nítida.
13 - Onde houve mais dificuldade na extrapolação foi nas flores do vaso direito, já que para além do traçado visível, há reboco em falta distribuído desorganizadamente. Optou-se então por fazer uma extrapolação conjunta do traçado e do reboco em falta.

Agradecimentos
A interpretação e divulgação do significado profundo da decoração apotropaica da casa do Largo do Outeiro, só foi possível graças a uma sequência de boas vontades:
1º) A descoberta da decoração pelos pintores que a comunicaram ao senhor Nuno Ramalho;
2º) A decisão deste último no sentido da pintura da fachada não cobrir a decoração então descoberta, seguida da decisão de me contactar, visando interpretar tudo aquilo;
3º) A disponibilidade mostrada pelo designer gráfico Miguel Belfo que tirou no local, fotografias de elevada qualidade e resolução e que posteriormente, seguindo indicações minhas, extrapolou a parte residual da decoração apotropaica primitiva, de modo a reconstitui-la com o aspecto que ela teria primitivamente;
4º) A benevolência revelada pela directora do jornal E, Ivone Carapeto, face a texto meus, por vezes mais compridos que a légua da Póvoa.

Tem a palavra o Município de Estremoz
A decoração apotropaica agora descoberta, é seguramente a mais antiga do Alentejo, pelo que pode constituir um pólo de atracção turística, desde que devidamente divulgada. É um papel que cabe ao Turismo Municipal.
Ficamos à espera.

 Texto publicado no jornal E nº 299, de 10 de Novembro de 2022