sábado, 8 de junho de 2024

Hernâni Matos expõe acervo neo-realista no Museu Municipal de Estremoz



Integrada no Programa Comemorativo “50 anos em Liberdade: Comemorações do 50º Aniversário da Revolução de Abril de 1974”, terá lugar pelas 16 horas do próximo dia 15 de Junho, na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal de Estremoz Prof. Joaquim Vermelho, a inauguração da exposição de artes plásticas NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / Colecção Hernâni Matos.

Na mostra estarão patentes ao público, 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, pertencentes ao acervo pessoal de artes plásticas do Professor Hernâni Matos, nosso colaborador e reconhecido recolector e investigador da Cultura Popular Alentejana, muito em especial de Bonecos e Olaria de Estremoz, Arte Pastoril e Cerâmica Vidrada de Redondo.
Visando descortinar o que será o certame, procurámos entrevistar o expositor, que desde logo acedeu à nossa solicitação.
Ivone Carapeto

 

Porquê esta exposição?
Esta exposição teve uma génese imprevista, a qual passo a relatar. É sabido que frequento as redes sociais, onde com fins pedagógicos e com espírito de missão, publico diariamente, nunca se sabendo previamente qual é a “ementa do dia”. O ”cardápio” é variado: Bonecos de Estremoz, Olaria de Estremoz, Cerâmica de Redondo, Arte Pastoril Alentejana, Usos e Costume do Alentejo, Literatura de Tradição Oral e tudo aquilo que me enche as medidas e aquece a alma.
Acontece que houve um dia do passado recente, no qual alguém me confrontou, perguntando-me porque é que eu não fazia nenhuma exposição. É claro que a pessoa não me conhecia, porque de contrário saberia que desde os anos 80 do século passado, não tenho feito outra coisa, convidado ou por iniciativa própria. Estaria, decerto, a pensar em tempos mais recentes. Foi então que lhe disse que mais recentemente, em 2004 e 2012, por convite do então Director do Museu Municipal de Estremoz, Hugo Guerreiro, a minha colecção de Arte Pastoril esteve exposta na Sala de Exposições Temporárias (2004) e na Galeria Municipal Dom Dinis (2012).
De qualquer modo, sempre lhe disse que se fosse convidado, estaria disponível para corresponder. Certo dia, cruzei-me à entrada do Museu Municipal com a actual Directora, Isabel Borda d´Água, a quem dei conta da minha disponibilidade em expor Bonecos de Estremoz, Arte Pastoril e Arte Neo-realista, se houvesse interesse por parte do Museu. Houve e esta foi a génese da exposição.

Qual a razão da designação dada à exposição?
O título da exposição surgiu-me num ápice à flor do pensamento. Não poderia ser doutro modo. Isto por que as obras neo-realistas são, elas próprias, registos da realidade de uma época nos seus múltiplos aspectos: social, económico e político. Por outro lado, ao reunir um acervo pessoal dessas obras, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.

Não se importa de explicar aos leitores em que consiste o neo-realismo?
Trata-se dum movimento filosófico, literário e artístico. O neo-realismo português manifesta-se pela primeira vez em meados dos anos 30 através de polémicas literárias surgidas nos jornais “O Diabo” e “Sol Nascente”, bem como na revista “Vértice”, que defendiam uma arte virada para os verdadeiros problemas da sociedade, entrando em ruptura com o que era preconizado pela revista “Presença”, a qual defendia uma literatura expurgada de ideologia e não comprometida socialmente e que ao contrário do neo-realismo dava mais importância à “forma” que ao “conteúdo”.
Tais polémicas são fruto do contexto político-social da década de 30: a oposição entre comunismo e fascismo, o fim da Guerra Civil Espanhola e o deflagrar da II Guerra Mundial. Surge assim uma nova geração de escritores motivados para a intervenção cívica e cultural, em consonância com os propósitos progressistas da esquerda política europeia.
Constitui-se então uma frente cultural de escritores e artistas plásticos, descontentes com a política cultural do regime totalitário e fascista de Salazar, a qual se assume como “Movimento Neo-realista Português”. Este afirma-se como representante e porta-voz dos anseios das classes trabalhadoras, retratando a realidade social e económica do país e empenhando-se na transformação das condições sociais do mesmo. Nesse sentido, foca-se no homem comum, procurando saber como vivem operários e camponeses. Aborda e aprofunda temas como as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Escrutina as injustiças e analisa o modelo social vigente. Pugna pela elevação moral dos oprimidos e deposita esperança no futuro do Homem. É claro que a defesa de todos estes valores se processa nas condições mais duras de repressão, que incluem no mínimo a censura e a apreensão de obras de arte e publicações e no limite, a prisão, a tortura e a interdição do desempenho de cargos públicos.

Identifica-se com o neo-realismo? Em caso afirmativo, porquê?
O neo-realismo retrata uma época que abrange a minha infância e a minha juventude: No decurso desta última tive plena consciência das injustiças sociais e da repressão que se exercia sobre quem se rebelava. Foi o período em que se começou a consolidar a minha consciência cívica e também política, não só em casa, como na escola e na sociedade, por interacção com amigos mais velhos, alguns dos quais já tinham estado “dentro” e outros que não o tendo estado, a vida não lhes “corria às mil maravilhas”. Daí que me identifique com o neo-realismo, enquanto arte de resistência e bandeira de luta antifascista. Pois claro!

Em que consiste a exposição?
Trata-se de uma mostra de 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, os quais integram o meu acervo pessoal de artes plásticas.

Quais são os artistas plásticos representados?
Trata-se de um conjunto diversificado de pintores, desenhadores e gravadores, entre os quais se situam alguns dos mais representativos e direi mesmo icónicos criadores da 3ª geração modernista. Com a particularidade de, num certo período da sua vida e obra, terem integrado as fileiras do movimento neo-realista português. São eles: Jorge de Almeida Monteiro, Alice Jorge, Júlio Pomar, Querubim Lapa, Rogério Ribeiro, Lima de Freitas, Júlio Resende, Manuel Ribeiro de Pavia, Cipriano Dourado, Aníbal Falcato Alves e Espiga Pinto. Para além deles, há a registar ainda a presença incomum de uma obra de António Cunhal, irmão mais velho de Álvaro Cunhal e por mim considerado um percursor do movimento.

Que variedades de artes plásticas estarão patentes ao público?
Os trabalhos expostos são de diferentes tipologias: desenho a grafite, desenho a tinta-da-China, guache, aguarela, técnica mista, serigrafia, linoleogravura, xilogravura, litografia, água forte e água tinta e colagem. De salientar, por um lado, a ausência de tipologias como a escultura, a cerâmica e a pintura a óleo ou acrílico, já que o valor de mercado das mesmas não é compatível com a minha capacidade financeira. De destacar igualmente, por outro lado, a predominância das várias tipologias de gravura artística, mais consentâneas com o meu poder de aquisição. Não foi por acaso que os neo-realistas viram na gravura artística, um meio privilegiado de tentativa de democratização da prática artística e de aproximação da arte do povo. Finalmente, apraz-me registar a presença na exposição de cinco trabalhos (2 xilogravuras e 3 colagens) da autoria do meu saudoso amigo Aníbal Falcato Alves.

O que é que o levou a reunir este conjunto de trabalhos de artistas plásticos neo-realistas?
Tanto quanto me lembro, sempre gostei de arte e a minha predisposição para o coleccionismo remonta aos 10 anos de idade. Todavia, há várias circunstâncias que estão na origem do presente acervo.
Em primeiro lugar, foi determinante a influência de Aníbal Falcato Alves, de quem me tornei amigo logo na minha juventude e que nos anos 60 do século XX me deu a conhecer a existência de uma arte de resistência e me falou doutros artistas com quem privava: Rogério Ribeiro, Manuel Ribeiro de Pavia e Cipriano Dourado. Foi ele também que me falou pela primeira vez da existência e importância da GRAVURA-Sociedade Portuguesa de Gravadores, bem como da relevância das Exposições Gerais de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes. De resto, foi nos anos 80-90 que reuni os trabalhos de Aníbal Falcato Alves que integram o meu acervo.
Em segundo lugar, foi igualmente decisivo ter conhecido Espiga Pinto na minha juventude, pois eu frequentava o Externato Liceal de São Joaquim e o pintor, seis anos mais velho do que eu, era professor de Desenho na Escola Industrial e Comercial, o que aconteceu no período 1960-1965. Foi a época em que deixou marcas da sua intervenção no Café Águias de Ouro, com trabalhos de forte registo etnográfico, que me fascinaram desde logo. Era presença habitual na Livraria e Papelaria Aníbal, a qual eu também frequentava. Todavia, só em 2018 comecei a adquirir trabalhos seus.
Em terceiro lugar, terei conhecido Rogério Ribeiro em 1977, data duma gravura com uma dedicatória do pintor. Mais tarde, em 1981, entrevistei-o para o jornal Brados do Alentejo e aí se falou de neo-realismo. Porém, só tive oportunidade de adquirir trabalhos seus, a partir igualmente de 2018.
Do exposto é fácil de concluir que me senti motivado a coleccionar, não só por me identificar com o tema “neo-realismo”, como também por uma questão afectiva e de admiração da obra daqueles artistas plásticos.
Entretanto, fui conhecendo a obra de outros pintores, desenhadores e gravadores, de tal modo que, sempre que me foi possível, fui acrescentando outros nomes ao meu acervo: Júlio Resende, Manuel Ribeiro de Pavia, Alice Jorge, Júlio Pomar, Querubim Lapa, Lima de Freitas e Jorge de Almeida Monteiro.

A divulgação da exposição tem por base o grafismo de uma mulher a apanhar a azeitona. Quer-nos explicar por quê?
Em primeiro lugar porque optei por associar o grafismo da exposição ao Alentejo, não só porque a mostra decorre nesta região, mas também e sobretudo porque os camponeses alentejanos foram dos principais protagonistas da arte e da literatura neo-realistas.
Em segundo lugar porque a actividade representada era uma prática corrente no Alentejo. A litografia representa uma mulher do povo, de cabeça coberta por um lenço, com avental de trabalho e descalça, o que indicia a sua condição de pobreza. Encontra-se junto a uma oliveira, dobrada sobre si própria e apanha azeitona caída da árvore. No tempo do fascismo havia quem por necessidade tivesse que “andar ao rabisco”, isto é, ir à apanha da azeitona caída no chão, uma vez que tivesse terminado a safra. Era uma actividade de subsistência e último recurso, praticada por quem vivia miseravelmente.
Em terceiro lugar escolhi uma litografia de Cipriano Dourado, pois na sua obra, independentemente da adversidade do contexto, sobressai sempre o encanto da feminilidade, resultado da delicadeza do seu traço.

Quer-nos falar do catálogo da exposição?
O catálogo é uma peça chave da exposição, a começar pelo grafismo centrado na camponesa alentejana que anda ao rabisco da azeitona. É uma imagem muito bela e ao mesmo tempo fortemente expressiva, já que dela transparece a miséria, a dureza e a precariedade da condição feminina no Alentejo de antanho.
O catálogo inventaria sequencialmente as obras expostas, cujas características técnicas estão identificadas e às quais está associado um número de ordem que corresponde igualmente à respectiva imagem no catálogo.
Simultaneamente, cada obra é acompanhada duma nota de fim, já que cada uma delas encerra em si uma estória que merece ser descodificada e revelada. É esse o papel do recolector, o qual se torna inescapavelmente um contador de estórias. Estórias plurais e multifacetadas que envolvem o relato do que está na génese da criação, a gesta do acto criador e o impacto que teve na comunidade.
Estórias que passam igualmente pelo relato do contexto da aquisição de cada obra, da identificação de anteriores proprietários, das particularidades das dedicatórias de autores e das estórias de vida de quem foi o destinatário da dedicatória.
O catálogo apresenta na abertura um texto da autoria do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, José Daniel Pena Sadio, que muito me honra e valoriza o catálogo. Nas suas palavras, o Senhor Presidente reconhece o valor e o interesse de parte do meu acervo estar patente ao público, o que o levou a dar o seu aval no sentido da exposição de artes plásticas “NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / Colecção Hernâni Matos”, integrar as COMEMORAÇÕES "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”, promovidas pelo Município de Estremoz.
O catálogo insere igualmente com muito orgulho, o texto “O imaginário desceu à terra” da autoria de António Júlio Rebelo. Trata-se de um texto a partir do qual se torna difícil extrair excertos, já que com as suas sábias palavras, o nosso estimado filósofo erigiu um monumento de pensamento. De qualquer modo, com bastante modéstia, destaco e sublinho algumas passagens: “O neo-realismo mostra que é possível identificar a realidade e transcender a visão que o nosso olhar sonda, em silêncio, emocionado e doído.” E mais adiante: “Quem trouxe esse imaginário que desceu à terra? O nosso dedicado guardador de memórias, aquele que as colhe, guarda e protege, e que tem para connosco a bondade e o cuidado de as mostrar, confirmando que, segundo a melhor sabedoria ditada na história, o passado, o presente e o futuro são uma só verdade.” Já a finalizar: “Em nome da esperança, sigam com o melhor olhar que tenham a exposição que a todos é facultada.”

Que expectativas tem em relação à exposição?
As expectativas são naturalmente positivas. Em primeiro lugar, a curadoria da exposição é de Isabel Borda d’Água, Directora do Museu Municipal de Estremoz, que se tem mostrado inexcedível na preparação da exposição e na divulgação da mesma. Conta de resto com o apoio de uma equipa de montagem com provas dadas, importante naquilo que será o concretizar do “visual da exposição”.
Em segundo lugar, as iniciativas patrocinadas pelo Município, como é o caso, têm uma excelente divulgação, não só na imprensa escrita e falada, sobretudo a nível regional, como também nas redes sociais.
Em terceiro lugar e modéstia à parte, eu próprio constituirei um pólo de atracção da exposição, não só pela curiosidade suscitada pela vontade de conhecer o acervo por mim reunido, como acrescer o facto de no acto inaugural, eu próprio conduzir uma visita guiada à exposição. Por isso venham. Estão todos convidados. Parafraseando Zeca Afonso: - Venham e tragam outro amigo também!
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS:.
Luís Mariano Guimarães

CIPRIANO DOURADO (1921-1981). Rabisco (1956). 
Litografia sobre papel 6/20. 42 x 35,5 cm (mancha).

ANTÓNIO CUNHAL (1910-1932). Semeador (s/d). 
Desenho a tinta-da-China sobre cartolina.
 25 x 16 cm (mancha).

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