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domingo, 9 de novembro de 2025

Os pisadores, artefactos de arte pastoril

 

1. Pisador. Colecção Hernâni Matos.


Um pisador é um utensílio em madeira usado em culinária com recurso a gral ou não e que permite triturar, moer e misturar substâncias sólidas. É recorrendo a um pisador que se prepara o piso utilizado na confecção da açorda alentejana, usando sal grosso, alho, coentros ou poejos.

Os pisadores, artisticamente trabalhados à navalha numa peça única, esculpidos e/ou com incisões superficiais na madeira (Fig. 1 a Fig. 6), constituem graciosos exemplares de arte pastoril.

 Hernâni Matos


2. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

3. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

4. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

5. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

6. Pisador. Colecção Hernâni Matos.

sábado, 8 de novembro de 2025

Os esfolhadores, artefactos de arte pastoril

 

1. Esfolhador. Colecção Hernâni Matos.

O esfolhador é uma alfaia agrícola usada outrora na cultura do milho. Trata-se de um artefacto com uma extremidade pontiaguda, manufacturado em madeira, usado tradicionalmente para descamisar o milho. Os esfolhadores, artisticamente trabalhados à navalha numa peça única, esculpidos e/ou com incisões superficiais na madeira (Fig. 1 a Fig. 4), constituem belos exemplares de arte pastoril.

A operação de descamisar o milho, realizada após a colheita, consistia em separar a maçaroca de milho do folhelho, camisa ou carapela, conjunto de folhas finas e esbranquiçadas que revestem as maçarocas.

Para descamisar o milho, pegava-se manualmente numa maçaroca, com o esfolhador rasgava-se o folhelho, que depois era afastado da maçaroca. Seguidamente com uma mão a segurar a maçaroca, dava-se com a outra um puxão no folhelho, o qual era assim separado daquela.

A operação de descamisar o milho ocorria em ajuntamentos comunitários conhecidos como descamisadas, desfolhadas ou esfolhadas e tinha lugar nas eiras em finais de Setembro ou início de Outubro, após a colheita do milho.

As desfolhadas eram tradições comunitárias, actualmente descontinuadas, que assumiam a forma de festas comunitárias realizadas nas eiras, à noite e ao luar, em que se socializava, cantando e contando estórias alegres e brejeiras

Depois da desfolhada seguia-se a debulha e, finalmente, o milho era estendido na eira para seca, até ser armazenado para posterior consumo.

Hernâni Matos

2. Esfolhador. Colecção Hernâni Matos.

3. Esfolhador. Colecção Hernâni Matos.

4. Esfolhador. Colecção Hernâni Matos.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Uma singular colher-garfo, artefacto bifuncional de arte pastoril

 

1.

A Cristina Carvalho que me cedeu
o exemplar de arte pastoril
que foi objecto do presente estudo

Prólogo
O artefacto em madeira que é objecto do presente estudo (fig. 1), configura ser uma colher articulada constituída por duas partes: uma concha ovóide lisa (fig.2) e uma tampa plana de perfil ovóide (fig. 3), com decoração incisa no interior (fig. 4) e no exterior (fig. 5).

Decoração incisa no interior da tampa
O simbolismo da decoração incisa global passa pelo simbolismo do coração transpassado por uma seta e pelo simbolismo da Cruz de Cristo (fig. 4)
O elemento central da decoração incisa é a Cruz de Cristo ou Cruz de Portugal, com os braços verticais e horizontais proporcionais, formando um quadrado. Simboliza a religiosidade cristã e foi usada pelos Templários durante as cruzadas (sécs. XI-XIII) e pelos navios portugueses no decurso das expedições na época das descobertas marítimas (sécs. XV-XVI).
O coração transpassado por uma seta simboliza o amor romântico, a paixão, o ser "atingido" pelo amor. A presença de dois corações em posições anti-simétricas um em relação ao outro, significa que a força do amor em cada um deles actua em direcção oposta à do outro, mas com igual intensidade. Estamos, pois em presença da representação de um afecto profundo e da ligação entre dois corações e duas almas, um homem e uma mulher, a quem a colher é oferecida.
Os dois corações trespassados pelas setas têm a Cruz de Cristo a liga-los entre si, o que traduz a condição cristã do homem e da mulher apaixonados, bem como o compromisso de um casamento cristão a selar a união entre ambos.

Decoração incisa no exterior da tampa
À primeira vista parece que o exterior da tampa plana da colher (fig. 5) tem uma decoração incisa cuja componente dominante é um garfo. Todavia uma observação mais atenta revela que aquilo que na tampa configura ser a representação incisa de um garfo, é mesmo um garfo articulado (fig. 6), cuja articulação é coaxial com a colher e com a respectiva tampa. Esta foi escavada em baixo relevo no seu exterior, visando permitir o encaixe do garfo quando este não está a ser utilizado.

Epílogo
Uma análise mais atenta do artefacto que era objecto de estudo revelou que aquilo que inicialmente configurava ser um artefacto monofuncional (colher), revelou ser afinal um artefacto bifuncional (colher-garfo). Lá diz o rifão "As aparências iludem”, o que é equivalente a dizer que “Nem tudo o que parece é", bem como ainda “As coisas não são como são, mas como a gente as vê".

Hernâni Matos


2.

3.

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5.

6.

7.

sábado, 1 de novembro de 2025

A génese da arte pastoril


COLHER EM MADEIRA - Artefacto de arte pastoril alentejana
da autoria de Joaquim Teodoro da Cruz. Orada, 1940.
Colecção Hernâni Matos.


Ao meu Amigo António Carmelo Aires,
distinto coleccionador de arte pastoril,
no dia do seu aniversário.

 

O Alentejo é terra de vagares. Na charneca, o tempo cresce e recresce para o pastor de ovelhas. Nesse contexto, os palpites de alma fazem das suas. Logo um impulso criador detona e pelas redes neuronais é transmitido às mãos calejadas. Estas manobram com destreza uma navalha afiada com a qual entalha, grava ou filigrana, o material nativo que recolheu na Terra Mãe, mesmo ali à mão de semear.

Com a magia dum alquimista, transmuta a madeira, a cortiça e o chifre, em autênticas Obras de Arte, graças a um nato saber-fazer, aliado a um refinado bom gosto, pautado por ideias ancestrais que lhe povoam a mente.

Cruzes, estrelas, flores, signo-saimões, hexafólios e corações, integram a simbologia, a maioria das vezes apotropaica ou mesmo sagrada, com que lavra a superfície dos materiais e que nos transmitem mensagens e estórias codificadas que o artífice compôs, visando homenagear o destinatário ou a destinatária da sua Obra: a conversada, a mulher amada, o patrão ou a patroa que lhe asseguram o ganha-pão.

Não se trata, pois, de artefactos confeccionados para matar o tempo, como alvitra a proclamação rifoneira: “Quem não tem que fazer, faz colheres”. Pelo contrário, são manufactos criados graças à generosidade do tempo que cresce e recresce nesta terra de vagares.


BORSAL - Estojo em cortiça para protecção do machado corticeiro. Autor desconhecido.
Colecção Hernâni Matos.

TABAQUEIRA EM CHIFRE E MADEIRA. Joaquim Carriço Rolo (1935-2023).
Colecção Hernâni Matos.

ARTEFACTO BIFUNCIONAL - Constituído por uma carretilha e 3 chavões móveis
ao longo de uma argola circular. Colecção Hernâni Matos.

sábado, 16 de agosto de 2025

Quando as bilhas de Estremoz se passeavam por Sintra e frequentavam as praias da região

 

Fig. 1

O Mercado das Velharias em Estremoz continua a ser uma fonte inesgotável de agradáveis surpresas. Desta vez foi a descoberta de um objecto olárico feito à roda, mais propriamente uma bilha de barro vermelho (Fig. 1), com morfologia corrente e desprovida de decoração. O aspecto superficial não a torna atractiva, já que ostenta inevitáveis marcas de desgaste pelo tempo. O interesse em mim despertado resultou de duas particularidades por mim observadas.
A primeira, a qual salta à vista, é a existência na parte superior do bojo, do lado oposto à asa, de uma inscrição em alto relevo, orlada por um rectângulo e com os seguintes dizeres distribuídos por 3 linhas “AGUA DE MESA / FONTE DAS DAMAS / CAPUCHOS” (Fig. 2 e Fig. 3).
A segunda, situada acima daquela inscrição, é a marca de fabrico da Olaria Alfacinha, já por mim descrita anteriormente [i] : MARCA TIPO 2 - Marca “OLARIA ALFACINHA / ESTREMOZ“, aposta por carimbo, inscrita numa coroa circular de 2,3 cm e 1,4 cm de diâmetro, com a palavra “PORTUGAL”, ao centro. As inscrições “OLARIA ALFACINHA” e “ESTREMOZ” encontram-se separadas por duas cruzes trevoladas (Fig. 4 e Fig. 5).
Segundo consegui apurar, a “Fonte das Damas” situava-se junto ao “Convento dos Capuchos”, na freguesia de Colares, pertencente ao concelho de Sintra. No 1º quartel do séc. XX a água da Fonte das Damas era comercializada, transportada por burros em bilhas de barro e vendida na Vila de Sintra e nas praias da região. As bilhas, é claro, eram bilhas de Estremoz que com a ajuda de burros se davam ao luxo de passear por Sintra e frequentar as praias da região. Olha que chique!


Fig. 2

Fig. 3

Fig. 4

Fig. 5

domingo, 8 de junho de 2025

Louça de Redondo no Mercado das Velharias em Estremoz

 

1.

Sábado é dia de recarregar baterias. E eu sou guardador de memórias. Memórias identitárias de tempos idos de um Alentejo que trago na alma e na massa do sangue. Por mim circulam Bonecos e Olaria de Estremoz, Arte Pastoril, Louça Vidrada de Redondo e mais não digo, senão não saímos daqui. Passo de imediato a contar-vos o que deu a safra ontem.

1. Barranhão de grandes dimensões decorado com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, característica da louça vidrada de Redondo. Bordo beliscado e esponjado de verde. Fundo com decoração mista, fitomórfica e zoomórfica, na qual um arbusto florido serve de poiso a um bando de passarinhos, que também esvoaçam em torno dele, já com o bico carregado,. numa clara alegoria à Primavera.

O traço do esgrafitado é fino, firme e seguro, configurando o desenho ter saído das mãos de grande artista. 

Autoria e datação por determinar,

 

2.

2. Prato de louça de barro vermelho de Redondo, pintado e não vidrado por Francisco Cardadeiro (Chico Galinho). A pintura cinge-se à parte frontal do prato, o fundo é negro e a decoração policromática e fitomórfica reproduz os habituais elementos decorativos da mobília tradicional alentejana. No bordo do prato existe simetria alternada dos elementos decorativos usados do prato. No fundo, existe simetria axial em relação ao eixo central.

Datação por determinar.

  Hernâni Matos


sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

José Lacerda no Mercado das Velharias em Estremoz


Vendedor de chocalhos. José Carlos Rodrigues (1970 - ).
Cortesia de Tói Lacerda.
 

José Lacerda é um amigo cigano de longa data, que anima semanalmente com a sua banca, o Mercado das Velharias em Estremoz. Conheço-o há tanto tempo, que me atrevo a dizer que o conheço desde sempre. É um homem bem-falante, arte que faz parte do negócio que é o seu. Em tempos tratou-me por Doutor e não sendo eu receptivo ao tratamento, promoveu-me imediatamente a Engenheiro, o que igualmente não me assentava bem, mas ele teimava dizendo:

- O meu amigo desculpe. Você tem estudos. Se não é Doutor tem de ser Engenheiro.

Eu bem lhe dizia que era só Professor e mais coisa nenhuma, mas não havia maneira de sairmos dali e eu já estava pelos ajustes. Um dia, disse-lhe:

- “Está o caldo entornado” e “Temos a burra nas couves”.

Parece que foi remédio santo. A partir daí, passou a tratar-me por amigo Hernâni e o nosso relacionamento passou a ser mais natural e saudável.

Fazemos negócio sempre que calha ter alguma peça que me encha as medidas. Ele já sabe o que me interessa e começa a cantar alto como se estivesse no Orfeão e eu, naturalmente, faço ouvidos de mercador. Por outras palavras, esgrimimos. É manha contra artimanha. E lá fazemos negócio, normalmente pouco silencioso, mas tudo acaba em bem ou em mal. Depende do ponto de vista. Umas vezes engana-me ele, outras vezes engano-o eu. E já ouvi da boca dele, aquilo que para mim é encarado como um elogio:

-  Amigo Hernâni: Você é mais cigano do que eu.

Ao longo dos tempos, o meu amigo José Lacerda tem-me vendido arte pastoril, Bonecos de Estremoz, louça de barro vermelho de Estremoz e louça vidrada de Redondo, tendo com isso contribuído para a edificação das minhas colecções. É claro que nem sempre compro, pois mesmo que me interesse, nem sempre é oportuno abrir os cordões à bolsa. É nessas alturas que ele me diz:

- O meu amigo não se preocupe. Não precisa de pagar agora. Paga depois.

O que vale é que eu estou imunizado contra a lábia dele.

José Lacerda é uma figura muito popular e uma referência no Mercado das Velharias em Estremoz. No terrado que semanalmente ocupa no Rossio de Estremoz, destaca-se a sua banca bem provida de chocalhos. Foi esse pormenor, o tema escolhido pelo seu filho Tói Lacerda, para encomendar um Boneco de Estremoz que representasse o pai no Mercado da Velharias. A criação da figura deve-se ao barrista José Carlos Rodrigues, a quem felicito pelo bem conseguido trabalho. Através dele, o cigano José Lacerda ficou perpetuado na barrística popular estremocense. Basta olhar para o Boneco que se é levado a dizer:

- Olha o Lacerda!

domingo, 6 de outubro de 2024

Repercussões do 5 de Outubro no leito dos portugueses


Fig. 1 - Alegoria republicana em costas de cama de ferro.
Cortesia de Manuela mendes.

São conhecidos diversos tipos de camas de ferro com a coroa real portuguesa, dos quais os exemplares da Fig. 2 e da fig. 3 são apenas dois. Com a implantação da República Portuguesa em 5 de Outubro de 1910, há uma mudança de paradigma em múltiplos aspectos da vida social da época. Não admira, pois, que algum fabricante de camas de ferro, com sentido de oportunidade para o negócio, tivesse decidido adaptar a sua produção aos novos tempos.

A imagem da Fig. 1 mostra-nos em pormenor o topo das costas de uma cama de ferro. Em moldura elíptica de orla rendilhada, está patente uma alegoria republicana. Em primeiro plano, o barrete frígio, símbolo republicano da liberdade. Em segundo plano, um facho que emite luz, virado para a esquerda do observador, o qual integra a simbologia maçónica.

Aqueles dois símbolos conjuntamente quererão significar que “por detrás da República está a Maçonaria” ou “a República é de inspiração maçónica” ou ainda “por detrás da República está a ânsia da liberdade”.

O barrete frígio e o facho de luz estão implantados num campo de flores, que a serem mimosas, simbolizam a inocência e a pureza, virtudes que na alegoria estarão associadas à República e à Maçonaria.

Há entre nós, respigadores natos, farejadores de fino olfacto, guardadores de memórias compulsivos, os quais deambulam por aqui e por ali, em casas de adelo e mercados de velharias, “em busca do tempo perdido", como diria Marcel Proust. São heróis na maioria anónimos, muitas vezes com limitados ou mesmo parcos recursos, que a expensas suas, tomam a iniciativa e a liberdade de trazer à luz do dia, testemunhos e por vezes despojos do passado, que são importantes memórias materiais indispensáveis à construção e à explicitação da nossa memória histórica enquanto Povo e da nossa identidade cultural enquanto Nação.

MUITO OBRIGADO, MANUELA MENDES!

Hernâni Matos

Publicado inicialmente em 6 de Outubro de 2024


Fig. 2 - Alegoria monárquica em costas de cama de ferro.
Imagem recolhida na internet.

Fig. 3 - Alegoria monárquica em costas de cama de ferro.
Imagem recolhida na internet.

sábado, 3 de agosto de 2024

Alforge – Mercado das Velharias de Estremoz



Os burros usados outrora no transporte de carga podiam ser portadores de um “alforge”, faixa de tecido grosseiro com dois sacos nas extremidades, os quais ficavam dependurados de cada lado do animal, após o alforge se encontrar assente na “albarda”, sela grosseira cheia de palha que era aparelhada no dorso do animal.

O alforge aqui apresentado, fazia parte do recheio de um monte alentejano e foi confeccionado em tecido grosseiro com quadrados vermelhos e brancos. Encontra-se guarnecido à volta com um debrum branco e o topo dos sacos ostenta um recorte branco com um bordado cor-de-rosa. De cada uma das extremidades do saco pende uma borla cor-de-rosa.

Os sacos encontram-se monogramados com as letras “M” e “A, bordadas a linha cor-de-rosa, correspondentes decerto às iniciais do(a) proprietário(a) e cada uma das letras está ladeada por dois pés de uma flor indefinida, bordada a vermelho, cor-de-rosa e verde claro.

A decoração do alforge não faria sentido em exemplares usados no serviço diário, o que me leva a admitir que se destinava a ser usado apenas em dias festivos, como era o caso da “bênção do gado” pelo pároco da freguesia, tradição rural cuja origem se perde na memória dos tempos.

Hernâni Matos

domingo, 14 de julho de 2024

Agente do FBI? Nem pensar!

 

Fotografia de Luís Dias.




Frequentador assíduo do Mercado da Velharias em Estremoz, sou considerado por muitos como fazendo parte da “mobília”. E não sou “cristão novo”! A minha fé no Mercado remonta aos tempos da sua criação.
Por ali tenho conhecido algumas das minhas maiores alegrias como coleccionador e tenho cimentado amizades sólidas e de respeito mútuo com muitos vendedores, com os quais tenho partilhado conhecimentos e com os quais também tenho aprendido muito.
Com Sebastião da Gama, partilho entre muitas outras coisas, a firme convicção de que o sábado é o melhor dia da semana. Por isso, nos sábados de manhã, o meu escritório é ali. Quem me quiser encontrar já sabe onde eu assento arraiais e cumpro os meus preceitos e rituais de coleccionador da velha guarda.
Foi no Mercado das Velharias que no passado dia 27 de Abril fui surpreendido pelo fotógrafo Luís Dias, o que me levou instintivamente a esboçar um sorriso com que iluminei aquilo a que os outros convencionaram chamar um “ar carrancudo”. Foi um sorriso parcialmente eclipsado pelas lentes fotocromáticas que me protegem dos ultravioletas.
Agente do FBI? Nem pensar?

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 14 de Julho de 2024

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O guardador de memórias e o Mercado das Velharias em Estremoz

 

Caixa em madeira. Joaquim Carriço Rolo.


A identidade cultural alentejana
Participei em 1998 na batalha pela regionalização, apresentando publicamente uma comunicação [i], no fim da qual concluí:
“Julgo ter ficado sobejamente demonstrado que pela sua paisagem própria, pelo carácter do povo alentejano, pelo trajo popular, pela gastronomia, pela arte popular, pelo cancioneiro popular, pelo cante, pela casa tradicional, o Alentejo é uma região com uma identidade cultural própria.
Como diria o poeta, é preciso, é imperioso, é urgente, que cada um de nós tenha consciência dessa identidade cultural e lute pela sua preservação, valorização e aprofundamento.”

Guardador de memórias
A batalha pela regionalização foi perdida, mas tal desfecho não fez esmorecer em mim o que me motivara a intervir naquele Encontro - a minha actividade de guardador de memórias, epíteto que me viria a ser atribuído pelo António Júlio Rebelo [ii]:
“Hernâni Matos é um guardador de memórias.
Quem guarda memórias não vive no passado, faz do passado um tempo presente e futuro. Olhar para as raízes do tempo é compreender melhor o que está e o que virá, com sabedoria, com afectividade, e nunca o seu contrário.
Quem guarda memórias olha para os acontecimentos e vê neles um fio estendido, que vem de tão longe e pode projectar-se para tão longe.
Quem guarda memórias habita o mundo com um saber feito dos outros, da terra funda, da comunidade, e tudo isso passa para nós, é-nos proporcionado, dando-nos com dedicação esse mundo imenso feito de vida”.
Sou assumidamente um guardador de memórias. Memórias de camponeses, de ganhões, de pastores, de ceifeiros, de varejadores e de mulheres da azeitona. Memórias de artesãos e de poetas populares. Memórias de outras vidas, de outros saberes, de outros anseios, de outros modos de ver o mundo e a vida.
Como guardador de memórias, assumo-me como fiel guardião da nossa ancestral matriz identitária, incumbido duma nobre missão: a de transmitir às novas gerações a importância e a riqueza da pluralidade do passado e das tradições do nosso povo, para que elas tenham consciência de que urge resistir a uma globalização castrante que assimptoticamente procurará reduzir à chapa zero, as nossas identidades culturais, a nível local, regional e nacional.

O Mercado das Velharias em Estremoz
Em texto auto-biográfico datado de 2012[iii], escrevi:
“Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que é recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da sua alma. Nessa conjuntura se tornou filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o seu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no mercado das velharias em Estremoz, no qual é presença habitual e onde recolecta objectos que duma forma virtual, pré-existiam no seu pensamento.
O fascínio da ruralidade e o culto da tradição oral, levam-no a procurar o convívio de camponeses, artesãos e poetas populares, com os quais procura aprender e partilhar saberes.
A arte pastoril, um dos traços mais marcantes da identidade cultural alentejana, integra as suas memórias materiais de recolector. Para além do acto da colheita e mais que o fascínio da posse, importa-lhe a possibilidade de dissecação de cada peça recolhida e a cumplicidade com o autor no próprio acto de criação, constituindo um registo para memória futura e uma afirmação vigorosa da identidade cultural transtagana.”
O Mercado das Velharias em Estremoz é um os palcos da minha acção. Na antecâmera do novo ano que aí vem, dou-vos conta das mais recentes memórias no domínio da arte pastoril, que ali foram recolhidas por mim.
Termino, desejando-vos a todos um BOM ANO DE 2024.


[i] MATOS, Hernâni. A necessidade da criação da Região Administrativa do Alentejo in Encontro promovido pelo Movimento “Alentejo – Sim à Regionalização por Portugal”. Estremoz, Junta de Freguesia de Santa Maria, 24 de Outubro de 1998.
[ii] REBELO, António Júlio. Guardador de memórias. [Em linha]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2021/02/guardador-de-memorias.html [Consultado em 29 de Dezembro de 2023].
[iii] MATOS, Hernâni. Acerca de mim in catálogo da Exposição ARTE PASTORIL - MEMÓRIAS DE UM COLECCIONADOR. Museu Municipal de Estremoz. Estremoz, 6 de Maio de 2012. [Em linha]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/p/acercva-de-mim.html [Consultado em 29 de Dezembro de 2023].

Caixa em madeira. Joaquim Carriço Rolo.

Tarreta em cortiça. Autor desconhecido.

Tabaqueira em chifre e madeira. Joaquim Carriço Rolo.

Colher e garfo em madeira. Autor desconhecido.

Chavão ou pintadeira em madeira. Autor desconhecido.

Cágueda em madeira com decoração apotropaica. Autor desconhecido.

Castanholas em madeira. Joaquim Carriço Rolo.

Nossa Senhora do Rosário. escultura em madeira. Joaquim Carriço Rolo (?).


Rosário em madeira e arame. Joaquim Carriço Rolo.

terça-feira, 14 de março de 2023

MERCADO TRADICIONAL DE ESTREMOZ / Bom filho à casa torna




Fotografias de
 Maria Miguéns



Primeira etapa
No passado dia 11 de Março, o tradicional Mercado de Sábado começou a regressar ao local anterior, uma vez que foram dadas por concluídas as obras de requalificação do espaço público do Rossio, iniciadas em Março do ano passado. A execução das obras tinha exigido a deslocalização das diversas componentes do Mercado de Sábado, que se espraiaram e diluíram ao longo dos 4 lados do quadrilátero que é o Rossio.
No passado sábado, os vendedores de produtos hortícolas, frutas, plantas, doçaria, queijos, enchidos e artesanato, voltaram a localizar-se na zona primitiva, ainda que não necessariamente no mesmo local, uma vez que houve necessidade de fazer ajustamentos que se impunham e justificavam.
A reinstalação dos vendedores teve lugar na sequência de um inquérito realizado no mês de Janeiro e de uma reunião com os mesmos no passado dia 6 de Março. Cada vendedor ocupa agora um lugar numerado, que consta de uma planta elaborada e da qual foi dado conhecimento prévio.

Segunda etapa
O regresso dos vendedores ao local anterior teve de se processar duma forma faseada, visando assegurar a logística necessária, bem como o apoio da equipa que acompanha o processo. Após a mudança ocorrida no passado sábado, terá lugar a mudança do Mercado das Velharias, a realizar no sábado, dia 25 de Março.

A cereja em cima do bolo
A reinstalação das várias componentes do Mercado de Sábado aponta para um retoque final perfeito, que é a aprovação em sede própria do Projecto de Regulamento Municipal de Mercados, Feiras e Venda Ambulante e Actividade de Restauração ou de Bebidas não Sedentária do Município de Estremoz, cuja discussão pública está a decorrer.
Há muito que se fazia sentir a necessidade de um novo Regulamento, uma vez que o anterior estava desactualizado. Vai, pois, haver um novo Regulamento que define e regula a organização, funcionamento, disciplina, limpeza e segurança interior do Mercado Tradicional de Sábado. De acordo com art.º 50 do Regulamento (Competência) no seu ponto 1.: A fiscalização do funcionamento das feiras e dos mercados municipais, bem como da venda ambulante e da actividade de restauração ou de bebidas não sedentária, incumbe aos serviços de fiscalização da Câmara Municipal e, nos termos definidos pela lei, às autoridades policiais, fiscais e sanitárias.
Vivemos num Estado de direito e em democracia. Significa isto que o Regulamento é para ser cumprido por todos, o que deve ser assegurado permanentemente e de uma forma activa pelas entidades e autoridades acima referidas. Faço votos para que cada uma cumpra a sua missão e o Regulamento não venha a ser letra morta, a que toda a gente fecha os olhos.

A importância do regresso às origens
Como cidadão responsável, é meu entendimento que o Município fez muito bem ao fazer regressar o Mercado Tradicional ao espaço primitivo. É esse o espaço inicial e tradicional, consignado pelo tempo e pela frequência de sucessivas gerações. É o espaço que herdámos dos nossos antepassados e que devemos valorizar, preservar e legar ás novas gerações. É fácil de perceber porquê.
A importância e a força do Mercado Tradicional resultam em primeiro lugar da sua situação privilegiada no centro da cidade, onde é fácil o acesso de mercadorias e o fluxo de pessoas. Resultam em segundo lugar da elevada concentração humana no espaço em que funciona. Tudo isso conjugado, contribui para que o espaço primitivo do Mercado Tradicional, seja um espaço nobre, um espaço de excelência, de proximidade e de partilha que urge preservar.
Dispersar o Mercado Tradicional ao longo do Rossio, tal como aconteceu transitoriamente, seria descaracterizá-lo pela sua fragmentação, quebrando os elos simbióticos entretecidos entre as suas diversas componentes. Uma tal segmentação enfraqueceria as dinâmicas inter partes, o que equivaleria a condená-lo á morte.
Bem-haja, pois, o Município de Estremoz por manter o Mercado Tradicional no espaço que há muito é seu e o tornaram num ex-líbris da nossa cidade.

Publicado no jornal E, n.º 308, de 16 de Março de 2023