Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958- ). Vista de frente.
Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958- ). Vista de trás.
Cozinha dos ganhões (2021). Carlos Alves (1958- ). Vista de cima.
Ao barrista Carlos Alves:
Eu hoje acordei com o sete metido na cabeça.
O sete é como que um número mágico. De acordo
com o Génesis, Deus criou o mundo em seis dias e
descansou no sétimo, tornando-o um dia santo.
E o número sete passou a simbolizar perfeição e
conclusão. Perfeição que eu encontro na tua recriação
da Cozinha dos Ganhões, depois de estar concluída.
Utilizei então o número sete para lavrar uma estrofe
de quatros versos heptassilábicos, onde falo da tua
obra, aproveitando para realçar que eram pobres
os comeres dos ganhões:
A Cozinha dos Ganhões
tem ganharia à mesa.
Eram parcas refeições
e não havia sobremesa.
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Prólogo
A terminologia “cozinha dos ganhões” usada na designação da figura sobre a qual incide o presente estudo, impõe que seja feita a sua explicitação, para o que me irei socorrer de textos meus, já anteriormente publicados.
Ganhões
“Os "ganhões" eram assalariados agrícolas indiferenciados, que se ocupavam de tarefas como lavras, cavas, desmoitas, eiras, etc., com excepção de mondas, ceifas e gadanhas, que eram efectuadas por pessoal contratado sazonalmente pelos lavradores.
O conjunto dos ganhões era designado por "ganharia" ou "malta" e tinha por dormitório a chamada "casa da ganharia" ou "casa da malta", casa ampla que podia acomodar vinte a trinta homens, em tarimbas improvisadas ao longo das paredes.
No monte, as refeições da ganharia tinham lugar na chamada “cozinha dos ganhões”. Aí se sentavam em burros[i] dispostos ao longo de uma mesa comprida e estreita. A cozinha dispunha igualmente de uma lareira espaçosa onde se podia cozinhar em panelas de ferro. A comida era bastante frugal: açorda acompanhada com azeitonas, olha[ii] com batatas e hortaliças, sopas de cebola acompanhadas com azeitonas, olha de legumes com toucinho e morcela ou badana, gaspacho acompanhado com azeitonas ou batatas cozidas temperadas com azeite e vinagre.” (1)
“A mesa da cozinha dos ganhões era posta pelo abegão[iii] e pelo sota, que se sentavam cada um à sua cabeceira da mesa. A entrada dos ganhões na cozinha só se verificava depois do abegão ter bradado para o exterior: “Ao almoço!”, ”À ceia!” ou “Ao jantar!”, conforme a refeição de que se tratava. A malta acudia logo à chamada, tirava o chapéu e sentava-se à mesa sempre no mesmo lugar. O que era para comer já tinha sido previamente vazado pelo abegão e pelo sota, em grandes alguidares, conhecidos por “barranhões”. Só faltava migar as sopas de pão, o que cada um fazia puxando da navalha que trazia consigo. Lá diz o adagiário: "Sopa de ganhão, cada três um pão."
Amolecidas as sopas, o abegão dava ordem de comer, soltando um “Com Jesus!”. De cada barranhão comiam quatro a seis ganhões, cada um dos quais metia sempre a colher no mesmo local do barranhão, já que "Não há guerra de mais aparato que muitas mãos no mesmo prato."
O abegão e o sota comiam cada um deles em sua tigela, mais pequena que o barranhão e que era unicamente para cada um deles.” (2)
“No início do século passado, ainda persistia o costume de no final da refeição, o abegão juntar as mãos e dizer “Demos graças a Deus.” A malta punha então as mãos e pelo menos aparentemente, todos rezavam e só deixavam de o fazer, quando o abegão se benzia, dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Nessa altura benziam-se e só depois se retiravam.” (2)
A figura
Estamos em presença de uma figura composta que representa a refeição de três assalariados rurais (ganhões) sentados em torno de uma mesa assente numa base rectangular simulando o chão, cujo topo é cinzento cor de laje e a orla cor de zarcão.
Os ganhões têm como traços comuns estarem sentados em “burros”, usarem na cabeça um chapéu aguadeiro[iv] negro e calçarem botas com diferentes tons de castanho.
O da esquerda com cabelo e suíças grisalhas configura ser idoso, o do centro com cabelo e bigode negros aparenta meia idade, enquanto o da direita com cabelo castanho parece ser um jovem imberbe.
Trajam de maneiras distintas: O da direita veste calças azuis, enverga uma camisa azul claro com botões da mesma cor e por cima dela um pelico castanho em pele de ovelha, debruado com couro castanho claro e com uma abotoadura provida de alamares em couro, algo mais escuro que o debrum. O do centro veste calças cinzentas cingidas à cintura com um cinto negro, camisa branca com botões da mesma cor e colete negro com abotoadura frontal de igual cor, apresentando costas em cinzento, de largura regulável por meio de um cinto e de uma fivela dessa mesma cor. O da direita traja calça castanha com cinto de tonalidade mais escura e camisa verde claro com botões de igual cor.
Todos têm à sua frente uma malga em barro vermelho vidrado, com açorda e ovo escalfado. O da frente parece levar uma colher de madeira à boca e tem do seu lado direito um copo de barro vidrado, supostamente contendo vinho. O da direita pega com a mão esquerda num copo como o anterior e tem uma colher de madeira assente na mesa junto à mão direita. O da direita pega numa colher de madeira com a mão esquerda e tem a mão direita próxima de um copo igual aos demais.
Sobre a mesa e à frente, da esquerda para a direita veem-se sucessivamente um chouriço cortado, uma navalha aberta e um pão igualmente cortado.
Análise contextual da figura
A criação da figura “cozinha dos ganhões” remonta segundo creio a José Moreira (1926-1991) e posteriormente a figura tem conhecido várias recriações por parte doutros barristas, todas elas ingénuas. Analisemos sob o ponto de vista da ingenuidade, a recriação de Carlos Alves:
- O chapéu aguadeiro de uso corrente pelos assalariados rurais alentejanos nos finais do séc. XIX e primórdios do século XX, é encarado em termos de traje como uma marca identitária alentejana. Todavia, os ganhões tal como vimos atrás, por uma questão de respeito e por prática religiosa, tiravam o chapéu da cabeça antes de se sentarem à mesa para comerem;
- A figura representa três ganhões e na prática estes eram em número superior, sentados de um lado e outro duma mesa comprida e estreita;
- Os ganhões não comiam de uma malga de uso individual, mas comiam vários de um barranhão de uso colectivo;
- Não era fornecido vinho às refeições, as quais eram modestas não incluindo chouriço ou queijo e mesmo ovo escalfado na açorda. De tal maneira que em certa ocasião, o ganhão e poeta popular Jaime da Manta Branca (1894-1955) foi levado a desabafar perante um lauto almoço do patrão com amigos: “Não vejo senão canalha / De banquete p'ra banquete / Quem produz e quem trabalha / Come açordas sem azête.”. Consta-se que a proeza lhe saiu cara e foi preso pela GNR. Estava-se em pleno Estado Novo.
O trabalho do barrista
A modelação e a decoração das figuras por parte deste barrista têm evoluído no sentido de uma maior minúcia, o que inclui também a representação de texturas. Deste modo, na decoração do presente conjunto e para além do sóbrio e harmonioso cromatismo naturalista dominante, foram representadas texturas[v] de alguns componentes: lã do pelico, cabelo e apêndices capilares, miolo do pão, veios da madeira e cortiça dos bancos. O artífice está a percorrer o seu próprio caminho e consolida o seu próprio estilo, o qual já é revelador de forte carácter artístico como barrista.
Na sequência da divulgação da presente figura por Carlos Alves no Facebook, comentou o consagrado barrista Jorge da Conceição: ”Continua a desenvolver o teu estilo e a dar consistência aos teus traços identitários que estás no bom caminho.”. É um comentário que provindo de quem vem, me apraz aqui registar.
BIBLIOGRAFIA
1 - MATOS, Hernâni. A novela Belmonte e a Poesia Popular de Estremoz. [Em linha]. [Editado em 27 de Novembro de 2013]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2013/11/a-novela-belmonte-e-poesia-popular-de.html [Consultado em 16 de Maio de 2021].
2 - MATOS, Hernâni. Cozinha dos ganhões. [Em linha]. [Editado em 26 de Abril de 2011]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2011/04/cozinha-dos-ganhoes.html [Consultado em 16 de Maio de 2021].
[i] Bancos rústicos confeccionados com pernadas de sobreiro.
[ii] Comida em cuja confecção podem entrar legumes frescos, legumes secos, batata, enchidos, carne.
[iii] A ganharia tinha como mandante o “abegão“, que só recebia ordens do grande lavrador, que o tinha como seu representante em todas as tarefas agrícolas. Era ele que dava as ordens para começar a trabalhar, comer ou parar e que tratava da acomodação e pagamentos da ganharia. O abegão trabalhava e comia juntamente com os ganhões, mas dormia em casa própria com o “sota“, que era coadjutor e substituto do abegão em tudo que podia e sabia.
[iv] O chapéu aguadeiro, típico no Alentejo de antanho, é um chapéu com copa semi-esférica e aba circular, larga e revirada integralmente para cima. A designação resulta de no caso de chover muito, reter a água da chuva, pelo que exigia ser revirado para baixo.
[v] Na barrística de Estremoz, a textura representada há mais tempo é a da pele de ovelha. No decurso do tempo outras se lhe foram adicionando numa perspectiva de fidelidade da representação naturalista. A título meramente exemplificativo, o barrista Jorge da Conceição já representou nas suas criações, texturas de materiais como: lã, cabelo, fio, pão, vime e cortiça.
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