Cirurgia,
um caso grave no hospital (1981). Louis Toffoli (1907-1999).
Óleo sobre tela.
(114 x 162 cm ).
Musée Toffoli Charenton-le-Pont, France.
ADVERTÊNCIA
AO LEITOR
Para que não haja confusões de tipo algum,
fica o leitor avisado de que este “Auto da Alma” não é da lavra do beirão Gil
Vicente, poeta e ourives, mas do alentejano Hernâni Matos, escritor, jornalista
e blogger.
ENREDO
O
enredo do auto desenrola-se na actualidade, em quatro locais distintos:
HOSPITAL - Instituição onde se
tratam doentes e onde umas vezes se salvam vidas e outras vezes não.
CÉU – Morada do Senhor e dos anjos, para
onde vão as almas dos bem-aventurados, na sequência de se terem separado do
corpo após a morte.
INFERNO - Destino da alma humana daqueles
que em vida assumiram condutas condenadas pela Igreja e que por isso ali sofrem
castigo eterno, supliciados com o fogo por Satanás e pelos diabos menores.
PURGATÓRIO - Local em que as almas daqueles
que morrem em estado de graça, mas que ainda são imperfeitas, são preparadas através
do fogo purificador para poderem ascender ao céu.
O
auto envolve 5 personagens, assim caracterizados:
ALGUÉM - Anestesista de serviço no Hospital.
ALMA - a do paciente submetido a intervenção
cirúrgica.
SÃO PEDRO - Barbado e com pele crestada pelo
sol da Galileia. Vestido de apóstolo e com um molho de chaves à cinta.
Desempenha as funções de porteiro do céu e é robusto, para impedir a intrusão
de almas indesejadas.
SATANÁS – Nu, peludo e com a pele
avermelhada pelo calor do Inferno. Como anjo caído em desgraça, mantém as asas.
Para torturar melhor os condenados ao fogo do Inferno, dispõe de cornos na
cabeça, mãos com garras e cascos como um bode.
CENA
I
Após intervenção cirúrgica complexa e
demorada, algo corre mal na sala de recobro do Hospital. Ouve-se então Alguém
gritar:
-
Acabamos de o perder!
A sala de recobro torna-se então num
pandemónio, com o pessoal clínico a entrar em parafuso.
CENA
II
O corpo do paciente torna-se instável e é
abandonado pela alma que, de consciência tranquila se dirige para o céu, porque
julga ingenuamente que é esse o seu caminho.
Atingida uma das portas do céu, o acesso é-lhe
vedado por São Pedro, que lhe diz:
-
Não pode entrar, Irmão!
Espantada, a alma pergunta:
-
Então porquê, São Pedro?
A resposta do Santo foi imediata:
-
Antes do Irmão aqui chegar, já o Senhor me tinha informado do sucedido lá em
baixo. Alertou-me também para o facto de o Irmão não reunir os requisitos
necessários para aqui entrar. Consultei então os Santos Registos, nos quais
consta que o Irmão foi uma pessoa de bem, respeitador das crenças do próximo e
que colaborou com as obras sociais da Igreja. Todavia, a nível de sacramentos
isto está muito mal. Confirmei que o Irmão foi baptizado, recebeu o crisma, fez
a 1ª comunhão e a comunhão solene e chegou a ensinar doutrina aos mais novos. Todavia,
aí pelos 12 anos, deixou de se confessar e de comungar, assim como de
frequentar a Igreja. Mais tarde, casou-se apenas pelo registo civil e
divorciou-se, vindo a reincidir, ao casar novamente pelo civil. Mais
recentemente, o Irmão só frequentava a Igreja para casamentos, baptizados e
missas por defuntos. Como vê Irmão, nada disto abona a seu favor.
Pesarosa,
a alma prepara-se para replicar, mas São Pedro é peremptório:
- A
lei do Senhor é para cumprir e não pode haver desvios. Foi por a fazer cumprir
que passei de pescador a apóstolo, me tornei o 1.º Bispo de Roma e o 1.º Papa.
Foi por a fazer cumprir que me tornei Mártir e agora sou porteiro do céu.
Convencida
que dali não leva nada, a alma despede-se, dizendo:
- Assim seja. Terei de procurar outro
caminho.
CENA
III
Depois de ver recusada a sua entrada no céu,
a alma entra em depressão e dirige-se para o Inferno, onde julga que será o seu
lugar. Numa das entradas encontra-se Satanás que, ao vê-la, dispara à
queima-roupa:
-
Onde pensas que vais? Tira o cavalinho da chuva que aqui não tens cabidela. Era
o que faltava!
Incrédula, a alma questiona:
-
Palavra de honra que não estou a perceber nada disto. Não me quiseram lá em
cima e agora não me querem cá em baixo?
Resposta de Satanás:
Lá
em cima é lá com eles, cá em baixo é comigo. E sempre te digo que é preciso
descaramento para fazer de mim parvo e procurar cá entrar.
A alma que gosta de conhecer as linhas com
que a cosem, insiste e questiona:
- Mas porquê?
Satanás responde de imediato:
-
Em 1.º lugar, porque foste baptizado, recebeste o crisma, fizeste a 1.ª comunhão
e a comunhão solene e chegaste mesmo a ensinar doutrina aos mais novos. Apesar
de não te confessares e de comungar desde os 12 anos, ainda frequentavas a
Igreja para casamentos, baptizados e missas por defuntos. Para além disso foste
uma pessoa de bem, respeitador das crenças dos outros e que colaborou com as
obras sociais da Igreja. Como estás a ver, tudo isto é contra ti. Mas há
mais!
Em
2.º lugar, tiveste preocupações sociais e lutaste por elas. Mas o mais grave de
tudo é que fizeste parte da trupe da Catarina Martins, que defende a igualdade
a todos os níveis e quer que os ricos paguem a crise. E isso não posso tolerar,
já que os ricos constituem a maioria residente no Inferno, pelo que me cabe a
mim zelar pelos seus interesses, mesmo depois de mortos.
Em
terceiro lugar e por aquilo que conheço de ti, eras capaz de sabotar o fogo dos
caldeirões, fomentar a greve entre os diabos menores e virá-los mesmo contra
mim. Até eras capaz de me serrar os cornos, aproveitando alguma distracção
minha ou quando estivesse a dormir.
Por
isso, põe-te na alheta!
E a alma assim fez.
CENA
IV
Mais pesarosa que antes, a alma dirige-se
para o Purgatório, a ver se ao menos consegue ingressar ali. Com grande
surpresa sua, logo à entrada vê um cartaz que diz: ENCERRADO POR FALTA DE
HÓSPEDES. Para onde ir então?
CENA
V
Na sala de recobro do hospital, após
porfiados esforços do pessoal clínico, o paciente regressa à vida. Alguém
exclama:
-
Já cá o temos outra vez!
Nesse preciso momento, a alma regressa ao
corpo. Terminara a sua peregrinação por territórios de rejeição. Já não era a
mesma. Tinha muito que contar. Agora o seu lugar era ali, para o que desse e
viesse.
MORAL
DO AUTO
Preso
por ter cão e preso por não ter.
Hernâni Matos
São Pedro (Entre 1610 e 1612) . Peter Paul Rubens (1577–1640). Óleo sobre
O Inferno (c. 1510-1520).
Mestre português desconhecido. Óleo sobre madeira
Hernâni Matos
São Pedro (Entre 1610 e 1612) . Peter Paul Rubens (1577–1640). Óleo sobre
tela (107 x 82 cm ). Museo del Prado,
Madrid.
de carvalho (119 x 217,5 cm ). Museu Nacional
de Arte Antiga, Lisboa.
Um anjo salva as almas do
purgatório (c. 1610). Lodovico Carraci (1555-1619).
Óleo sobre tela (44 x 51 cm). Pinacoteca, Vaticano.
Obrigado pela partilha amigo Hernâni. O Auto da Alma é um agradável ensaio que, com um sorriso nos lábios, nos interpela sobre a fé e conceitos infantis com que muitos de nós ficámos, como referencia religiosa, mas que teima em buscar maior profundidade e verdade sobre os "Anjos e Demónios" que povoam a nossa imaginação. Abraço
ResponderEliminar