Moringue com
decoração fitomórfica. Manufactura da Olaria Alfacinha, Estremoz.
Colecção do
autor.
A Memória do Passado
A actividade de um coleccionador não se
desenrola na maioria das vezes num mar de rosas. O coleccionador navega por
entre escolhos, os quais terá de ser capaz de ultrapassar, a fim de poder levar
a bom porto, a missão que a si próprio atribuiu. É o que se passa comigo,
enquanto coleccionador de louça de barro vermelho de Estremoz. É que a olaria
local extinguiu-se há algum tempo. Foi o fecho da crónica de uma morte prevista.
Todavia, ela permanece bem viva no registo quântico da minha memória.
Vale-me ser um respigador nato e
usufruir da capacidade de fazer um rápido reconhecimento da infinidade de
objectos que aos sábados povoam o Mercado das Velharias, em Estremoz. Valem-me
ainda os vendedores que sabendo dos meus gostos, me arranjam peças sem o
compromisso de eu ter de ficar com elas. Valem-me também os “olheiros” amigos,
que me dão conhecimento onde é que determinada peça que me possa interessar, se
encontra à venda. Por vezes, a meu pedido e como meus mandatários, compram
aquilo que me interessa. E tudo isto parece muito e de facto é, mas não é tudo.
A Lei de Lavoisier
Hoje existe um vasta profusão de vendas
“on line”, nas quais se podem comprar objectos, não só a vendedores
profissionais, mas também a quem, por um motivo ou por outro, os pôs à venda.
Algumas vezes, por necessidade de fazer dinheiro, outras para reciclar coisas
que já não lhes interessam e que ao transformarem em dinheiro, lhes permitem
adquirir bens ou serviços nos quais de momento estão interessados. É uma aplicação
prática da Lei de Lavoisier: “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo ser
transforma“. Trata-se de um enunciado que trocado por miúdos e em português
corrente, pode ser expresso assim: “O que não te interessa a ti, pode-me
interessar a mim e vice-versa. Por isso, toma lá e dá cá”. Daí que os
eco-militantes que negam a existência de um plano B, proclamem “Desperdício
zero, já!”.
A viagem
Não estranhem pois que um exemplar da
Olaria de Estremoz, residente em Beja, tenha mudado de ares e vindo até Estremoz,
onde se instalou na minha casa, com direito a todas as mordomias. Bastou-lhe
viajar através do serviço dos Correios, depois de eu ter ressarcido o anterior
proprietário no acto de se ver livre do espécime. Tratou-se de uma viagem que
não foi isenta de riscos, pois por vezes ocorrem descuidos por parte dos
transportadores. Daí a necessidade de uma embalagem meticulosa e paciente, realizada
com o jeito de carinhosos cuidados maternais. Foi o que aconteceu desta vez,
pelo que ao abrir a embalagem normalizei a respiração, os batimentos cardíacos
e a tensão arterial. O recipiente de barro estava bem de saúde e recomendava-se
como vão ver.
O moringue
O viajante foi um moringue, recipiente
para água com uma asa na parte superior e um gargalo em cada extremidade desta.
O gargalo da extremidade mais larga destina-se a introduzir água e o da
extremidade afunilada destina-se à saída da mesma. Para a beber, vira-se esta
última extremidade para a boca e dá-se ao recipiente a inclinação adequada, de
modo a que o esguicho que dela brota vá cair na boca do bebedor. A direcção de
alinhamento dos gargalos é perpendicular à direcção de implantação da asa.
O moringue é em barro vermelho, fabrico
de Estremoz, firmado pela marca incisa linear “OLARIA ALFACINHA ESTREMOZ” na superfície
exterior, junto à base.
A decoração com motivos fitomórficos em
alto-relevo, configura ramos de sobreiro, povoados de folhas serradas e de
glandes. Trata-se de elementos decorativos, obtidos por moldagem, a que se
segue uma colagem na superfície, recorrendo a barbutina.
A superfície do moringue onde assenta a
decoração em relevo é lisa e nela se destacam, igualmente espaçadas, quatro
faixas polidas, entre a base e o topo do bojo. Os gargalos são igualmente lisos
e ostentam faixas polidas.
A asa configura um galho de sobreiro
bifurcado nas duas extremidades. As bifurcações assentam no topo convexo do
moringue, onde também se inserem os gargalos.
No bojo, a legenda “LEMBRANÇA / DE /
ESTREMOZ “, distribuída por três filas paralelas com texto centralizado.
Significados da legenda
Trata-se de uma legenda que encerra em
si múltiplos significados:
- Em primeiro lugar que o moringue é um
artefacto de barro, manufacturado em Estremoz.
- Em segundo lugar que tanto pode ter
sido comprado por um forasteiro como por um autóctone para uso próprio ou para
oferecer a alguém, com a mensagem expressa que é uma lembrança de Estremoz e de
nenhum outro local.
- Em terceiro lugar e para além de lembrança
de Estremoz é, sobretudo, uma lembrança da Olaria de Estremoz.
- Em quarto lugar, atesta a magia das
mãos do oleiro que lhe deu forma, repetindo gestos ancestrais, herdados de
Mestre ou de familiares ascendentes.
- Em quinto lugar, a Memória das mãos
pacientes e hábeis das “polideiras” que ao decorarem a superfície, reforçaram
toda a beleza que na morfologia, na volumetria e nas proporções, o moringue já
ostentava em si.
- Em sexto lugar, a mensagem de que a Olaria
de Estremoz é “sui generis” e por isso mesmo inconfundível.
- Em sétimo lugar, a afirmação
orgulhosa de uma identidade cultural popular, local e regional, que encerra em
si e é deveras notória.
- Em oitavo lugar, a lembrança de que
Estremoz já foi terra de olarias, que por fatalidade ou talvez não, se
extinguiram.
- Em nono lugar, a mensagem de que
parafraseando o poeta João Apolinário, cantado por Luís Cília, “É preciso,
imperioso e urgente” recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz,
como modo de produção artesanal que integra o nosso património cultural
imaterial.
- Em décimo lugar, a chamada de atenção
àqueles que detendo as rédeas do poder local, andam embriagados pela inclusão
da manufactura dos Bonecos de Estremoz na Lista Representativa do Património
Cultural Imaterial da Humanidade. Tornaram-se autistas em relação à Olaria de
Estremoz e não revelam quaisquer sinais de estar interessados na sua
recuperação. Onde é que já se viu isto? Só nesta terra. E depois ainda
proclamam que “Estremoz tem mais encanto!”.
Acordai!
Nada mais adequado que evocar aqui um
excerto do poema “Acordai” de José Gomes Ferreira, que musicado por Fernando
Lopes Graça, constituiu, porventura, uma das mais apelativas “Canções Heróicas”,
que serve para despertar consciências: “Acordai, / homens que dormis / a
embalar a dor / dos silêncios vis!”.
Fala o Passado
A referência mais antiga aos barros e à
Olaria de Estremoz remonta ao foral de D. Afonso III, datado de 1258,
seguindo-se o foral de D. Manuel I, de 1512. Daqui para diante as referências
histórico - literárias aos barros de Estremoz são múltiplas: António Caetano de
Sousa (1543), Giovanni Battista Venturini (1571), Francisco de Morais (1572),
Inventário de D. Joana (irmã de Filipe II), correspondência de Filipe II, Padre
Carvalho (1708), Francisco da Fonseca Henriques (1726), João Baptista de Castro
(1745), Duarte Nunes de Leão (1785), D. Francisco Manuel de Melo, Alexandre
Brongniart (1854), Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1925).
Os barros de Estremoz têm sido cantados
por poetas como: António Sardinha, Celestino David, Maria de Santa Isabel,
Guilhermina Avelar, Maria Antónia Martinez, Joaquim Vermelho, António Simões,
Mateus Maçaneiro e Georgina Ferro. Mas não só os poetas eruditos têm tomado a Olaria
como tema de composições. Também ao longo dos anos, os nossos poetas populares
têm feito quadras e décimas que integram o valioso Cancioneiro Popular Alentejano.
Não resistimos a divulgar aqui duas dessas quadras, recolhidas no início do
século passado por António Tomaz Pires, de Elvas, nos seus Cantos Populares
Portugueses. São quadras com um conteúdo algo jocoso. Eis uma: “Minha mãe não
quer que eu case / Com homem que seja oleiro; / Mas eu faço nisso gosto, / Pois
tudo é ganhar dinheiro.”. Eis a outra: “Se tens pele grossa, / Põe-lhe pós de
arroz. / Que eu vou ser oleiro / Para Estremoz”.
A herança do Passado
De acordo com a Mitologia Grega, Atlas
foi um dos Titãs condenado por Zeus a sustentar os céus eternamente, após o
assalto gorado ao Olimpo com a finalidade de alcançar o poder supremo do Mundo.
Pela nossa parte, herdámos do Passado tradições que não se podem perder, porque
integram o conjunto das marcas da nossa identidade cultural popular, local e
regional. Por isso, tal como Atlas, transportamos sobre os ombros uma pesada
responsabilidade: a de recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz.
É claro que pelo cargo que ocupam, a responsabilidade de uns é maior que a de
outros.
O oleiro
Jerónimo Augusto da Conceição, membro do clã Alfacinha, a modelar uma
bilha. Fotografia de
Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.
Amélia, mulher
de Jerónimo, a efectuar a decoração fitomórfica dum jarro.
Fotografia de
Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.
"É preciso, imperioso e urgente, recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz, como modo de produção artesanal que integra o nosso património cultural imaterial." Concordo. É um crime o que estão a fazer à Olaria de Estremoz. É muito triste.Eu sou de Espinho e fui à feira comprar vasos de barro, já não vendem. Fiquei pasmada. Tudo em plástico. Não desistam, muita força.
ResponderEliminarNeste momento, o Município de Estremoz está a patrocinar um curso de formação, visando resolver o problema.
EliminarParabéns pela sua dedicação a esta arte
ResponderEliminarMuito obrigado. Procurarei não desmerecer o interesse manifestado na minha leitura.
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