quarta-feira, 13 de julho de 2011

Matar a sede no Alentejo


A ceifa. Dordio Gomes (1890-1976). Óleo sobre tela (154 x 194 cm).


                                                                                   À minha filha Catarina

INTRODUÇÃO
O corpo humano de um adulto é composto por 60% de água, a qual está presente em todos os tecidos e desempenha múltiplos papéis: dissolve todos os nutrientes e transporta-os a todas as células, assim como às toxinas que o organismo necessita de eliminar. A água regula ainda a temperatura corporal através da produção de suor.
Através da transpiração, respiração, urina e fezes, perdemos diariamente cerca de 2,5 litros de água ou mesmo mais, se a temperatura for muito elevada e/ou o esforço físico for intenso. Esta perda deve ser reposta.
As necessidades de água do ser humano dependem das perdas e o bom funcionamento do nosso organismo passa pela água que consumimos. Através dos alimentos obtemos cerca de metade da água necessária, o resto deve ser ingerido, bebendo pelo menos, 1,5 litros de água por dia.

SEDES DE OUTRORA
Noutros tempos, nos campos do Alentejo, bebia-se água de algumas ribeiras, assim como de nascentes e poços. Quem andava nas fainas agro-pastoris, bebia normalmente água por um coxo, feito de cortiça.
Fainas violentas como as ceifas, exigiam que houvesse distribuição regular de água, o que era feito, geralmente por uma aguadeira da ceifa, transportando um cântaro de barro e um coxo, por onde se bebia à vez.
Os pastores na sua vida de nómadas conheciam bem a localização das nascentes e poços, onde matar a sede.
Dos poços a água era tirada com caldeiros de zinco, embora em sua substituição se vissem muitas vezes, à beira dos poços, grandes chocalhos com a mesma função. Lá diz o cancioneiro:

“O' lá Cabeço de Vide,
Toda coberta de neve,
Terra do neto da bruxa,
Quem não traz chocalho não bebe.” [1]

Nas aldeias e vilas, as mulheres iam às fontes, encher os cântaros de barro, que transportavam depois à cabeça, equilibrados miraculosamente pela sogra, que a maioria das vezes não passaria duma rodilha enrolada em forma de anel.
Nas cidades, existiam aguadeiros, proprietários de carro com grade para transporte de cântaros, puxados por muar ou burro. Igualmente os havia com recursos mais elementares. Havia quem transportasse os cântaros em cangalhas de madeira assentes no lombo das bestas. Havia também aqueles que nem besta tinham e efectuavam o transporte dos cântaros em carros de mão, que eles próprios empurravam. Os cântaros usados, eram geralmente em zinco, com tampa, não só para não partirem, como para não entornarem. Cada aguadeiro tinha, de resto, a sua própria rede de clientes certos, que eram abastecidos a partir da fonte que frequentava.

SEDES DE HOJE
Hoje é impensável e desaconselhável beber água de ribeiros e de poços, já que os aquíferos estão contaminados por adubos químicos e pesticidas, quando não por águas residuais, domésticas ou industriais. O mesmo relativamente à água das fontes das nossas vilas e aldeias.
Hoje temos que beber água da rede, muitas vezes com sabor a cloro ou então, água engarrafada. Esse o preço do progresso. Um preço que poderia ter sido evitado, praticando uma agricultura biológica, em equilíbrio com os agroecossistemas, assim como um tratamento e convenientemente encaminhamento das águas residuais, que em muitos casos ainda não é feito. Até quando?

BIBLIOGRAFIA
[1] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 13 de Julho de de 2011

13 comentários:

  1. Como tratar as mil vinhas espalhadas em redor de Estremoz, tratadas com quimicos no minimo semanalmente, que o vento espalha pelos ares e a chuva arrasta com ela para os lenc'ois de'agua? Serao elas a riqueza do Pa'is ou o empobrecimento da Natureza para legarmos "as novas geracoes? E eu que me debrucava sobre os regatos de agua, que benzia com o sinal da cruz enquanto dizia:" agua corrente nao mata a gente, agua parada mata a vacada".
    Os erros ortograficos t^em a ver com o teclado que estou a utilizar, peco desculpa.
    Mais um assunto pertinente a abordar...Parab'ens Hernani
    Georgina

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    1. Obrigado, Georgina. Partilho igualmente as suas preocupações.

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  2. Sr. Hernâni! Certamente que o senhor não viveu a ceifa, certamente também não esperou muito tempo por vezes à espera que o aguadeiro ou aguadeira chegasse com a água vindo do poço, mas a beleza como descreve tudo aquilo porque passei, faz-me recuar com muito gosto aos meus l2 anos, quando vivi tudo aquilo que descreve com tal perfeição que nos faz recuar a esses tempos vividos por momento das ceifas. É um prazer ler as descrições que o Sr. faz, tão claras e tão precisas como se tivesse partilhado desse labor. Estava lendo a sua crónica e ao mesmo tempo a imaginar o Sr. a fazer parte do rancho de homens e mulheres por vezes na ordem das 50 pessoas ou ainda mais. Obrigado! Se o não fez,O bem o descreve pode crer.

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    1. Amigo Fonseca:
      Obrigado pelo seu comentário. Procuro ser rigoroso naquilo que escrevo. É tudo.

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  3. Giro. Caro Hernâni, conhece o termo "cucharro"? Só recentemente na minha visita ao CIMR do Vimieiro, fiquei a conhecer o termo "coxo". É a mesma coisa mas tenho perguntado a pessoas do Alto Alentejo e ninguém conhece o objecto por cucharro, tal como no Baixo não tenho encontrado pessoas que o conheçam por coxo.

    O meu avô foi aguadeiro em Panóias, antes de vir a água (en)canalizada e eu costumava ir com ele. Tinha uma carrinha e um macho, com um bidão na carrinha que enchíamos num poço. Depois distribuia-se pela vila. Já agora, os cântaros de barro, na zona da minha família, concelho de Ourique, eram chamados de "quartas". Nunca consegui traçar origem deste termo. A minha avó ia ao poço com duas quartas, uma À cabeça com rodilha e outra à cintura.

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    1. Ricardo:
      Já conhecia o termo "cucharro".
      A palavra "quarta" provém do latim "quarta", que significa "a quarta parte".
      A "quarta" é uma unidade de medida de secos, correspondente a um quarto do 2alqueire". De acordo com uma livro de metrologia que tenho de 1868, no concelho de Ourique, um "alqueire" correspondia no sistema métrico decimal a 15,480 litros, pelo que a "quarta" corresponde a 3,870 litros.

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  4. Talvez as mulheres de Estremoz ainda tenham lembrança de quando iam a Borba beber água para ajudar a gestação. Em 1726, o Dr. Francisco da Fonseca Henriques (Dr. Mirandella), médico de D. João V, escreveu um célebre livro,Aquilégio Medicinal, que circulou pela europa,onde fez o levantamento medicinal das águas portuguesas. E lá conta que "as águas do Tejo e do Douro eram recomendada nas doenças do baço; as de Benavente tornavam as mulheres fecundas; as e Alpalhão prolongavam a vida; as de Sabuga curavam os biliosos; as do Gerez saravam os hipocondríacos; as de Aljustrel operavam vomitórios; as de Alfeite, Alhandra, Cadavaes e Carnide, estimulavam a bexiga; as de Borba fortaleciam as parturientes, etc. O Dr. Curvo Semedo,médico, contemporâneo do Dr. Mirandella, dizia também isto:"Os púcaros de Extremoz, além de serem bezoarticos, excedem à formosura do cristal, senão na brancura, no gosto que dão à água que por elles se bebe, lisongeando igualmente o olfacto com o agradável cheiro do barro que, sem diligêncua nem artifício, é aromático. Os púcaros pela côr rubra e pela sua boa forma são aprasíveis aos olhos..."
    Jorge Sales Golias

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    1. Jorge:
      Obrigado pelo seu comentário.
      Conheço o "Aquilégio medicinal", que tenho em pdf.
      Fico-lhe muito grato se me identificar a obra de Curvo Semedo, donde extraiu a citação que faz.

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  5. Bom dia Hernâni,

    Mais uma vez você fez uma descrição preciosa, e como já sabe eu sinto esta descrição de modo próprio.
    Digo isto pois sou oriundo de uma região fronteiriça com o Alentejo, pelo que os usos e costumes são muito semelhantes. Conheço perfeitamente a partilha de água pelos ceifeiros no modo como descreve! Eu próprio matei a minha sede nas fontes campestres que eram limpas pelos pastores e outos trabalhadores rurais, era uma água pura e cristalina; conhecia essas fontes todas o que me poupava, pois quando andava à caça não precisava de andar carregado com o cantil, e tinha sempre água fresca disponivel. Hoje em dia essas mesmas fontes já não são limpas, algumas já não existem, os campos estão a ficar sem vida, em suma estão abandonados.

    Um grande abraço
    Abilio

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  6. A poluição com nitratos e pesticidas pode mesmo ser evitada com a agricultura biológica. Na cidade de Munique em vez de tratar a água poluida converteram os campos das zonas de captação a este modo de produção e passaram a ter boa água.
    Na vinha os fungicidas de síntese podem ser substituidos por enxofre e cobre que tratam praticamente todas as doenças (e algumas pragas) da videira. Felizmente já começamos a ter bons exemplos de vinhas biológicas em Portugal e também no Alentejo, e algumas já com vinhos premiados (ex: Herdade dos Lagos - Mértola). E no azeite também (ex: Risca Grande - Serpa, onde a produção biológica é bem mais amiga do ambiente que os "modernos" olivais intensivos com oliveiras espanholas (var. Arbequina)e muitos adubos e pesticidas químicos.
    Jorge Ferreira (eng. agrónomo / consultor em ABio)

    Jorge Ferreira

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  7. Senhor Hernâni
    Gostei imenso do artigo acima publicado. Tudo o que aí se encontra descrito , corresponde exactamente ao modo de como era a faina , nomeadamente a ceifa , no Alentejo e a maneira como se "matava " a sede .
    Nos anos 40 do último século , aos 9 anos de idade , iniciei a aprendizagem de ceifeiro . Naquele tempo , saber ceifar era - segundo diziam meus pais - um ofício com futuro , tal como o de sapateiro, etc... O trigo, cevada etc... era debulhado nas chamadas eiras , através de um trilho puxado por um muar .
    Pois como eu era o mais jovem do rancho , fui designado de " aguadeiro " . Tarefa que consistia pegar numa quarta de barro ou numa cuba de madeira e procurar nas proximidades , um poço ou fonte para me abastecer. Lá vinha eu carregado e a suar por todos os poros distribuir a água ao rancho de ceifeiro/as . Então puxava do cucharro de cortiça , enchia-o e saciava a sede aquela pobre gente .
    Isto aconteceu em 1946 . Saía da escola às 12h30 e às 14h00 tinha que estar no emprego. Aos Domingos era de sol a sol . Como recordação, tenho no dedo mínimo da mão esquerda , um sinal bem visível protagonizado pela foice que , não obstante eu possuir canudos de cana , resvalou e atingiu-me o dedinho.

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