"Amor é cego", negro. Inocência Lopes (1973- ).
LER AINDA
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Luís de Camões (c.1524 – 1580)
Tradição versus inovação
A barrística popular de Estremoz
não é imune à mudança a que se refere Camões. De há muito que se tem verificado
uma renovação na abordagem dos temas tratados. Esta tem-se acentuado
ultimamente, de modo a que os bonecos reflictam os contextos e as preocupações
sociais que afligem a comunidade em geral e das quais o barrista é intérprete.
A ceifeira e o pastor de tarro e
manta são registos etnográficos dum contexto sociológico agro-pastoril do
Alentejo de antanho. Ficaram perpetuados nas esculturas populares dos nossos
barristas, tal como no traje e reportório dos nossos grupos etnográficos, a que
há que acrescentar o registo dos nossos escritores, fotógrafos e artistas
plásticos.
A vida mudou, mas o barro e as
mãos de quem o modela, conseguiram reportar uma época e os seus contextos
sociais
Nos dias de hoje, os barristas
continuam a modelar figuras criadas por aqueles que os antecederam, ainda que
com as suas marcas identitárias muito próprias.
Porém cabe-lhes a importante
missão de, para além disso, serem os repórteres do contexto e das preocupações
sociais do presente. Apenas se lhe exige que sigam o modo de produção,
reconhecido como sendo de Estremoz e que na sua essência utiliza na modelação
de uma figura, a combinação da placa, do rolo e da bola. Esses têm que estar
sempre presentes como “marca de água” que assegura a genuidade da nossa
produção barrista, cuja origem remonta a setecentos.
O Amor é cego
“O Amor é cego”, cuja produção
remonta ao séc. XIX, é uma figura de Carnaval e simultaneamente uma alegoria à
cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados, tema recorrente na pintura e
gravura universais, no adagiário português e no cancioneiro popular alentejano.
Até ao presente, “O Amor é cego” tem sido representado como uma figura
feminina, de pele branca.
Todavia, se o amor é mais forte
do que tudo, se não conhece fronteiras, não distingue nem raças, nem credos,
nem ideologias, se de facto “O Amor é cego”, esta figura da nossa barrística
que é Património Imaterial da Humanidade, não pode ser um ícone exclusivo da
raça branca. Tem por extensão de ser de todas as outras. É pois legítimo que a
figura seja modelada com outras cores de pele [1].
Foi o que pensou a barrista Inocência
Lopes.
Faça-se negro
De acordo com o Génesis, no
primeiro dia de Criação do Mundo “Deus disse: “Faça-se a luz!”. E a luz foi
feita”. Pois bem, pensando em “O Amor é cego”, Inocência Lopes disse: “Faça-se
negro”. E o negro foi feito.
Ao criar “O Amor é cego” negro [2],
Inocência Lopes exalta a negritude e proclama a igualdade racial. Trata-se
assim de uma figura com forte conotação ideológica que assume especial
importância num período de fortes tensões sociais que à escala global traduzem
o repúdio por actos racistas praticados por partidários da supremacia branca.
A rematar
A negritude é
um tema fracturante a nível planetário. Ao assumir a maternidade de uma figura que a partir deste momento passa a ser paradigmática, a barrista mostrou uma
atitude corajosa, pois revelou-nos de que lado da barricada está.
O arrojo na concepção e a qualidade da modelação e da decoração, merecem que eu diga:
- PARABÉNS, INOCÊNCIA LOPES!
O arrojo na concepção e a qualidade da modelação e da decoração, merecem que eu diga:
- PARABÉNS, INOCÊNCIA LOPES!
[1]
- À semelhança de inúmeras imagens devocionais de Nossa Senhora que existem por
esse mundo fora e nas quais a Virgem é representada muitas vezes como Virgem
Negra.
[2] - O Amor é cego” negro insere-se
dentro daquilo que se convencionou chamar “Bonecos da Inovação” e nada tem a
ver com figuras como “Preto a cavalo”, “Preta florista” e “Preta pequena” que
integram os chamados “Bonecos da Tradição”. Estas últimas figuras são
reveladoras da colonização africana ocorrida no Alentejo, que levou a que os
negros ficassem perpetuados na barrística popular estremocense.
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