sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Bonecos de Estremoz: Irmãs Flores (1.ª parte)


Fig. 1 - Irmãs Flores. Perpétua (1958- ) à esquerda e Maria Inácia (1957) à direita.
Fotografia de 2018 da autoria de Luís Mendeiros. Arquivo fotográfico do autor.

A extensão do texto e o considerável
número de ilustrações, aconselhou que
fosse dividido em duas partes,
 que serão publicadas sucessivamente.
Esta é a 1.ª parte.

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Irmãs Flores foi o nome escolhido como barristas, pelas irmãs Maria Inácia Fonseca e Perpétua Fonseca, como forma de homenagear a sua mãe, já que dela não herdaram o apelido Pisa-Flores.
Maria Inácia Fonseca é natural de São Bento do Ameixial, Estremoz, onde nasceu a 30 de Abril de 1957. Filha legítima de João Inácio Fonseca, de 34 anos de idade, motorista, e de Matilde Augusta Pisa-Flores, também conhecida por Matilde Augusta Casaca, de 34 anos de idade, doméstica, ambos residentes no Monte do Papa Tremoços (1). Dos 12 aos 15 anos trabalhou no campo em tarefas sazonais e fora delas foi costureira. Entre 1975 e 1980 frequentou a Escola Secundária de Estremoz, onde concluiu o Curso Complementar dos Liceus (2). Em 17 de Setembro de 1977 casou catolicamente com João Alberto Mateus, comerciante, e adoptou o apelido Mateus.
Perpétua Matilde Fonseca, irmã de Maria Inácia e filha dos mesmos pais, nasceu no mesmo local, a 7 de Abril de 1958 (6). Dos 12 aos 17 anos foi cabeleireira. Entre 1975 e 1980 frequentou a Escola Secundária de Estremoz, onde concluiu o Curso Geral dos Liceus (7). Em 11 de Maio de 1985 casou catolicamente com Francisco Maria Marranita Sousa, electricista, e adoptou o apelido Sousa.

Discípulas de Mestra Sabina Santos
Maria Inácia e Perpétua são discípulas de Mestra Sabina Santos com quem começaram a trabalhar (Fig. 2), a Maria Inácia em 1972 e a Perpétua em 1975. Quando falam de Mestra Sabina Santos fazem-no com enlevo e saudade. Com ela aprenderam a arte que transmitiram a seu sobrinho Ricardo Fonseca, um barrista de corpo inteiro, que com elas trabalha, lado a lado.
Com a aposentação de Mestra Sabina Santos, em 1988, ficaram com o legado dos seus utensílios, tintas, moldes das caras e dos tronos e Bonecos mais antigos. Criaram então a sua própria oficina-ateliê, primeiro na Rua das Meiras, 8 e daí transitaram, em 1999, para o Largo da República, 16. Aqui se mantiveram até 2010, ano em que se fixaram no Largo da República, 31-32 (Fig. 1), sempre na procura de melhores condições de trabalho e de atendimento do público.
Na minha condição de etnólogo amador e autodidacta, o registo etnográfico das imagens profanas, e em particular dos personagens da faina agro-pastoril, será porventura o mais forte atractivo dos Bonecos de Estremoz, que me leva à oficina-loja das irmãs Flores, minhas vizinhas, a quem visito amiúde no Largo da República, fascinado pela magia emergente das suas mãos de barristas populares.

O Traje Popular Português 
Em 2007 lancei às Irmãs Flores o desafio de criar novos modelos de Bonecos de Estremoz, inspirados maioritariamente em aguarelas de Mestre Alberto de Sousa. O resultado foi a criação de 36 novas figuras que deram origem à colecção “O Traje Popular Português” e a uma exposição homónima que, numa iniciativa da Associação Filatélica Alentejana, esteve patente ao público de 17 de Fevereiro a 21 de Abril de 2007, no Centro Cultural Dr. Marques Crespo, em Estremoz.

Bonecos da Gastronomia
Como fruto de uma incursão à oficina-loja das irmãs Flores, resultou o livro “Bonecos da Gastronomia” (3), dado à estampa em 2009, numa edição da Câmara Municipal de Estremoz, por ocasião da XVII Cozinha dos Ganhões. A 1ª edição deste livro é ilustrada por 16 imagens de Bonecos das Irmãs Flores, dos quais 11 são “Bonecos da Tradição” e 5 são “Bonecos da Inovação” (Coqueira, Queijeira, Mulher a cozinhar, Padeiro e Vendedora de queijos).
A materialização do livro foi possível graças ao companheirismo do poeta António Simões, das barristas Irmãs Flores, do fotógrafo José Cartaxo e do designer Carlos Alves. A concretização duma ideia inicial minha, encheu-nos a todos de imenso júbilo e desde logo foi equacionado o desenvolvimento mais aprofundado dessa ideia.
Decorrido um ano sobre a primeira edição do livro “Bonecos da Gastronomia”, reconheci que este começou por ser um trabalho de base. Daí que numa primeira fase tivesse concluído que o conjunto dos dezasseis Bonecos que figuraram na primeira edição do livro pudesse ser estruturado, agrupando--os em cinco subconjuntos perfeitamente hierarquizados: Recolha de matérias-primas, Preparação de matérias-primas, Confecção de alimentos, Venda e distribuição de alimentos e Consumo de alimentos.
Numa segunda fase, efectuei o levantamento do que podia ser acrescentado a cada subconjunto, visando torná-lo mais completo. Depois de alguma reflexão, os “Bonecos da Gastronomia” (4), passaram a ser em número de trinta e seis, tendo sido introduzidos vinte e um novos Bonecos e abandonado outro. Desses vinte e um Bonecos, sete já pertenciam à galeria tradicional dos Bonecos de Estremoz. Os restantes catorze foram criação das Irmãs Flores. São eles: Azeitoneira, Caçador, Pescador, Roupeiro, Amassadeira, Forneira, Pisador, Manteeiro, Aguadeira da ceifa, Vendedora de criação no mercado, Taberneiro, Mondadeira a comer, Mulher ao poial dos cântaros e Homens a petiscar.
Nessa criação, efectuada com um severo respeito pela tradicional técnica de manufactura dos Bonecos de Estremoz, foi por vezes utilizada documentação do meu arquivo fotográfico, o que permitiu conferir rigor à contextualização de cada figura.

Alentejo do Passado
Em 2011 lancei às Irmãs Flores o desafio de criarem figuras que integrassem uma colecção que designei por “Alentejo do Passado”, estruturada em 8 grandes áreas, procurando dar uma visão do Alentejo do passado: Pastorícia, Colecta, Ciclo do pão, Ciclo do azeite, Ciclo do vinho, Tiragem da cortiça, Na horta, Na cidade. Esta colecção absorveu a colecção “Bonecos da Gastronomia”, mas com vista à sua concretização foram criados 34 novos “Bonecos da inovação” (Pastor a fazer colher, Ordenha de ovelhas, Tosquia de ovelhas, Roupeiro a caminho da rouparia, Ordenha de vacas, Porqueiro, Lavrador a cavalo, Semeador, Ganhão a lavrar, Mondadeira a mondar, Ceifeiro, Carreteiro transportando molhos de trigo, Debulha com trilho numa eira, Carreteiro transportando sacos de trigo, Moleiro no moinho, Varejador, No rabisco, Juntando a azeitona, Vindimadora a vindimar, Vindimador a carregar cesto com uvas, Transporte de uvas no tino, Adegueiro, Tirador de cortiça, Empilhador, Carrada de cortiça, Hortelão, Hortelão a caminho do mercado, Peixeiro, Talhante, Ervanário, Brinholeira, Mulher ao pé do poço, Mulher acarretando água, Família a comer).
A colecção “Alentejo do Passado” deu origem a uma exposição homónima, de iniciativa da Associação Filatélica Alentejana e que esteve patente ao público, de 19 de Novembro de 2011 a 14 de Janeiro de 2012, no Centro Cultural Dr. Marques Crespo, em Estremoz. Os visitantes foram confrontados com barrística popular do mais alto nível, que regista com rigor e fidelidade o que eram as fainas agro-pastoris do Alentejo d’antanho, bem como a vida na cidade, até cerca de meados do século XX.

Memórias do Tempo das Outra Senhora
Em 2012, associando-se ao lançamento do meu livro “MEMÓRIAS DO TEMPO DA OUTRA SENHORA / ESTREMOZ--ALENTEJO”(……..), as Irmãs Flores criaram 6 novos “Bonecos da Inovação” (o Professor, o Sapateiro Joaquim António Chouriço, o Cavalinho de pau, Jogo do botão, Corrida de rodas e Jogo do pião), que passaram a integrar a colecção “Alentejo do passado”, patente ao público na Sala de Exposições da Associação Filatélica Alentejana no Centro Cultural de Estremoz.

Mudança de Paradigma
Do exposto se conclui que os “Bonecos da Inovação” vieram enriquecer (e de que maneira!), a barrística popular estremocense. Com a criação de “Bonecos da Inovação”, houve mesmo nalguns casos uma “Mudança de Paradigma”, com a nossa barrística a atingir a sua mais alta expressão, na confecção de figuras mais complexas e de execução mais morosa. Cito como exemplo figuras de “Alentejo do Passado” tais como: Ganhão a lavrar, Lagareiro, Carreteiro transportando molhos de trigo, Debulha com trilho na eira, Carreteiro transportando sacos de trigo, Moleiro no moinho, Transporte de uvas no tino e Carreteiro transportando cortiça.
As Irmãs Flores estão de parabéns, pois sem se afastarem um milímetro sequer dos cânones tradicionais da barrística popular estremocense, têm sabido inovar, criando novos públicos com apetência por aquilo que é diferente dentro do tradicional. E elas estão no caminho certo, pois se a sua mestria é pautada, por um lado, pela mais estrita fidelidade aos materiais, à tecnologia e às cores, não deixam todavia de manifestar inquietude que se expressa na criação de novos modelos de Bonecos de Estremoz, que têm a ver com a nossa identidade cultural, local e regional. Por isso são embaixatrizes de vanguarda da nossa Arte Popular transtagana e a comunidade estremocense revê-se com enlevo na elevada qualidade artística do seu trabalho, o que aqui se testemunha, por ser uma verdade insofismável. Bem hajam pois, pelo deleite de espírito que nos proporcionam e que muito contribui para o reforço da identidade cultural alentejana.

Participação em certames
Até ao presente, já participaram nas seguintes feiras: Fatacil (Lagoa), Vila Franca de Xira, Pombal, FIA (Lisboa), Vila do Conde, Foz do Douro (Porto), Palácio de Cristal (Porto), Mercado Ferreira Borges (Porto), Santo Tirso, FIAPE (Estremoz) e Cozinha dos Ganhões (Estremoz). Actualmente só participam nas duas últimas.
Em Portugal têm participado em exposições individuais e colectivas no Museu Municipal de Estremoz Prof. Joaquim Vermelho, no Museu de Olaria de Barcelos e no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa. No estrangeiro expuseram em Valladolid, Nantes, Paris (Notre Dame), Bruxelas, Hamburgo, Toronto e Brasil.

Discípulos
Maria Inácia tem uma filha, Sónia Mateus (1979- ), que foi aluna da minha mulher e que é professora no Instituto Politécnico de Castelo Branco. Perpétua tem um filho, João Sousa (1986- ), que foi meu aluno e é médico. Como “Filho de peixe, sabe nadar”, os primos revelaram naturais aptidões para modelar o barro ao modo de Estremoz. Tenho na minha colecção peças modeladas por eles na juventude e com as respectivas marcas de autor.
Na oficina-ateliê das Irmãs Flores, além de trabalhar o seu sobrinho, Ricardo Fonseca, trabalha Leolinda Inácia Parreira Pereira (1966- ), uma colaboradora que se ocupa de tarefas de pintura.

BIBLIOGRAFIA
1 - Maria Inácia Fonseca - Assento de Nascimento Informatizado nº 1008 de 2009, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
2 - Maria Inácia Fonseca - Processo individual de aluna nº 4260.
3 - MATOS, Hernâni. Bonecos da Gastronomia – 1ª ed. Câmara Municipal de Estremoz. Estremoz, 2009.
4 - MATOS, Hernâni. Bonecos da Gastronomia – 2ª ed. Associação Filatélica Alentejana. Estremoz, 2010
5 - MATOS, Hernâni. Memórias do Tempo da Outra Senhora / Estremoz – Alentejo. Edições Colibri. Lisboa, 2012.
6 - Perpétua Matilde Fonseca - Assento de Nascimento Informatizado nº 676 de 2009, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
7 - Perpétua Matilde Fonseca - Processo individual de aluna nº 4263.


Fig. 2 - Sabina Santos (1921-2005) nos anos 70 do séc. XX, tendo à sua direita as
discípulas Maria Inácia Fonseca (1957- ) e Perpétua Sousa (1958- ).
Fotografia de Xenia V. Bahder. Arquivo fotográfico do autor.

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