Fig. 1 - Confissão (2005). Irmãs Flores (1957- , 1958-
). Figura composta,
manufacturada a partir de desenho de Jorge Branco. Colecção
Francisca de Matos.
Ao meu Amigo Jorge Branco
(1930-2018),
Geofísico, Escritor,
Conferencista,
Artista plástico,
Coleccionador, Bibliófilo,
Naturista, Ecologista e
tudo!
Desassossego espiritual
A génese do Boneco de Estremoz que esteve na origem
da presente crónica, resultou da ocorrência sequencial de três factos: PRIMEIRO:
existir alguém com desassossego espiritual quanto baste, que o levou a ter a
ousadia de reflectir sobre o que ainda ninguém tenha tido a audácia de pensar.
SEGUNDO: a existência de uma infinidade de coisas que ainda não tinham sido
pensadas, muitas das quais continuam por pensar e sobre as quais temos a
liberdade de reflectir, já que como nos diz Manuel Freire “Não há machado que
corte / a raiz ao pensamento”. Sabem porquê? ”Porque é livre como o vento /
porque é livre”. TERCEIRO: haver alguém, que até pode ser o ousado pensador,
que usufrua de capacidade executiva tal, que lhe permita concretizar o que foi
imaginado.
Passou-se isso com o meu saudoso amigo Jorge Branco
(Fig.2), que comungava comigo entre outras coisas, o desassossego espiritual
permanente e o coleccionismo de Bonecos de Estremoz. Acontece que no conjunto
dos “Bonecos da Tradição” e em termos de temática religiosa, existia apenas um
certo número de imagens devocionais, bem como figuras de Presépio narrando a
vida de Jesus (Nascimento e Fuga o para o Egipto), bem como imagens relatando a
Paixão de Cristo (Senhor dos Passos e Cristo crucificado). Jorge Branco
constatou que a temática religiosa era vasta e constituía um manancial ainda
por explorar, em termos de manufactura de Bonecos de Estremoz. Para além das
imagens devocionais, das figuras de Presépio e da Paixão de Cristo, existiam os
10 Mandamentos da Lei de Deus, os 7 Sacramentos da Igreja Católica, os 7 Pecados
Capitais, as 3 Virtudes Teológicas e as 4 Virtudes Cardeais. Como diria o meu
pai, que era alfaiate, “Aqui há pano para mangas” e daí que Jorge Branco tenha
metido mãos à obra.
Concepção e gestação de um Boneco
Jorge Branco era um excelente desenhador, pelo que esboçou
no papel uma figura composta a que deu o nome de “Confissão”, designação
homónima de um dos 7 Sacramentos. Seguidamente, lançou um desafio às Irmãs
Flores, no sentido de efectuarem a correspondente manufactura em barro, ao
“modo de Estremoz”. Estas aceitaram o repto de bom grado, como é seu timbre. O
resultado está à vista (Fig.1). Uma bela figura composta pelas representações
de uma mulher penitente e um padre confessor. A mulher enverga vestido
comprido, cor violeta com flores amarelas e véu (ou lenço?) claro na cabeça.
Está ajoelhada numa almofada e de mãos postas. A sua cabeça está ao nível da
grelha de um confessionário em madeira, encimado por uma cruz e com duas portas
frontais, qualquer delas decorada com uma cruz
No confessionário encontra-se sentado um padre de
batina preta e colarinho branco, que segura um livro. A cabeça do padre está
inclinada em direcção à grelha, o que sugere que a confissão é realizada em voz
baixa, para intimidade da penitente. O facto de a mulher usar véu e o padre
envergar batina, parece contextualizar a representação em data anterior ao
Concílio Vaticano II (1962).
Por vontade expressa de Jorge
Branco foram confeccionados unicamente três exemplares, destinados aos membros
de uma laicissima trindade de amigos: ele próprio, Francisca Matos e o autor
desta crónica. Por desassossego espiritual de Jorge Branco, tinha sido criado
mais um Boneco de Estremoz. Como diz António Gedeão: “…sempre que um homem
sonha / o mundo pula e avança / … “.
Confissão
Para a Igreja Católica, as pessoas podem cometer no
dia a dia, pecados por pensamentos, por palavras, por acções e por omissões,
contrárias à Lei de Deus. A confissão é um Sacramento através do qual o crente
reconhece os pecados cometidos perante um padre ou um bispo, de quem recebe a
absolvição em nome de Deus e da Igreja.
Visões eruditas de pecado
Nem todos comungam o conceito de pecado, tal como o
vê a Igreja Católica. É diversificada e plural a visão erudita ante o pecado: -
Santo Agostinho (354-430), teólogo: “O pecado é o motivo da tua tristeza. Deixa
que a santidade seja o motivo da tua alegria.”; - Martinho Lutero (1483-1546),
reformador protestante: A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas
tristes, e a teologia, pecadores. -
William Shakespear (1564-1616), dramaturgo: “Alguns elevam-se pelo pecado,
outros caem pela virtude.”; - François La Rochefoucauld (1613-1680), escritor:
“Esquecemos facilmente os nossos pecados quando só nós próprios os sabemos.”; -
Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático: “Há duas espécies de homens:
uns, justos, que se consideram pecadores, e os pecadores que se consideram
justos.”; - Benjamim Franklin (1706-1790), inventor: “Guarda-te da ocasião e
Deus te guardará do pecado.”; - Sophie Arnould (1740-1802), soprano: “Há
pecados tão agradáveis que, se os confessasse, cometia o pecado do orgulho.”; -
Robert Browning (1812-1889), poeta: “A ignorância não é inocência, mas
pecado.”; - Kierkgaard (1813-1885), filósofo: Sem pecado, nada de sexualidade,
e sem sexualidade, nada de História. -
Pierre Véron (1833-1900), escritor: “O pecado confessado é meio perdoado, mas
escondido, é perdoado de todo.”; - Machado de Assis (1839-1908), escritor: “O
maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.”; - Thomas Hardy
(1840-1928), poeta: “É muito mais doce imaginar que estamos perdoados, do que
pensar que não pecámos.”; - Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo: “A falta
de confiança entre amigos é pecado que não pode ser repetido, sob pena de ser
irremediável.”; - Anatole France (1844-1924), escritor: “Santa mãe de Deus,
vós, que haveis concebido sem pecado, concedei-me a graça de pecar sem
conceber.”; - Óscar Wilde (1854-1900), escritor: Não peca quem peca por amor. -
Teixeira de Pascoaes (1877-1952), poeta: “O pecado é mais fecundo que a
virtude.”; - Jorge Luís Borges (1899-1986), escritor: “No passado cometi o
maior pecado que um homem pode cometer: não fui feliz.”; - Graham Green
(1904-1991), escritor: “A maioria das pessoas prefere confessar os pecados dos
outros.”;
Música
Portuguesa
A Música Portuguesa considera que o pecado está
ausente do amor. O fado “Amar não é pecado” com letra de Moita Girão e música
de Pedro Rodrigues foi cantado por fadistas como Mariana Silva e Argentina
Santos. Nele se afirma que “Há quem recorde o passado / Com um desgosto
profundo / De ter amado. Porém, / Amar não é um pecado. / Pecado é andar
no mundo / Sem ter amor a ninguém.”
A confissão ou melhor a sua ausência também está
presente na Música Portuguesa. O fado “Nem às paredes confesso” tem letra de
Maximiano de Sousa e música de Ferrer Trindade e Artur Ribeiro. Foi
popularizado por intérpretes como Francisco José e Amália Rodrigues. Diz o
refrão: “De quem eu gosto / nem às paredes confesso / E nem aposto / Que não
gosto de ninguém / Podes rogar / Podes chorar / Podes sorrir também / De quem
eu gosto / Nem às paredes confesso.”
Sabedoria
popular
Na gíria
popular, a palavra “pecado” é usada em sentido figurado. Assim, “ser os
meus pecados” é ser alguém que me causa preocupações. “Pecados velhos” são
pecados cometidos há muito tempo. “Por mal dos meus pecados” significa por
infelicidade minha. “Ser os pecados de alguém” é causar preocupações. “Vara de
bater pecados” é a designação dada a pessoa alta e magra. Na gíria popular,
aparece igualmente o termo “confessar”. Alguém “não se confessar” é ser
reservado e não exteriorizar os seus sentimentos.
Ao longo dos séculos, fruto da observação, a
sabedoria popular consensualizou juízos, os quais condensou em provérbios que chegaram até nós.
Os principais, referentes a “pecado” podem assim ser sistematizados: -
UNIVERSALIDADE: Ninguém
há sem pecado. Ao pecado até os cães ladram. - SABOR: Tudo o que é
bom, ou faz mal ou é pecado. Aquilo que sabe bem, ou é pecado ou faz mal.
Pecado mortal, sabe bem e faz mal. - FREQUÊNCIA: Humano é pecar, diabólico é perseverar. O primeiro pecado vence a
vergonha, o segundo a dissimula, o terceiro a perde. - EVIDÊNCIA: Fugir do juiz
é confessar pecado. - DESCULPA: Antes pecar que arder. Fazer o que os outros fazem
não é pecado. Onde toda a gente peca, ninguém faz penitência. - PERDÃO: Não há pecado que não possa ser
perdoado. Pecado calado, meio perdoado. Pecado confessado é meio perdoado. -
SINGULARIDADE: Dívidas e pecados, cada um paga pelos seus. - HERANÇA: Os
pecados dos nossos avós, fazem-nos eles e pagamo-los nós. - ADEQUAÇÃO: Um pecado, uma penitência. Pecado
novo, penitência nova. Pecado velho, penitência nova. Pecado velho, prudência
nova. A culpa de um pecado não
se paga com a penitência de outro.
Relativamente à “confissão”, o número de provérbios é diminuto e dispensa
sistematização, bastando a sua enumeração: Confessa a Deus os pecados teus. Ao
confessor e ao letrado confessa teu pecado. Pecado confessado é meio perdoado.
Padre mouco não confessa.
À laia de balanço
Chegado a este ponto, creio ser legítimo tirar
algumas conclusões. Nem todos vêem as coisas da mesma maneira. O que poderá ser
pecado para uns, não é pecado para outros, o que é natural, já que os
pressupostos são diferentes. Há que saber viver com isso. É caso para dizer:
- Tu ficas com a tua e eu fico com a minha!
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