quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Bonecos de Estremoz: Uma Estória


Fig. 1 - Confissão (2005). Irmãs Flores (1957- , 1958- ). Figura composta,
manufacturada a partir de desenho de Jorge Branco. Colecção Francisca de Matos.

Ao meu Amigo Jorge Branco (1930-2018),
Geofísico, Escritor, Conferencista,
Artista plástico, Coleccionador, Bibliófilo,
Naturista, Ecologista e tudo!

Desassossego espiritual
A génese do Boneco de Estremoz que esteve na origem da presente crónica, resultou da ocorrência sequencial de três factos: PRIMEIRO: existir alguém com desassossego espiritual quanto baste, que o levou a ter a ousadia de reflectir sobre o que ainda ninguém tenha tido a audácia de pensar. SEGUNDO: a existência de uma infinidade de coisas que ainda não tinham sido pensadas, muitas das quais continuam por pensar e sobre as quais temos a liberdade de reflectir, já que como nos diz Manuel Freire “Não há machado que corte / a raiz ao pensamento”. Sabem porquê? ”Porque é livre como o vento / porque é livre”. TERCEIRO: haver alguém, que até pode ser o ousado pensador, que usufrua de capacidade executiva tal, que lhe permita concretizar o que foi imaginado.
Passou-se isso com o meu saudoso amigo Jorge Branco (Fig.2), que comungava comigo entre outras coisas, o desassossego espiritual permanente e o coleccionismo de Bonecos de Estremoz. Acontece que no conjunto dos “Bonecos da Tradição” e em termos de temática religiosa, existia apenas um certo número de imagens devocionais, bem como figuras de Presépio narrando a vida de Jesus (Nascimento e Fuga o para o Egipto), bem como imagens relatando a Paixão de Cristo (Senhor dos Passos e Cristo crucificado). Jorge Branco constatou que a temática religiosa era vasta e constituía um manancial ainda por explorar, em termos de manufactura de Bonecos de Estremoz. Para além das imagens devocionais, das figuras de Presépio e da Paixão de Cristo, existiam os 10 Mandamentos da Lei de Deus, os 7 Sacramentos da Igreja Católica, os 7 Pecados Capitais, as 3 Virtudes Teológicas e as 4 Virtudes Cardeais. Como diria o meu pai, que era alfaiate, “Aqui há pano para mangas” e daí que Jorge Branco tenha metido mãos à obra.
Concepção e gestação de um Boneco
Jorge Branco era um excelente desenhador, pelo que esboçou no papel uma figura composta a que deu o nome de “Confissão”, designação homónima de um dos 7 Sacramentos. Seguidamente, lançou um desafio às Irmãs Flores, no sentido de efectuarem a correspondente manufactura em barro, ao “modo de Estremoz”. Estas aceitaram o repto de bom grado, como é seu timbre. O resultado está à vista (Fig.1). Uma bela figura composta pelas representações de uma mulher penitente e um padre confessor. A mulher enverga vestido comprido, cor violeta com flores amarelas e véu (ou lenço?) claro na cabeça. Está ajoelhada numa almofada e de mãos postas. A sua cabeça está ao nível da grelha de um confessionário em madeira, encimado por uma cruz e com duas portas frontais, qualquer delas decorada com uma cruz
No confessionário encontra-se sentado um padre de batina preta e colarinho branco, que segura um livro. A cabeça do padre está inclinada em direcção à grelha, o que sugere que a confissão é realizada em voz baixa, para intimidade da penitente. O facto de a mulher usar véu e o padre envergar batina, parece contextualizar a representação em data anterior ao Concílio Vaticano II (1962).
Por vontade expressa de Jorge Branco foram confeccionados unicamente três exemplares, destinados aos membros de uma laicissima trindade de amigos: ele próprio, Francisca Matos e o autor desta crónica. Por desassossego espiritual de Jorge Branco, tinha sido criado mais um Boneco de Estremoz. Como diz António Gedeão: “…sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança / … “.
Confissão
Para a Igreja Católica, as pessoas podem cometer no dia a dia, pecados por pensamentos, por palavras, por acções e por omissões, contrárias à Lei de Deus. A confissão é um Sacramento através do qual o crente reconhece os pecados cometidos perante um padre ou um bispo, de quem recebe a absolvição em nome de Deus e da Igreja.
Visões eruditas de pecado
Nem todos comungam o conceito de pecado, tal como o vê a Igreja Católica. É diversificada e plural a visão erudita ante o pecado: - Santo Agostinho (354-430), teólogo: “O pecado é o motivo da tua tristeza. Deixa que a santidade seja o motivo da tua alegria.”; - Martinho Lutero (1483-1546), reformador protestante: A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas tristes, e a teologia, pecadores.  - William Shakespear (1564-1616), dramaturgo: “Alguns elevam-se pelo pecado, outros caem pela virtude.”; - François La Rochefoucauld (1613-1680), escritor: “Esquecemos facilmente os nossos pecados quando só nós próprios os sabemos.”; - Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático: “Há duas espécies de homens: uns, justos, que se consideram pecadores, e os pecadores que se consideram justos.”; - Benjamim Franklin (1706-1790), inventor: “Guarda-te da ocasião e Deus te guardará do pecado.”; - Sophie Arnould (1740-1802), soprano: “Há pecados tão agradáveis que, se os confessasse, cometia o pecado do orgulho.”; - Robert Browning (1812-1889), poeta: “A ignorância não é inocência, mas pecado.”; - Kierkgaard (1813-1885), filósofo: Sem pecado, nada de sexualidade, e sem sexualidade, nada de História.  - Pierre Véron (1833-1900), escritor: “O pecado confessado é meio perdoado, mas escondido, é perdoado de todo.”; - Machado de Assis (1839-1908), escritor: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.”; - Thomas Hardy (1840-1928), poeta: “É muito mais doce imaginar que estamos perdoados, do que pensar que não pecámos.”; - Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo: “A falta de confiança entre amigos é pecado que não pode ser repetido, sob pena de ser irremediável.”; - Anatole France (1844-1924), escritor: “Santa mãe de Deus, vós, que haveis concebido sem pecado, concedei-me a graça de pecar sem conceber.”; - Óscar Wilde (1854-1900), escritor: Não peca quem peca por amor. - Teixeira de Pascoaes (1877-1952), poeta: “O pecado é mais fecundo que a virtude.”; - Jorge Luís Borges (1899-1986), escritor: “No passado cometi o maior pecado que um homem pode cometer: não fui feliz.”; - Graham Green (1904-1991), escritor: “A maioria das pessoas prefere confessar os pecados dos outros.”;
Música Portuguesa
A Música Portuguesa considera que o pecado está ausente do amor. O fado “Amar não é pecado” com letra de Moita Girão e música de Pedro Rodrigues foi cantado por fadistas como Mariana Silva e Argentina Santos.  Nele se afirma que “Há quem recorde o passado / Com um desgosto profundo / De ter amado. Porém, / Amar não é um pecado. / Pecado é andar no mundo / Sem ter amor a ninguém.”
A confissão ou melhor a sua ausência também está presente na Música Portuguesa. O fado “Nem às paredes confesso” tem letra de Maximiano de Sousa e música de  Ferrer Trindade e Artur Ribeiro. Foi popularizado por intérpretes como Francisco José e Amália Rodrigues. Diz o refrão: “De quem eu gosto / nem às paredes confesso / E nem aposto / Que não gosto de ninguém / Podes rogar / Podes chorar / Podes sorrir também / De quem eu gosto / Nem às paredes confesso.”
Sabedoria popular
Na gíria popular, a palavra “pecado” é usada em sentido figurado. Assim, “ser os meus pecados” é ser alguém que me causa preocupações. “Pecados velhos” são pecados cometidos há muito tempo. “Por mal dos meus pecados” significa por infelicidade minha. “Ser os pecados de alguém” é causar preocupações. “Vara de bater pecados” é a designação dada a pessoa alta e magra. Na gíria popular, aparece igualmente o termo “confessar”. Alguém “não se confessar” é ser reservado e não exteriorizar os seus sentimentos.
Ao longo dos séculos, fruto da observação, a sabedoria popular consensualizou juízos, os quais condensou em provérbios que chegaram até nós.
Os principais, referentes a pecado” podem assim ser sistematizados: - UNIVERSALIDADE: Ninguém há sem pecado. Ao pecado até os cães ladram. - SABOR: Tudo o que é bom, ou faz mal ou é pecado. Aquilo que sabe bem, ou é pecado ou faz mal. Pecado mortal, sabe bem e faz mal. - FREQUÊNCIA: Humano é pecar, diabólico é perseverar. O primeiro pecado vence a vergonha, o segundo a dissimula, o terceiro a perde. - EVIDÊNCIA: Fugir do juiz é confessar pecado. - DESCULPA: Antes pecar que arder. Fazer o que os outros fazem não é pecado. Onde toda a gente peca, ninguém faz peni­tência. - PERDÃO: Não há pecado que não possa ser perdoado. Pecado calado, meio perdoado. Pecado confessado é meio perdoado. - SINGULARIDADE: Dívidas e pecados, cada um paga pelos seus. - HERANÇA: Os pecados dos nossos avós, fazem-nos eles e pagamo-los nós. - ADEQUAÇÃO: Um pecado, uma penitência. Pecado novo, penitência nova. Pecado velho, penitência nova. Pecado velho, prudência nova. A culpa de um pecado não se paga com a penitência de outro.
Relativamente à “confissão”, o número de provérbios é diminuto e dispensa sistematização, bastando a sua enumeração: Confessa a Deus os pecados teus. Ao confessor e ao letrado confessa teu pecado. Pecado confessado é meio perdoado. Padre mouco não confessa.
À laia de balanço
Chegado a este ponto, creio ser legítimo tirar algumas conclusões. Nem todos vêem as coisas da mesma maneira. O que poderá ser pecado para uns, não é pecado para outros, o que é natural, já que os pressupostos são diferentes. Há que saber viver com isso. É caso para dizer:
- Tu ficas com a tua e eu fico com a minha!

Estremoz, 27 de Outubro de 2019
(Jornal E nº 233, de 14-11-2019)
Publicado inicialmente aqui a 13 de Novembro de 2019 

Fig. 2 - Jorge Branco no decurso da 2.ª Feira de Coleccionismo de Estremoz,
em 21 de Junho de 1997.

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