quarta-feira, 13 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque


Fig. 1 - São Roque (Março de 2020). Ricardo Fonseca (1986- ).

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. A sua passagem ficou assinalada por marcas profundas, tanto na malha urbana como no mundo rural.
A necessidade de contenção sanitária da pandemia obrigou ao confinamento social, alterou as relações interpessoais e a vida comunitária, o que teve reflexo no estado psicológico, no comportamento social, no trabalho, no culto religioso, nas actividades lúdicas, culturais e desportivas, nos transportes, no turismo, no rendimento de cada um e na economia em geral. De futuro, nada será como dantes e nós próprios não seremos os mesmos. A tragédia colectiva que temos vivido, constituirá assim um marco de referência na História da Humanidade.
Os barristas de Estremoz têm as suas oficinas fechadas e sem escoamento de produção. Porém, continuam a modelar o barro, com esperança no amanhã que tarda, mas que crêem que há de vir.
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderia e deveria ser modelado um Boneco que perpetuasse no barro, a pandemia que atravessamos. Pensei imediatamente na figura de São Roque, invocado pela comunidade católica, como Santo Protector contra as epidemias e que não figurava ainda na galeria das imagens devocionais produzidas pelos barristas de Estremoz.
Telefonicamente, lancei ao barrista Ricardo Fonseca o repto de modelar a figura daquele Santo, o que ele aceitou sem hesitações, como é seu timbre. Dado que eu já investigara os atributos iconográficos a que deve obedecer uma representação de São Roque, enumerei-lhe esses atributos, indiquei-lhe as dimensões pretendidas e discutimos pormenores e cores. Foi uma discussão importante, já que eu era conhecedor da humildade e da simplicidade que são apresentados como apanágio de vida do Santo, o que excluía à partida uma representação barroca do mesmo, a qual seria ostensiva, desajustada e como tal desaconselhada. 
Como fonte de inspiração documental, enviei por email ao barrista a imagem de uma gravura de São Roque datada de 1800 (Fig. 1), executada por Frei Mattheus da Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.”
Como é habitual no Ricardo, levou o seu tempo para satisfazer a encomenda. Lá diz o rifão: “Sem tempo nada se faz”. O resultado está à vista (Fig. 2). É caso para dizer: Missão cumprida!
Biografia
Roque terá nascido cerca de 1350 na cidade francesa de Montpellier. De acordo com a lenda, a pele do peito ostentava um sinal cruciforme avermelhado que era presságio de que viria a ser Santo.
Originário de uma família nobre, o seu pai, Jean Roch de la Croix era senhor de vastos domínios e desempenhava funções governativas na cidade. Sua mãe, Libéria, era natural da Lombardia.
Baptizado no santuário de Notre Dame des Tables, a sua infância decorreu num ambiente profundamente cristão.
Órfão de pai e mãe muito jovem, a sua educação foi confiada a um tio. Provavelmente terá estudado com padres dominicanos antes de cursar medicina na universidade local, ainda que não concluísse os estudos.
Desde muito cedo levou uma vida ascética e praticou a caridade. Ao atingir a maioridade por volta dos 20 anos, repartiu os seus bens entre os pobres e confiou uma pequena parte ao tio. Ter-se-á juntado à Ordem Terceira de São Francisco, envergado o traje de peregrino e partido em direcção a Roma.
Provavelmente terá tomado a rota francesa em direcção a Roma e ao chegar à comuna de Acquapendente, próxima de Viterbo, encontrou-a minada pela peste. Ofereceu-se de imediato como voluntário na assistência aos doentes, pondo em prática a formação médica que recebera. Usando o bisturi associado ao sinal da cruz, terá operado curas milagrosas. Por lá terá permanecido três meses, visitando depois Cesena, Mântua, Modena, Parma e muitas outras cidades e aldeias, nas quais ajudou e curou os doentes.
Terá permanecido vários anos em Roma, onde terá rezado diariamente sobre o túmulo de São Pedro e curado vítimas da peste no Hospital do Espírito Santo, o que levou o Papa Urbano V a conceder-lhe a indulgência plenária.
No regresso a Montpellier e quando prosseguia a sua obra de assistência em Piacenza, foi ele próprio atingido pela praga. Para não contagiar ninguém, isolou-se numa floresta próxima, onde de acordo com a lenda, teria morrido de fome se um cão não lhe trouxesse diariamente um pão retirado da mesa do dono e se da terra não tivesse brotado uma fonte de água para saciar a sede.
Miraculosamente curado, regressou a Montpellier que na época se encontrava em guerra. Tomado por espião, foi detido e levado para a prisão, onde passou 5 anos até morrer a 16 de Agosto de 1379, ainda jovem, abandonado e esquecido por todos. De acordo com a lenda, só revelou a sua identidade a um padre, um dia antes da sua morte.
O primeiro milagre póstumo que lhe é outorgado foi a cura do seu carcereiro, o qual coxeava e cuja perna foi milagrosamente curada ao tocar com ela no corpo de Roque, para averiguar se estaria realmente morto.
Só após a morte foi reconhecido pela cruz marcada no peito e piedosamente sepultado por um tio, embora os seus restos mortais tenham sido transladados para Veneza em 1483. Devido à fama dos inúmeros milagres que operara durante a sua permanência em Itália, as suas relíquias foram distribuídas pelas cidades de Antuérpia, Arles e Lisboa.
Canonização de São Roque
Entre 1414 e 1418 decorreu em Constança, o 16.º Concílio Ecuménico da Igreja Católica, que tinha como principal objectivo acabar com o cisma papel, já que havia três papas rivais, clamando legitimidade (Bento XIII, João XXIII e Gregório XII). A peste ameaçava então a Europa, pelo que os bispos conciliares autorizaram preces e orações populares em honra de São Roque. Consta-se que terão sido atendidos e o contágio pelo flagelo cessou. São Roque passou a ser objecto de intensa devoção popular que conduziu à sua canonização, sem ocorrer decisão eclesiástica nesse sentido.
Festa litúrgica
Os católicos crêem que todos aqueles que recorrem com fervor à intercessão de São Roque, são atendidos nas suas súplicas, daí que seja considerado um Santo Protector contra as epidemias. A sua memória litúrgica é celebrada a 16 de Agosto, dia da sua morte. Os ofícios eclesiásticos a serem recitados nesse dia, foram aprovados pelo papa Urbano VIII.
Expansão do culto de São Roque
O culto de São Roque inicia-se em Itália e dali estende-se à França e conquista a Europa através da Bélgica e dos Países Baixos. Atravessa o Oceano Atlântico e alcança as colónias portuguesas e espanholas na América do Sul, prolonga-se a África e propala-se aos EUA e ao Canadá.
O seu nome passa a integrar a divisão administrativa, a toponímia, a orografia, a hidrografia e a heráldica. É dado o seu nome a igrejas, capelas, ermidas e nichos. A sua memória é perpetuada em esculturas de pedra, madeira e outros materiais, pinturas, painéis de azulejos e vitrais. Através dos séculos é referido ou é objecto de inúmeras obras literárias. No romance “A peste” (1947), Albert Camus conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade no meio da peste que assolava a cidade de Oran na Argélia. Aí, as autoridades eclesiásticas decidiram lutar contra a epidemia, organizando uma semana de preces colectivas a terminar num domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque.
O culto de São Roque está ligado às suas virtudes miraculosas e exalta o Santo como figura carismática que transmite na actualidade uma mensagem universal de generosidade e de paz. O seu culto tem assim uma dimensão internacional e intercontinental.
Atributos iconográficos
Habitualmente é representado como jovem, envergando o traje característico dos peregrinos de Santiago, constituído por uma túnica e capa, ambas de cor castanhas. Na aba da capa ostenta uma ou mais vieiras. Usa um chapéu de abas largas. É portador de um bordão, do qual pende uma cabaça. Uma das pernas está desnudada para serem visíveis os ferimentos da peste. É acompanhado por um cão, muitas vezes com um pão na boca.
Simbolismo dos atributos
Para a comunidade católica, os atributos iconográficos de São Roque encerram em si um profundo simbolismo: - O TRAJE CASTANHO – É a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza de São Roque, ao optar por distribuir os seus bens aos pobres e tornar-se peregrino e missionário. - O BORDÃO – Serve de apoio e dá segurança nas caminhadas. São Roque foi peregrino e missionário, pelo que é portador de um bordão que simboliza ainda a palavra e a presença de Deus, nas quais se apoiava. - A CABAÇA – Serve para transportar água numa caminhada e evoca a fonte e a água que São Roque bebeu até ficar curado. Simboliza também o dom de cura concedido pelo Espírito Santo que agia através de São Roque. - A FERIDA NA PERNA – Simboliza o sofrimento de São Roque no decurso da sua doença. Simboliza igualmente a doença, a dor e o sofrimento humano. - O CÃO AO LADO DE SÃO ROQUE - Lembra o cão usado por Deus para socorrer São Roque no decurso da doença. Expressa ainda a providência divina que pelos mais diferentes meios, concede o que é preciso. É igualmente um incentivo para que se confie na providência divina, que não abandona ninguém e está atenta às suas necessidades.

Estremoz, Março de 2020
(Jornal E nº 246, de 14-05-2020)

Fig. 2 - Gravura de São Roque datada de 1800, executada por Frei Mattheus da
Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que
ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus
no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa
sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.” Imagem
recolhida com a devida vénia na Irmandade da Misericórdia e de São Roque, de Lisboa.

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