Fig. 1 – Passeio de Santo António com o Menino
Jesus (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.
Santo António de Lisboa é um Santo venerado pela
Igreja Católica, seguramente o Santo que é objecto da mais intensa devoção
popular. O seu culto foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da Ordem de São
Francisco de Assis, sediados no Convento de São Francisco, desde os primórdios
da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados
de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Daí não ser de admirar que a iconografia antonina
inclua exemplares da barrística popular estremocense, desde os sécs. XVIII-XIX.
Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente
a envergar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura,
acompanhado do Menino Jesus, o que simboliza a intimidade de Santo António com
Cristo. Em geral, o Menino Jesus é mostrado de três modos diferentes: - SOBRE A
BÍBLIA: Significa que Santo António anunciava Jesus Cristo através de inúmeras
citações do Evangelho; - AO COLO DE SANTO ANTÓNIO: Traduz a profunda intimidade
do Santo com Jesus, fonte da sabedoria e dos dons que nele se manifestavam; -
MOSTRADO AO SANTO PELA VIRGEM MARIA: Revela a intensa devoção de Santo António
pela Virgem.
Existem ainda iconografias antoninas muito
específicas que têm a ver com os Milagres de Santo António. Tal é caso do
Sermão de Santo António aos peixes, do qual irei falar a seguir.
Sermão de Santo António aos peixes
Alguma iconografia de Santo António representa o
"Sermão de Santo António aos peixes". Vejamos o que nos diz o Padre
António Vieira (1608-1694) no seu “Sermão de Santo António aos peixes”
publicado pela primeira vez em 1682:
“Pregava Santo António em Itália, na cidade de
Rimini [1], contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de
entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas
chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não
tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria
o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés
descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada
de terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia?
Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a
covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele, não se rendeu
a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório,
mas não desistiu da sua doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a
terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem
ouvir os homens, ouçam-me os peixes! Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes
do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os
peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com
as cabeças de fora da água, António pregava, e eles ouviam”.
É o próprio Camões (c. 1524-1580) que relata: “Com que os mudos peixes / saem ouvindo ao
ar aberto.” [2]. De resto é bem conhecida a quadra popular: "Santo António Português,/Quando foi
pregar ao mar,/Até os peixes na água,/Se puseram a escutar!" [3]
Passeio de Santo António com o Menino Jesus
A temática antonina traz-me à mente os versos do “Passeio
de Santo António”, de Augusto Gil (1873-1929), magistralmente declamados pelo
saudoso actor João Villaret (1913-1961). Os versos incluídos no livro de poemas
“Luar de Janeiro” (1909), mostram a dimensão humana e ingénua com que são
tratados os personagens Santo António e Menino Jesus. Perante alguma
impertinência do Menino Jesus, Santo António ameaça fazer queixas à Mãe:
“Corado como as vestes dos cardeais, / Achou esta saída redentora: / - Se o
Menino Jesus pergunta mais, / ... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!”. O poema
é todo ele revelador da grande intimidade entre Santo António e o Menino Jesus.
Criações de Joana Oliveira
Alexandre Correia, porventura o maior coleccionador
português de Santo António, facultou-me as imagens de duas criações da barrista
Joana Oliveira, que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção
de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio
dos Marqueses de Praia e Monforte. Essas imagens são “Passeio de Santo António
com o Menino Jesus”(Fig. 1) e Sermão de Santo António aos peixes” (Fig. 2). De
cada uma delas vou falar em particular.
Passeio de Santo António com o Menino Jesus (Fig. 1)
A tonsura na cabeça de
Santo António
frisa a sua castidade. A auréola na cabeça de Santo António e do Menino Jesus,
sublinha a santidade de ambos.
Santo António enverga o hábito franciscano
castanho, com o cordão à cintura. Na mão direita segura uma Bíblia de capa
castanha que comprime contra o peito. Parece ir dar a mão ao Menino Jesus, que
veste túnica azul clara e que segura na mão esquerda três lírios amarelos
(Porventura uma alegoria à Santíssima Trindade, já que o amarelo traduz a
luz.). Qualquer deles calça sandálias castanhas com tiras.
Naturalmente que a cor das vestes tem um
significado profundamente simbólico. O castanho de Santo António é a cor da
terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza que são apanágio dos
franciscanos. O azul claro do Menino Jesus representa a espiritualidade, a
eternidade, a paz, a pureza e o desapego da vida mundana.
A representação é muito feliz. Sugere: Intimidade
(Caminham juntos); - Confiança mútua (Santo António e o Menino vão praticamente
de mão dadas, sem contudo se tocarem); - Cumplicidade (Olham um para o outro);
- Comunicação (Parecem falar entre si); - Amor aos Evangelhos (Santo António
comprime a Bíblia contra o peito); - Partilha (O Menino transporta os lírios,
atributo de Santo António).
De registar que o conjunto não assenta numa peanha.
Esta começou por ser usada pelos barristas populares de Estremoz, os quais
utilizaram como modelo imagens devocionais de escultores eruditos em madeira,
que eram objecto de culto nas nossas igrejas e conventos. Todavia libertaram-se
dessa "canga". A peanha tem sido utilizada por quem o entende fazer,
mas há barristas como José Moreira, Fátima Estróia e Maria Luísa da Conceição,
que embora tenham modelado imagens devocionais com peanha, perceberam que esta
era dispensável e são conhecidos trabalhos seus (eu próprio os tenho), em que
as imagens de Santos não assentam nem em peanhas nem em andores. Nunca passou
pela cabeça de ninguém, dizer que não são imagens devocionais ou que não possam
ser considerados Bonecos de Estremoz. Tal é o caso, que aqui registo e saúdo.
As duas figuras assentam numa base quadrangular.
Sendo o quadrado símbolo da perfeição e da estabilidade, a geometria da base
poderá constituir uma alegoria aos quatro Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e
João). Por uma questão técnica, os vértices do quadrado foram cortados em
bisel, para conferir mais solidez à base. Esta é de cor verde, cromatismo
ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade. A
orla da base é castanha, cor do hábito do Santo. No seu conjunto, as cores
verde e castanha da base reforçam a sobriedade do conjunto.
Voltando à peanha cujo uso é advogado por alguns,
julgo não ser despropositado tecer algumas considerações suplementares. Na sua
imponência ornamental, a peanha configura o afastamento do devoto em relação à
imagem devocional. Pelo contrário, uma imagem devocional sem peanha traduz a
aproximação do devoto em relação à imagem devocional, já que o Santo fica no
plano térreo do devoto. Por outras palavras, trata-se de uma abordagem
artística mais “terra a terra”, que a meu ver humaniza mais a iconografia, sem
todavia a dessacralizar.
Sermão de Santo António aos peixes (Fig. 2)
Santo António enverga o hábito franciscano castanho
com terço e cordão à cintura e calça sandálias castanhas com tiras. A tonsura
na cabeça salienta a sua castidade, mas a cabeça não apresenta auréola por a
representação se referir a um episódio da sua vida, antes de ter sido
canonizado.
A figura do Santo está assente num plano mais
elevado em relação ao nível do mar. Os pés pisam aquilo que configura ser rocha
cinzenta, provável alegoria à dor sentida pelo Santo, por não ser escutado
pelos homens e se ver forçado a pregar aos peixes. Junto aos pés, dois lírios
branco e lilás, provável alegoria à inocência do Santo. Este, de boca
aberta, prega aos peixes olhando para o céu como se recebesse a palavra de
Deus. O seu sermão é acompanhado de linguagem gestual.
Aos pés do Santo rebentam as ondas do mar azul,
repletas de espuma. Da água emergem peixes (em número de quatro), que parecem
escutar as palavras do Santo. Será uma alegoria às quatro virtudes fundamentais
(Sabedoria, Fortaleza, Temperança e Coragem), referidas por Platão (428/427 –
348/347 a.C.), na “República”?
Epílogo
Os trabalhos da Joana Oliveira são trabalhos
expressivos, reveladores de forte personalidade, sensibilidade e bom gosto que
se traduzem em marcas identitárias muito próprias, que a maioria das vezes só
são conseguidas ao fim de muito tempo de traquejo, após os barristas se
terem conseguido libertar da influência daqueles que os precederam e/ou
ensinaram, deixando de imitar ou tentar imitar a sua produção, não o
conseguindo muitas vezes. Com o trabalho da Joana Oliveira, a Barrística
Popular de Estremoz está de parabéns e ela própria também. Pois
claro!
O seu caminho deverá ser sempre uma procura, com
prazer no caminho e na descoberta. E com tal procedimento é sempre possível
manter uma estrita fidelidade ao modo de produção, consensualmente reconhecido
como "sui generis" e de Estremoz.
[1] - Rimini, cidade do NE de Itália, na região de
Emília, província de Forli, situada na costa do Adriático e na foz do Mareccha,
a 44º 3’
43" de latitude Norte. A cidade de Rimini teve origem na antiga Ariminum,
fortaleza e posto de grande importância política e militar no período romano.
Já na Idade Média, Rimini foi porto de importância e domínio dos Malatesta,
senhores cruéis e requintados mecenas. Actualmente é uma das maiores e mais
famosas estações balneares de Itália.
[2] - CAMÕES. Écogla 6.ª das Rimas Várias.
[3] - Quadra recolhida por Armando de Mattos (ver
Bibliografia).
BIBLIOGRAFIA
- MATOS, Hernâni António Carmelo de. Bilhetes-Postais Comemorativos do VII
Centenário do Nascimento de Santo António de Lisboa in Catálogo da
Inteiromax - Eça de Queiroz 2000, Póvoa de Varzim, Agosto de 2000.
- MATTOS, Armando de. Santo António nas Tradições Populares.
Porto, 1937.
Hernâni Matos
Fig. 2 - Sermão de Santo António aos peixes (2020). Joana
Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.
Parabens Joana!
ResponderEliminarParabens Estremoz por tão nobre formação, e , divulgação dos seus Artesãos/Artistas.
Estremoz fica mais rico patrimonialmente, com a perpetuação,e, divulgação das suas seculares manifestações artísicas de Arte Popular, Barrística de Estremoz.
Parabens ao grande sábio e divulgador do Universo de Estremoz.
Elizabete:
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Cumprimentos.
NOTA - Poderá encontrar mais textos sobre os trabalhos da Joana, aqui:
https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2020/07/novos-barristas-de-estremoz.html