quinta-feira, 28 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: Peralta e Sécia


Peralta e sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. A ideia começou por ser posta em prática, através da criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de São Roque, tido como Santo Protector contra as epidemias e que não havia ainda sido modelado pelos barristas de Estremoz.
A ideia inicial tinha pernas para andar e podia estender-se noutras direcções. Foi assim que pensei que para além daquela imagem devocional, podiam ser criados Bonecos que retratassem em contexto social a resposta possível à pandemia. Em termos de prevenção, uma das atitudes a tomar passa pelo uso de máscaras comunitárias em ambientes fechados. Uma opção possível passava assim pela modelação dum Boneco usando máscara. Todavia, a pandemia não escolhe nem sexo, nem idade, nem etnias. Haveria pois que confeccionar dois Bonecos, um referente ao sexo masculino e outro ao sexo feminino. Optei por representações de adulto de idade indeterminada e como havia que escolher uma cor para a pele, escolhi a branca, por ser a cor de pele dominante em Portugal.
Bonecos da Tradição ou Bonecos da Inovação?   
Chegado a este ponto, tinha duas opções possíveis: serem recriados Bonecos da Tradição ou inovar, criando novos Bonecos. Que fazer então?
Estamos em presença de tempos que são tempos de mudança, o que me levou a lembrar Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.”; “Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança: / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem (se algum houve) as saudades.”
Fui levado a concluir que seria mais interessante e preferível, recriar Bonecos da Tradição, já que permitiria aprofundar e enriquecer o seu conjunto. Cada um deles encerra em si as marcas de identidade próprias dos barristas que os criaram e lhes deram alma e vida. Os Bonecos a recriar agora passariam ainda a ostentar marcas que os associavam temporalmente ao período da pandemia.
Que Bonecos da Tradição?   
Chegado aqui, tinha novas opções a fazer que passavam pela escolha dos Bonecos da Tradição que iriam ser recriados.
As “Figuras de presépio” e as “Imagens devocionais” foram excluídas à partida do conjunto das hipóteses a considerar, dada a sua função simbólica.
Restavam então as figuras que desempenham uma função decorativa: as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, as “Figuras que têm a ver com a realidade local”, as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, as “Figuras de negros”, as “Figuras destinadas a assinalar períodos festivos” e as “Figuras satíricas”. Obviamente que estes três últimos tipos de figuras foram eliminados imediatamente, por a sua utilização carecer de sentido face aos meus propósitos. O mesmo se passou com as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, já que isso seria limitar a representação a um contexto rural, bem como as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, já que a importância do uso da máscara sobressai na interacção social. Restavam então as “Figuras que têm a ver com a realidade local”. Por não serem socialmente predominantes, excluíram-se as figuras do “Sector militar” e do “Domínio religioso”. Restaram então as figuras de “Âmbito civil”. Chegado aqui, optei por escolher a imagem do “Peralta” e da “Sécia” (esta última vulgarmente designada por “Senhora de Pézinhos”).
A escolha das cores
Havia agora que definir as cores, convindo não esquecer que estamos em Portugal, “a ditosa pátria minha amada”, no dizer de Camões. As cores nacionais são as cores da Bandeira Nacional adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. O verde-escuro e o vermelho são as cores fundamentais e o amarelo e o branco são cores secundárias.
Pensei então que o traje do “Peralta” e da “Sécia” deveriam sublinhar simultaneamente a diferença e a complementaridade entre homem e mulher. Escolhi para a roupa feminina a cor vermelha, ornada de verde-escuro e para a roupa masculina, a cor verde-escuro, ornada de vermelho. Os chapéus deveriam ser ambos amarelos.
O simbolismo das cores
As cores da bandeira nacional têm um significado simbólico diversificado, que pode assim ser sistematizado: - VERMELHO - associado à paixão, à energia, à coragem e à revolução; - VERDE – ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade; - AMARELO - traduz a luz, o calor, o optimismo, a alegria, a felicidade e a prosperidade; - BRANCO – simboliza a paz, a espiritualidade, a virtude, a inocência e a virgindade.
A materialização duma ideia
Contactei as Irmãs Flores expondo em traços sumários a minha ideia de ver modeladas as figuras do ”Peralta” e da “Sécia“, usando máscaras de protecção contra a pandemia. Dei também conta das cores que gostava que fossem utilizadas, para situar as figuras em contexto português. Disseram-me imediatamente que podiam modelar as imagens pretendidas e que a combinação de cores que eu propunha, era por elas usada com frequência.
As Irmãs Flores interpretaram a seu modo o que eu propusera e a sua mestria criou duas figuras muito belas, de cunho verdadeiramente popular e que correspondem inteiramente aquilo que eu pretendia (Fig. 1 e Fig. 2).
Peralta
Figura antropomórfica masculina, de pé, com as mãos na anca e sapatos negros. Na cabeça, o cabelo é castanho e está parcialmente coberto por chapéu amarelo, de aba larga e virada para cima.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas.
Traja um fato verde-escuro. As calças têm uma bainha vermelha. O casaco tem uma orla e punhos vermelhos. A gola é igualmente vermelha mas decorada com seis flores, que apresentam uma corola verde e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, verdes e amarelas, que se alternam.
O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por quatro botões amarelos, dois de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura.
À volta do pescoço tem enrolado um lenço amarelo, cruzado à frente e com as pontas a mergulhar dentro do casaco.
A figura assenta numa base quadrangular com os vértices cortados em bisel e pintalgada de branco, amarelo e zarcão. Verticalmente, a orla da base é cor de zarcão.
Sécia
Figura antropomórfica feminina, de pé e com as mãos na anca. Na cabeça, o cabelo é castanho, enrolado atrás em forma de troço e está parcialmente coberto por um chapéu amarelo, levantado à frente e ornamentado por três plumas igualmente amarelas mas com três pintas vermelhas em cada ponta, separadas entre si por traços longitudinais a verde.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas, das quais pendem arcadas amarelas.
Enverga um conjunto de saia e casaco vermelhos. A saia é comprida e encontra-se decorada na orla inferior por aquilo que configura ser um bordado constituído por meias folhas lanceoladas, alternadamente verdes e amarelas, separadas por pétalas brancas. Ao fundo da saia, à frente, espreitam os sapatos pretos usados pela figura.    
O casaco é curto, justo ao corpo e tem uma orla e punhos verdes. A gola é igualmente verde, decorada com seis flores com corola vermelha e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, vermelhas e amarelas, que se alternam. O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por seis botões amarelos, três de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura. A gola é fechada à frente por um botão amarelo maior que os restantes.
Origens históricas                              
O “Peralta” e a “Sécia” eram os elegantes portugueses dos sécs. XVIII e XIX, que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.
No Museu Municipal de Estremoz existem exemplares daquelas figuras identificadas como sendo do séc. XIX. A sua produção foi retomada nos anos 30 do séc. XX, graças à acção do escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, que atribuiu a si próprio a missão de recuperação da tradição de manufactura dos Bonecos de Estremoz, extinta desde 1921. Para tal, utilizou primeiro como instrumento primordial dessa recuperação a velha barrista Ana das Peles (1869-1945) e depois como instrumento de continuidade dessa recuperação, Mariano da Conceição – o Alfacinha (1903-1959), mestre de olaria naquela Escola.
Estremoz, Abril de 2020
(Jornal E nº 247, de 28-05-2020)


Peralta na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.

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