Peralta e sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.
Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma
pandemia de COVID 19. Como coleccionador e investigador da barrística
popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser
modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. A
ideia começou por ser posta em prática, através da criação pelo barrista
Ricardo Fonseca da figura de São Roque, tido como Santo Protector contra as
epidemias e que não havia ainda sido modelado pelos barristas de Estremoz.
A ideia inicial tinha pernas para andar e podia
estender-se noutras direcções. Foi assim que pensei que para além daquela
imagem devocional, podiam ser criados Bonecos que retratassem em contexto
social a resposta possível à pandemia. Em termos de prevenção, uma das atitudes
a tomar passa pelo uso de máscaras comunitárias em ambientes fechados. Uma
opção possível passava assim pela modelação dum Boneco usando máscara. Todavia,
a pandemia não escolhe nem sexo, nem idade, nem etnias. Haveria pois que
confeccionar dois Bonecos, um referente ao sexo masculino e outro ao sexo feminino.
Optei por representações de adulto de idade indeterminada e como havia que
escolher uma cor para a pele, escolhi a branca, por ser a cor de pele dominante
em Portugal.
Bonecos da Tradição ou Bonecos da Inovação?
Chegado a este ponto, tinha duas opções possíveis:
serem recriados Bonecos da Tradição ou inovar, criando novos Bonecos. Que fazer
então?
Estamos em presença de tempos que são tempos de
mudança, o que me levou a lembrar Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de
mudança, Tomando sempre novas qualidades.”; “Continuamente vemos novidades, /
Diferentes em tudo da esperança: / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do
bem (se algum houve) as saudades.”
Fui levado a concluir que seria mais interessante e
preferível, recriar Bonecos da Tradição, já que permitiria aprofundar e
enriquecer o seu conjunto. Cada um deles encerra em si as marcas de identidade
próprias dos barristas que os criaram e lhes deram alma e vida. Os Bonecos a
recriar agora passariam ainda a ostentar marcas que os associavam temporalmente
ao período da pandemia.
Que Bonecos da Tradição?
Chegado aqui, tinha novas opções a fazer que
passavam pela escolha dos Bonecos da Tradição que iriam ser recriados.
As “Figuras de presépio” e as “Imagens devocionais”
foram excluídas à partida do conjunto das hipóteses a considerar, dada a sua
função simbólica.
Restavam então as figuras que desempenham uma
função decorativa: as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades
alentejanas”, as “Figuras que têm a ver com a realidade local”, as “Figuras
intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, as “Figuras de negros”,
as “Figuras destinadas a assinalar períodos festivos” e as “Figuras satíricas”.
Obviamente que estes três últimos tipos de figuras foram eliminados
imediatamente, por a sua utilização carecer de sentido face aos meus
propósitos. O mesmo se passou com as “Figuras da faina agro-pastoril nas
herdades alentejanas”, já que isso seria limitar a representação a um contexto
rural, bem como as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano
doméstico”, já que a importância do uso da máscara sobressai na interacção
social. Restavam então as “Figuras que têm a ver com a realidade local”. Por
não serem socialmente predominantes, excluíram-se as figuras do “Sector
militar” e do “Domínio religioso”. Restaram então as figuras de “Âmbito civil”.
Chegado aqui, optei por escolher a imagem do “Peralta” e da “Sécia” (esta
última vulgarmente designada por “Senhora de Pézinhos”).
A escolha das cores
Havia agora que definir as cores, convindo não
esquecer que estamos em Portugal, “a ditosa pátria minha amada”, no dizer de
Camões. As cores nacionais são as cores da Bandeira Nacional adoptada pela
República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. O verde-escuro e o
vermelho são as cores fundamentais e o amarelo e o branco são cores
secundárias.
Pensei então que o traje do “Peralta” e da “Sécia”
deveriam sublinhar simultaneamente a diferença e a complementaridade entre
homem e mulher. Escolhi para a roupa feminina a cor vermelha, ornada de
verde-escuro e para a roupa masculina, a cor verde-escuro, ornada de vermelho.
Os chapéus deveriam ser ambos amarelos.
O simbolismo das cores
As cores da bandeira
nacional têm um significado simbólico diversificado, que pode assim ser
sistematizado: - VERMELHO - associado à paixão, à energia, à coragem e à
revolução; - VERDE – ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à
esperança e à liberdade; - AMARELO - traduz a luz, o calor, o
optimismo, a alegria, a felicidade e a prosperidade; - BRANCO – simboliza a
paz, a espiritualidade, a virtude, a inocência e a virgindade.
A materialização duma ideia
Contactei as Irmãs Flores
expondo em traços sumários a minha ideia de ver modeladas as figuras do
”Peralta” e da “Sécia“, usando máscaras de protecção contra a pandemia. Dei
também conta das cores que gostava que fossem utilizadas, para situar as
figuras em contexto português. Disseram-me imediatamente que podiam modelar as
imagens pretendidas e que a combinação de cores que eu propunha, era por elas
usada com frequência.
As Irmãs Flores
interpretaram a seu modo o que eu propusera e a sua mestria criou duas figuras
muito belas, de cunho verdadeiramente popular e que correspondem inteiramente
aquilo que eu pretendia (Fig. 1 e Fig. 2).
Peralta
Figura antropomórfica masculina, de pé, com as mãos
na anca e sapatos negros. Na cabeça, o cabelo é castanho e está parcialmente
coberto por chapéu amarelo, de aba larga e virada para cima.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois
arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara
azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é
visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às
orelhas.
Traja um fato verde-escuro. As calças têm uma
bainha vermelha. O casaco tem uma orla e punhos vermelhos. A gola é igualmente
vermelha mas decorada com seis flores, que apresentam uma corola verde e oito
pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si
por faixas transversais à gola, verdes e amarelas, que se alternam.
O casaco tem à frente uma abotoadura constituída
por quatro botões amarelos, dois de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta
na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura.
À volta do pescoço tem enrolado um lenço amarelo,
cruzado à frente e com as pontas a mergulhar dentro do casaco.
A figura assenta numa base quadrangular com os
vértices cortados em bisel e pintalgada de branco, amarelo e zarcão.
Verticalmente, a orla da base é cor de zarcão.
Sécia
Figura antropomórfica feminina, de pé e com as mãos
na anca. Na cabeça, o cabelo é castanho, enrolado atrás em forma de troço e
está parcialmente coberto por um chapéu amarelo, levantado à frente e
ornamentado por três plumas igualmente amarelas mas com três pintas vermelhas
em cada ponta, separadas entre si por traços longitudinais a verde.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois
arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara
azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é
visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às
orelhas, das quais pendem arcadas amarelas.
Enverga um conjunto de saia e casaco vermelhos. A
saia é comprida e encontra-se decorada na orla inferior por aquilo que
configura ser um bordado constituído por meias folhas lanceoladas,
alternadamente verdes e amarelas, separadas por pétalas brancas. Ao fundo da
saia, à frente, espreitam os sapatos pretos usados pela figura.
O casaco é curto, justo ao corpo e tem uma orla e
punhos verdes. A gola é igualmente verde, decorada com seis flores com corola
vermelha e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão
separadas entre si por faixas transversais à gola, vermelhas e amarelas, que se
alternam. O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por seis botões
amarelos, três de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal
dois botões amarelos, à altura da cintura. A gola é fechada à frente por um
botão amarelo maior que os restantes.
Origens históricas
O “Peralta” e a “Sécia” eram os elegantes
portugueses dos sécs. XVIII e XIX, que envergavam trajos garridos com demasiado
apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram
pessoas afectadas não só no trajar, como no
andar e no comportamento.
No Museu Municipal de Estremoz existem exemplares
daquelas figuras identificadas como sendo do séc. XIX. A sua produção foi
retomada nos anos 30 do séc. XX, graças à acção do escultor José Maria de Sá
Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, que
atribuiu a si próprio a missão de recuperação da tradição de manufactura dos
Bonecos de Estremoz, extinta desde 1921. Para tal, utilizou primeiro como
instrumento primordial dessa recuperação a velha barrista Ana das Peles
(1869-1945) e depois como instrumento de continuidade dessa recuperação,
Mariano da Conceição – o Alfacinha (1903-1959), mestre de olaria naquela
Escola.
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