quinta-feira, 26 de novembro de 2020

O todo e as partes

 
Fig. 1 - Pastor à fogueira com rebanho. Sabina da Conceição (1921-2005). 

Preâmbulo
O presente texto tem por finalidade efectuar a análise comparativa de figuras singulares e de figuras compostas da barrística popular de Estremoz, que integram um elemento comum, mas que diferem na sua composição.

Do singular para o composto
O PASTOR DE TARRO E MANTA (Fig. 2) é uma figura que constitui um registo etnográfico do Além Tejo de antanho, que habitualmente é caracterizada através de atributos, uns que têm a ver com o vestuário (pelico, safões, chapéu aguadeiro e botas) e outros que têm a ver com utensílios do dia a dia (cajado, manta e tarro). Trata-se de uma figura singular da faina agro-pastoril, descontextualizada do meio físico em que trabalha (o campo), do objecto do seu trabalho (gado ovino) e de auxiliares do trabalho (cão).
Após a revitalização da produção de Bonecos de Estremoz efectuada por José Maria de Sá Lemos (1892-1971) nos anos 30 do séc. XX, tanto Ana das Peles (1869-1945) como Mariano da Conceição (1903-1959), modelaram a figura singular (PASTOR DE TARRO E MANTA).

Fig. 2 - Pastor de tarro e manta. Sabina da Conceição (1921-2005).

Após a morte de Mariano, sua irmã Sabina da Conceição (1921-2005) dá continuidade à manufactura dos Bonecos de Estremoz, mas para além das figuras confeccionadas por seu irmão produz outras[1], entre as quais o PASTOR À FOGUEIRA COM REBANHO (Fig. 1), na qual a figura da faina agro-pastoril está devidamente contextualizada.

Do composto para o singular
A SENHORA A SERVIR O CHÁ (Fig. 3) é uma figura que pertence ao conjunto dos chamados Bonecos da Tradição. Trata-se da representação simplificada duma cena tradicional da vida íntima e social da mulher burguesa ou aristocrata. A senhora traja à moda do séc. XIX, tem a mão esquerda apoiada na anca e a mão direita pegando num bule assente numa mesa de pé de galo (3 pés), de tampo circular. Sobre este, encontram-se ainda 3 chávenas, 3 bolos e 1 açucareiro. Tudo isto constitui atributos da figura.

Fig. 3 - Senhora a servir o chá. José Moreira (1926-1991).

A SENHORA A SERVIR O CHÁ é uma figura absolutamente contextualizada, que correspondia a um tipo de convívio, tradição corrente nos lares portugueses de classe média ou alta, no qual por uma questão de cortesia e arte de bem receber, competia à dona da casa, a missão de servir o chá às suas visitas. Apesar de ter modelado esta figura, José Moreira (1926-1991), resolveu descontextualizá-la[2] e num acto que presumo de conferir maior importância à figura humana, criou a SENHORA COM BULE (Fig. 4).

 Fig. 4 - Senhora com bule. José Moreira (1926-1991).

Conclusão
Em qualquer dos casos anteriores ocorreu inovação em relação àquilo que se convencionou chamar Bonecos da Tradição. No primeiro caso criou-se um todo, complementando uma das partes já existente. No segundo caso, extraiu-se uma parte de um todo que lhe era anterior.
Em qualquer dos casos, alargaram-se os horizontes à barrística, como é próprio da inovação. O que se regista e saúda.
 

[1] Das figuras que não foram modeladas tanto por Ana das Peles como por Mariano da Conceição, mas foram modeladas por Sabina da Conceição, destaco entre outras: PASTOR À FOGUEIRA COM REBANHO, PASTOR COM REBANHO JUNTO À CHOÇA, PORQUEIRO E VARA DE PORCOS, SEMEADOR.
[2] O caso apresentado não é único. José Moreira criou a FIANDEIRA, descontextualizando a MULHER DOS PERUS, a MULHER DAS GALINHAS e a MULHER DOS CARNEIROS.

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