Fig. 1 - Ana Catarina Grilo (1974- ), pintando no seu atelier.
À laia de introdução
O gosto pelos Bonecos de Estremoz está-me na massa
do sangue. Daí que para além de coleccionador e investigador da História dos
mesmos, seja um contador de estórias que procura modelar com palavras o que lhe
vai na alma. Tal é fruto de observar e reflectir sobre criações, às quais a
magia das mãos dos barristas, conferiram forma, cor, movimento e significado. E
porque não vida? Vida que para mim passa também a ter mais sentido, já que os
Bonecos me refrescam e revitalizam o ser.
Ana Catarina Grilo (1974- ) (Fig. 1 e Fig. 5) é uma barrista que frequentou o
Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano
transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte.
“Senhora de pezinhos” (Fig. 2), São João Baptista menino (Fig. 3) e “Primavera de arco” (Fig. 4) são três figuras tradicionais da barrística popular estremocense, que a nova barrista recriou e a meu ver muito bem. Vou falar de cada uma delas em particular.
“Senhora de pezinhos” (Fig. 2), São João Baptista menino (Fig. 3) e “Primavera de arco” (Fig. 4) são três figuras tradicionais da barrística popular estremocense, que a nova barrista recriou e a meu ver muito bem. Vou falar de cada uma delas em particular.
Fig. 2 - Senhora de pezinhos (2020). Ana Catarina Grilo.
Senhora de pézinhos
Se eu fosse repórter da moda diria:
Vestido comprido sem mangas, de aspecto sóbrio, em
padrão xadrês, branco e negro. Decote generoso, ornamentado por folhos negros,
tal como o cinto que apresenta atrás uma atadura em forma de laço.
A ausência de mangas e a generosidade do decote
reforçam a sensualidade patente no rosto da figura. Os folhos encobrem os
ombros, criando um clima de mistério associado à feminilidade que a figura
transmite. O cinto sublinha a cintura fina e reforça a elegância que ressalta
do modelo.
As mãos dispostas frontalmente nas pernas e abaixo
da anca, conferem um aspecto descontraído e emancipado à figura. O leque em
posição de descanso, diz-nos que não está calor, mas que já esteve ou pode vir
a estar.
O lindo cabelo castanho, só está parcialmente
coberto por um discreto chapéu negro, condizente com os folhos e o cinto do
vestido. O chapéu, de aba pequena, apresenta uma chanfradura posterior que
deixa o cabelo a descoberto. Está ornamentado com um laçarote azul petróleo do
lado direito, o qual transmite à figura, tranquilidade, serenidade e harmonia.
Do lado esquerdo ostenta um feixe de quatro plumas
matizadas de verde e amarelo. No seu conjunto, os ornamentos conferem
vivacidade ao chapéu e este reforça a elegância de toda a figura.
O rosto, suave e delicado, tem forma oval,
apresentando simetria entre a parte superior e inferior da face. Daí que todo o
tipo de brincos lhe assente bem. Todavia, os brincos usados, de duplo pendente,
aumentam a volumetria do maxilar. O serem de ouro, reforça a perfeição e a
nobreza associadas à figura.
Os sapatos negros, de bico, rematam inferiormente
toda a elegância do modelo.
PARABÉNS À ESTILISTA!
Fig. 3 - São João Baptista em menino (2020). Ana Catarina Grilo.
São João Baptista menino
Inspira muita ternura e revela as fortes marcas
identitárias da barrista. Apesar de muito belo, é uma imagem sóbria, o que
estará a meu ver em consonância com aquilo que creio ser a maneira de estar,
ser e comunicar da barrista. O facto de se tratar de uma representação que
prescindiu do uso da peanha, reforça ainda mais a sobriedade da modelação,
retirando austeridade e distanciamento ao Santo, que fica assim mais terra a
terra com o observador que o mira e remira para deleite de espírito. É uma
figura tão inspiradora de ternura que lhe apetece dar um beijinho.
Parabéns Ana Catarina Grilo, por sabiamente
ter sabido comunicar ternura na meninice daquele que tendo sido profeta e mártir,
é simultaneamente uma figura inescapável no adagiário e no cancioneiro popular,
já que entrou no coração do povo, que o comemora por altura da sua festa
litúrgica, em 24 de Junho.
Primavera de arco
Dos ombros do vestido amarelo brota um arco no qual
se vê pintada uma dupla hélice verde-amarela, configurando os pés verdes das
papoilas entrelaçadas num arame pintado de amarelo, como se fossem caules de
papoilas emaranhados numa cana arqueada.
O amarelo do vestido evoca uma seara de trigo donde
brotam as papoilas que anunciam a Primavera e que são emolduradas superiormente
pelo azul do céu, evocado pelo chapéu dessa cor.
As papoilas contribuem para contextualizar no
Alentejo, a figura universal da Primavera. Papoilas que integram o molho de espigas
que se vão colher aos campos na Quinta-Feira da Ascensão. Lá diz o cancioneiro
popular alentejano:
Tudo
vai colher ao campo
Quinta-feira
d'Ascensão,
trigo,
papoila, oliveira.
p'ra que Deus
dê paz e pão.(2)
O ramo tem um valor simbólico, pois ainda perdura a
crença popular de que funciona como um poderoso amuleto que traz diversos
benefícios ao lar de quem o colheu e manteve pendurado durante um ano numa das
paredes de casa. Nesse ramo, a papoila simboliza a vida e o amor. Amor que é
tema do soneto “Mocidade” do livro “Charneca em Flor” de Florbela Espanca, onde
esta confessa num terceto:
No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas
subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos
meus lábios a florir! (1)
A figura emblemática da Primavera é potenciada pela
Ana Catarina Grilo, através das cores sabiamente escolhidas e que reforçam o simbolismo
da alegoria.
PARABÉNS, ANA CATARINA GRILO!
Epílogo
O trabalho de Ana Catarina Grilo já não me
surpreende (Ah! Ah! Ah! – grandessíssima mentira). Como barrista creio que veio
para ficar, para deleite de espírito de todos nós.
BIBLIOGRAFIA
(1) - ESPANCA, Florbela. Charneca em flor. Livraria
Gonçalves. Coimbra, 1931.
(2) - SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
(2) - SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
Fig. 5 - Ana Catarina Grilo (1974- ), a modelar no seu atelier.
Trabalho bonito. Gosto muito de cerâmica e sobretudo da temática dos bonecos.
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