Presépio de três figuras
(1938). Ana das Peles (1869-1945). Colecção do autor.
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Presépio de três figuras
Os barristas de Estremoz
vêm representando a Natividade, seguramente desde o século XVIII, pelo que
existe uma grande diversidade de Presépios. Aquele que ilustra a presente
crónica é o chamado Presépio de três figuras da autoria de Ana das Peles
(1869-1945), que de acordo com correspondência que tenho em meu poder, foi
encomendado em 1938 pelo poeta Azinhal Abelho (1911-1979) ao escultor José
Maria de Sá Lemos (1892-1971), Director da Escola Industrial António Augusto
Gonçalves entre 21 de Abril de 1932 e 30 de Setembro de 1945.
Este modelo de Presépio, além de ser integrado pelo chamado “Berço do Menino Jesus”,
inclui as figuras de Nossa Senhora e São José, ajoelhados numa base de cor ocre
amarelo, de forma rectangular com os
cantos adoçados e denteado na orla vertical.
O renascer dos Bonecos
Após a sua chegada a
Estremoz, Sá Lemos constatou que a manufactura de Bonecos de Estremoz se
encontrava extinta desse 1921, após a morte da barrista Gertrudes Rosa Marques.
Atribuiu então a si próprio a missão da sua recuperação, para o que precisaria
da colaboração de alguém que em tempos os tivesse confeccionado. Teve
conhecimento da existência de Ana Rita da Silva (Ana das Peles), então com 63
anos de idade, que em tempos manufacturara os Bonecos de assobio e assistira à
feitura dos restantes, mas entendia que não era capaz de os confeccionar. Sá
Lemos intuiu que seria, por se lhe ter tornado evidente que a técnica era a
mesma. Dois anos levaram a convencê-la, o que aconteceu em Julho de 1935 no
decurso da Feira de Santiago, no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. A
partir daí, Sá Lemos estimulou-a, orientou-a e trabalhou em conjunto com ela na
Escola. Em 10 de Novembro de 1935, no artigo “Os bonecos de Estremoz / “Versos
Irónicos em barro””, publicado no jornal “Brados do Alentejo”, confessou que a
sua missão fora coroada de êxito.
A estética dos Bonecos
Sá Lemos que além de escultor era professor de
Desenho na Escola, no decorrer da revitalização da extinta manufactura de
Bonecos de Estremoz, gizou a estética dos mesmos, tanto a nível morfológico
como a nível cromático. Para tal, utilizou como modelos, exemplares
pertencentes à Biblioteca-Museu Municipal de Estremoz, ao Museu Municipal de
Elvas e ao Tenente-coronel Pinto Tavares (1869-1945).
A estética projectada por Sá Lemos foi apreendida
por Ana das Peles, a partir do aconselhamento e acompanhamento do escultor. A
idade avançada de Ana das Peles (66 anos em 1935) levou Sá Lemos a interessar
na manufactura dos mesmos, o oleiro Mariano da Conceição (1903-1959), Mestre de
Olaria da Escola desde 3 de Dezembro de 1930, que em 1935 tinha 32 anos e
estava na força da vida. Mariano aceitou de bom grado o repto e a partir de
então a sabedoria e a magia das suas mãos, voltaram-se também para a
manufactura dos Bonecos que vira Ana das Peles modelar. Creio que Mariano só
terá começado a modelar Bonecos depois de 1937, uma vez que ao contrário de Ana
das Peles, os Bonecos de Mariano não estiveram presentes em 1936 na Exposição
de Arte Popular Portuguesa realizada em Lisboa, nem em 1937 na
Exposição Internacional de Paris. Mariano só participou em 1940 na Exposição do
Mundo Português, na qual estiveram também presentes Bonecos de Ana das Peles.
Sá Lemos também aconselhou e acompanhou Mariano da
Conceição nos primeiros tempos, mas posteriormente veio a fornecer-lhe desenhos
de figuras concebidas por si e que à data de falecimento de Mariano (29 de
Setembro de 1959) ainda existiam na sua casa. À semelhança de Ana das Peles,
Mariano assimilou também a estética de Sá Lemos e conferiu-lhe igualmente as
suas marcas próprias de identidade, já que “Quem conta um conto, aumenta um
ponto”.
Ana das Peles
Ana Rita da Silva
(1869-1945) nasceu a 22 de Novembro de 1869 numa casa da Rua da Porta da Lage,
na freguesia de Santo André, concelho de Estremoz. Filha legítima de Manuel
Joaquim da Silva, proprietário, natural de Fornos de Algodres e de Maria
Domingas, governadeira de sua casa, natural da freguesia de S. Bento do
Cortiço, concelho de Estremoz. Ana Rita seria baptizada a 15 de Setembro de
1869, na igreja paroquial de Santo André, Estremoz.
Em data que não é conhecida, casou com Jacinto
Manuel, natural de Bencatel, de quem enviuvou em 1935.
Ana Rita da Silva, mais conhecida por Ti Ana das
Peles, era irmã de Ti Luzia, casada com Mestre Cassiano que viera de Elvas e
aprendera o ofício de barro fino na Cerâmica Estremocense de Mestre Emídio
Viana, situada na Rua do Lavadouro, em Estremoz. Dali saiu para montar uma olaria
de barro grosso, conhecida por Olaria Regional,
na Rua do Afã, 36-B, no Bairro de Santiago, em Estremoz.
Ana das Peles vendia louça de barro vermelho de Mestre
Cassiano no mercado de sábado em Estremoz e durante a semana era almocreve, uma
vez que se deslocava às aldeias e vilas do concelho, com um burro aprestado de
alforges, contendo pratos, panelas e outros objectos utilitários que vendia.
Nas suas deslocações comprava peles secas de animais que viriam a ser
utilizadas na manufactura de golas, casacos, pantufas, tapetes, etc., o que
está na origem da sua alcunha “Ana das Peles”.
Era uma mulher
independente, que assegurava a vida da família num tempo em que as mulheres
raramente saíam à rua, ficando em casa e ocupando o seu tempo nas tarefas
domésticas, bem como nos bordados e na costura.
Ana das Peles tinha o dom
de fazer mezinhas e de curar pessoas, como era corrente naquele tempo, quando
as famílias não tinham posses para ir aos médicos. Exercia essas práticas não
só junto da família, como de outras pessoas que a procuravam.
Ana das Peles está
indissociavelmente ligada à recuperação dos “Bonecos de Estremoz”. Em
1935 os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular
Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes
na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa realizada em
Lisboa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do
Mundo Português.
Os Bonecos de
Estremoz, de Ana das Peles foram nestas exposições, um ex-líbris de excelência
da cidade de Estremoz. Eles foram os melhores embaixadores da nossa Arte
Popular e da nossa identidade cultural local e regional. Eles foram,
simultaneamente, a primeira declaração e a primeira prova insofismável de que
na nossa terra existiam criadores populares de grande qualidade. Os Bonecos de
Estremoz, até então relativamente pouco conhecidos, adquiriram por mérito
próprio e muito justamente grande notoriedade pública.
Ana Rita da Silva faleceu a
19 de Fevereiro de 1945 no Hospital da Misericórdia de Estremoz, com 75 anos de
idade. O
elogio fúnebre de Ana da Peles foi feito por Sá Lemos em artigo intitulado
“Morreu a Ti Ana das Peles”, publicado no jornal Brados do Alentejo em 25 de
Fevereiro de 1945.
Dois vizinhos
Ana das Peles morava e tinha oficina na Rua Brito
Capelo n.º 21, onde ainda há bem pouco tempo era a churrasqueira “Frango e
Companhia” de José Maria Calquinhas. Era aí que comercializava as suas
criações.
Mariano morava no n.º 13 da mesma rua, mas nunca
trabalhou ali. A sua oficina funcionou sucessivamente na Rua das Meiras n.º1,
na Rua da Frandina e na Rua Pedro Afonso n.º 6.
75 anos da morte de Ana das Peles
A 19 de Fevereiro de 2020 completam-se 75 anos
sobre a morte de Ana das Peles. Como reconhecimento
do papel desempenhado por ela na recuperação duma tradição extinta e que hoje é
motivo de orgulho para todos os estremocenses, impõe-se que a efeméride seja
assinalada condignamente. Dou sugestões:
- PERPETUAÇÃO
DA MEMÓRIA DA BARRISTA, INCLUINDO O SEU NOME NA TOPONÍMIA LOCAL - Até agora a toponímia
estremocense já perpetuou o nome dos seguintes barristas: Mariano da Conceição
(1903-1959), Sabina da Conceição (1921-2005), Liberdade da Conceição
(1913-1990), Maria Luísa da Conceição (1934-2015) e Quirina Marmelo
(1922-2009). A omissão do nome de Ana das Peles na toponímia local é
profundamente injusta. Aqui como em tudo, não pode haver filhos e enteados;
- DESCERRAMENTO DUMA LÁPIDE NA PAREDE DO PRÉDIO
ONDE A BARRISTA TEVE OFICINA – Esta iniciativa poderia constituir a primeira
doutras congéneres em relação a outros barristas falecidos;
- MONTAGEM
DUMA EXPOSIÇÃO DE BONECOS DE ESTREMOZ MODELADOS PELA BARRISTA.
As sugestões
aqui ficam.
- TEM A PALAVRA O MUNICÍPIO!
Estremoz, Natal de 2019
(Jornal E nº 236, de 26-12-2019)
(Jornal E nº 236, de 26-12-2019)
Sá Lemos trocando impressões com Ana das Peles numa sala de aulas da Escola
Industrial António Augusto Gonçalves. Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988).
Arquivo fotográfico do autor.
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