Fig. 1 - José Marcelino Moreira (1926-1991), a
modelar uma “Primavera” na sua
oficina da Rua do Nine, nº 12 em Estremoz.
Fotografia do filme “Bonecos de
Estremoz” realizado em 1976 por Lauro António. Cortesia
de Lauro António.
Arquivo fotográfico do autor.
Nasceu a 23 de Março de 1926, no sítio dos
Mártires, na freguesia de Santa Maria, concelho de Estremoz. Filho ilegítimo de
Felicidade Moreira, de 28 anos, doméstica, natural e residente na referida
freguesia e de pai incógnito (5).
José Moreira teve uma infância difícil. Quando a
mãe morreu, ficou sem casa e vivia num buraco da muralha. Dado a tropelias, subia
a meio da noite para a torre sineira da Igreja de Santiago em Estremoz onde
tocava os sinos. Daí a alcunha de “Zé do Telhado”. Foi Ti Ana das Peles, que o
veio a recolher em sua casa e lhe ensinou a arte bonequeira. De resto, aprendeu
a modelar o barro na Olaria de Mestre Cassiano, cunhado de Ana das Peles, na
Rua do Afã, onde ingressou aos 11 anos de idade. Aos 18 muda para a Olaria
Alfacinha, na Rua de Santo Antonico, onde trabalhou cerca de 8 anos com José
Ourelo (1916-1980). Dali viria a sair nos anos 70, para se dedicar
exclusivamente à manufactura de Bonecos de Estremoz.
A 25 de Dezembro de 1956, com 30 anos de idade,
casou catolicamente com Josefina Augusta Ferreira (1922-2019), de 34 anos,
doméstica, natural do sítio das Casas Novas da freguesia de Santa Maria,
concelho de Estremoz, filha legítima de Vicente Ferreira e de Maria Antónia
Ferreira, já falecidos e naturais da referida freguesia de Santa Maria. A
celebração do matrimónio segundo o regime de comunhão de bens, decorreu na
Igreja Matriz de Santa Maria de Estremoz e foi presidida pelo Padre Henrique
José Catarro, pároco da freguesia (6).
No quintal da sua residência, na Rua do Nine, nº 12 A , em Estremoz, tinha a
oficina e o forno por ele próprio construído. Era ele quem procurava e cavava o
barro que depois preparava, visando a confecção de imagens. Estas eram por si executadas,
mas a pintura e o acabamento pertenciam a sua mulher, Josefina Augusta Ferreira
(1922- )[1].
O pintor Armando Alves (1935- ) acompanhou de perto
o trabalho de José Moreira e sobre ele escreveu (2): “Recordo muitas horas de
bom convívio e troca de impressões sobre o trabalho desenvolvido pelo casal.
Ele a modelar e trabalhar o barro como poucos o fazem e a Josefina nos
acabamentos, isto é, a escolher as cores próprias para pintar cada boneco, o que
ela fazia com extrema sensibilidade, desenvoltura e saber. Tive o primeiro
contacto com o José Moreira, (que também dava pelo nome de José do Telhado),
era eu aluno na Escola Industrial e Comercial de Estremoz e ele empregado na
Olaria Alfacinha.
Vi-o muitas vezes a trabalhar na roda ao lado do
José Ourelo e sob o olhar atento e exigente do mestre Mariano Alfacinha. Mas
foi mais tarde que melhor o conheci. Nessa altura era eu professor na Escola
Superior de Belas Artes do Porto e sempre que voltava a Estremoz visitava-o em
sua casa para ver o que estava a fazer e conversarmos um pouco, sempre a
propósito dos seus bonecos, dos “seus inventos”, a que
ele soube dar um cunho muito especial, (que o
distingue de todos os artistas do barro que tenho conhecido), e que muito aprecio.
A casa está inserida num pequeno núcleo de
arquitectura popular urbana de rara beleza que se desenvolve em vários compartimentos
interligados, havendo ao fundo do quintal uma zona onde o José Moreira
preparava o barro que ele próprio ia cavar ali para os lados dos Casarões, na
estrada para Sousel.
Num tanque raso, por ele construído, fazia passar
por várias fases o barro que trazia em bruto dos campos, até o levar à pureza
necessária para ser trabalhado.
Opera-se ai o milagre da transformação da massa
inerte que é o barro naquilo que hoje é um tesouro da criação humana - os
Bonecos de Estremoz.
José Moreira (Fig. 1) e Josefina (Fig. 2)
continuaram o trabalho dos artesãos que os antecederam abrindo caminho a outros
que mantêm esta tradição que importa não deixar perder.
Recordo com saudade este casal de artistas populares
que dedicaram grande parte das suas vidas a trabalhar o barro e a levar mais
longe o nome de Estremoz.”
O trabalho de José Moreira e de Josefina está
documentado no filme “Bonecos de Estremoz”, que Lauro António realizou em 1976
e que se encontra disponível no YouTube (3).
De José Moreira, disse Joaquim Vermelho (1927-2002)
(1): “A renovação por que passou a barrística nos anos trinta encontrou em Zé
Moreira um artista sensível para entender os seus valores e um raro criador. O
que saía das suas mãos tinha uma marca muito
pessoal.” E mais adiante “O Mundo da infância passada em contacto com a vida do
campo foi importante escola para a criação das suas obras quer quanto a formas
quer quanto a cores. Como a sua escola foi a da vida, que outros saberes não possuía,
a sua arte surgiu liberta de influências e modismos’, com a pureza e
ingenuidade que são timbre da escola de Estremoz resistindo sempre a uma certa
clientela. E acabou por ficar como um exemplo de fidelidade e
descomprometimento.“
José Moreira tinha uma maneira peculiar de observar
o mundo e de o interpretar, tendo-nos legado traços de identidade pessoal nas
peças que manufacturava, as quais são marcas indeléveis que o permitem
identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas, é semelhante
ao das imagens de Mariano da Conceição, com sobrancelhas e pestanas paralelas,
sendo estas últimas tangentes às meninas do olho. Todavia estas são maiores que
nos Bonecos de Mariano, o que torna o olhar mais expressivo.
Nas figuras zoomórficas, os cavalos têm uma cabeça
maior que as dos cavalos de Mariano da Conceição e de Sabina Santos. Têm um
olhar mais vivo, as narinas e a boca estão mais bem definidas e os focinhos dos
equídeos estão arrebitados, como que procurando afastar-se do pescoço. A crina do
pescoço está não só representada por incisões no mesmo, como através de pintura
na fronte e na nuca, pendendo para o lado esquerdo. E, ao contrário do que se
passa nos ginetes de Mariano da Conceição e de Sabina Santos, a crina da cauda,
pintada de preto, quase que roça o chão e está inclinada para o lado esquerdo,
dando uma certa sensação de movimento. Em termos de comportamento animal, isto
é sinónimo de insatisfação, tal como as narinas dilatadas são indício de
atenção. Por outro lado, nas figuras a cavalo de José Moreira (Amazona,
Cavaleiro, Frade a cavalo, Lanceiro, lanceiro com bandeira), a base é verde,
enquanto que nas de Mariano e de Sabina e de acordo com a tradição, a base que representa
o chão, é verde, pintalgada de branco, amarelo e zarcão, numa alegoria a um
chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres. Todavia, quando
José Moreira utiliza noutras figuras esta forma de decoração da base, as pintas
são maiores e mais próximas que nos Bonecos de Mariano da Conceição e de Sabina
Santos.
Nas figuras masculinas, personagens das fainas
agro-pastoris, ao contrário do que se passa nos Bonecos de Sabina Santos, o
chapéu é sempre um chapéu aguadeiro, tal como nos correspondentes exemplares de
Mariano da Conceição, ainda que por vezes de dimensões maiores.
No conjunto dos “Bonecos da Tradição” existem
imagens que ilustram o uso do barrete no Alentejo. Caso de espécimens como
“Pastor das migas” e “Matança do porco”. Todos os barristas do século XX e XXI
cobriram a cabeça desses exemplares com o tradicional barrete. Porém, José
Moreira, irreverente e inovador, nelas substituiu o barrete pelo tradicional chapéu
aguadeiro, que a seu ver identificava melhor o homem alentejano.
Frequentador dos Salões de Artesanato do Estoril,
do Mercado da Primavera em Lisboa e da Feira Nacional de Artesanato de Vila do
Conde, por diversas vezes premiado, foi um embaixador da barrística popular
estremocense. Os seus Bonecos, muito expressivos e por isso muito apreciados,
estão espalhados por todo o país e pelo estrangeiro.
Em Estremoz, José Moreira comercializava os seus
Bonecos não só na sua oficina na Rua do Nine, nº 12, como no rés-do-chão da
Capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, na Rua da Rainha Santa Isabel, frente à
cadeia Quinhentista. O templo, construído nos finais do século XVI ou inícios
do século XVII, destinava-se a servir espiritualmente os presos da cadeia. Ali
existiu entre 1982 e 1991 uma loja de artesanato pertencente a Domingos
Lameiras, funcionário da Pousada da Rainha Santa Isabel. A loja tinha como funcionária
a sua sogra, a conhecida poetisa popular Constantina Babau.
Conheci José Moreira (1926-1991) nos finais dos
anos cinquenta do século passado, quando comecei a fazer o avio para a casa dos
meus pais na Mercearia Luiz Campos, no Largo General Graça, em Estremoz. José
Moreira era igualmente cliente, daí que nos encontrássemos com frequência.
Mais tarde, nos anos sessenta, encontrávamo-nos no
bar da Mocidade Portuguesa, por ocasião dos santos populares e ali bebíamos uns
copos com o António Lapa do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa e com o menino
Cigano. José Moreira era um bom conversador e tinha costela de filósofo. Era
agradável conviver e falar com ele.
José Marcelino Moreira viria a falecer no dia 20 de
Junho de 1991, com 65 anos de idade, no Hospital de Évora, freguesia da Sé (4),
(9). Foi uma perda irreparável para a barrística popular estremocense. A sua
mulher, Josefina Augusta Ferreira faleceu a 31 de Março de 2019, com 97 anos de
idade no Centro Social Paroquial de Santo André - Estremoz (8).
BIBLIOGRAFIA
1 - A
Barrística de Estremoz perde um dos seus mais expressivos representantes (José
Marcelino Moreira) in Brados do Alentejo nº 285, 19/07/1991. Estremoz, 1991
(pág. 10).
2 - ALVES, Armando José
Ruivo. Depoimento sobre José Marcelino Moreira.
Porto, 2014. sp.
3 - ANTÓNIO, Lauro. Bonecos de Estremoz (Filme). Estremoz, 1976.
4 - José
Marcelino Moreira - Assento de Óbito
nº 444 de 1991, da Conservatória do Registo Civil de Évora.
5 - José
Marcelino Moreira - Registo de Nascimento nº 244 de 1926, da Conservatória
do Registo Civil de Estremoz.
6 - José
Marcelino Moreira - Transcrição de Casamento nº 181 de 1956, da
Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
7 - Josefina
Augusta Ferreira – Assento de Nascimento nº 783 de 2015, da
Conservatória do Registo Civil / Predial / Comercial / Automóvel de Estremoz.
8 - Josefina
Augusta Ferreira – Assento de Óbito nº …. de 2019, da
Conservatória do Registo Civil / Predial / Comercial / Automóvel de Estremoz.
9 - ÓBITOS –
José Marcelino Moreira in Brados do Alentejo nº 284, 05/07/1991. Estremoz,
1991 (pág. 29).
Fig. 2 - Josefina Augusta Ferreira (1922-2019 ), mulher de José Moreira a pintar uma
figura confeccionada pelo seu marido. Fotografia do filme Bonecos de Estremoz”
realizado em 1976 por Lauro António. Cortesia de Lauro António.
[1] - Conheci pessoalmente José Moreira e nunca tive conhecimento que Josefina modelasse. O pintor Armando Alves (2) frequentador da oficina de José Moreira também não. O filme de Lauro António (3) também não fala de Josefina a modelar. Não conheço qualquer evidência física (marca de autor) que confirme que Josefina tenha modelado, ao contrário de Ana Lagartinho (1936- ), mulher de Mário Lagartinho (1935-2016), que assinava os Bonecos que confeccionava. Todavia, o director do Museu Municipal de Estremoz, Hugo Guerreira, afirma que em entrevista que lhe fez já com avançada idade, Josefina lhe disse que também modelava. O mesmo foi dito por Josefina às Irmãs Flores.
Excelente texto.
ResponderEliminarExcelente narrativa.As de Armando e de Vermelho também são óptimas.Hernâni,sua enciclopédia é portentosa!
ResponderEliminarTenho algumas figuras dessas na minha coleção.
ResponderEliminarCongratulo-me com isso, pois José Moreira foi um expressivo e vigoroso intérprete da arte bonequeira de Estremoz.
Eliminar