terça-feira, 18 de junho de 2019

Bonecos de Estremoz: José Marcelino Moreira


Fig. 1 - José Marcelino Moreira (1926-1991), a modelar uma “Primavera” na sua
oficina da Rua do Nine, nº 12 em Estremoz. Fotografia do filme “Bonecos de
Estremoz” realizado em 1976 por Lauro António. Cortesia de Lauro António.
Arquivo fotográfico do autor.

Nasceu a 23 de Março de 1926, no sítio dos Mártires, na freguesia de Santa Maria, concelho de Estremoz. Filho ilegítimo de Felicidade Moreira, de 28 anos, doméstica, natural e residente na referida freguesia e de pai incógnito (5).
José Moreira teve uma infância difícil. Quando a mãe morreu, ficou sem casa e vivia num buraco da muralha. Dado a tropelias, subia a meio da noite para a torre sineira da Igreja de Santiago em Estremoz onde tocava os sinos. Daí a alcunha de “Zé do Telhado”. Foi Ti Ana das Peles, que o veio a recolher em sua casa e lhe ensinou a arte bonequeira. De resto, aprendeu a modelar o barro na Olaria de Mestre Cassiano, cunhado de Ana das Peles, na Rua do Afã, onde ingressou aos 11 anos de idade. Aos 18 muda para a Olaria Alfacinha, na Rua de Santo Antonico, onde trabalhou cerca de 8 anos com José Ourelo (1916-1980). Dali viria a sair nos anos 70, para se dedicar exclusivamente à manufactura de Bonecos de Estremoz.
A 25 de Dezembro de 1956, com 30 anos de idade, casou catolicamente com Josefina Augusta Ferreira (1922-2019), de 34 anos, doméstica, natural do sítio das Casas Novas da freguesia de Santa Maria, concelho de Estremoz, filha legítima de Vicente Ferreira e de Maria Antónia Ferreira, já falecidos e naturais da referida freguesia de Santa Maria. A celebração do matrimónio segundo o regime de comunhão de bens, decorreu na Igreja Matriz de Santa Maria de Estremoz e foi presidida pelo Padre Henrique José Catarro, pároco da freguesia (6).
No quintal da sua residência, na Rua do Nine, nº 12 A, em Estremoz, tinha a oficina e o forno por ele próprio construído. Era ele quem procurava e cavava o barro que depois preparava, visando a confecção de imagens. Estas eram por si executadas, mas a pintura e o acabamento pertenciam a sua mulher, Josefina Augusta Ferreira (1922- )[1].
O pintor Armando Alves (1935- ) acompanhou de perto o trabalho de José Moreira e sobre ele escreveu (2): “Recordo muitas horas de bom convívio e troca de impressões sobre o trabalho desenvolvido pelo casal. Ele a modelar e trabalhar o barro como poucos o fazem e a Josefina nos acabamentos, isto é, a escolher as cores próprias para pintar cada boneco, o que ela fazia com extrema sensibilidade, desenvoltura e saber. Tive o primeiro contacto com o José Moreira, (que também dava pelo nome de José do Telhado), era eu aluno na Escola Industrial e Comercial de Estremoz e ele empregado na Olaria Alfacinha.
Vi-o muitas vezes a trabalhar na roda ao lado do José Ourelo e sob o olhar atento e exigente do mestre Mariano Alfacinha. Mas foi mais tarde que melhor o conheci. Nessa altura era eu professor na Escola Superior de Belas Artes do Porto e sempre que voltava a Estremoz visitava-o em sua casa para ver o que estava a fazer e conversarmos um pouco, sempre a propósito dos seus bonecos, dos “seus inventos”, a que
ele soube dar um cunho muito especial, (que o distingue de todos os artistas do barro que tenho conhecido), e que muito aprecio.
A casa está inserida num pequeno núcleo de arquitectura popular urbana de rara beleza que se desenvolve em vários compartimentos interligados, havendo ao fundo do quintal uma zona onde o José Moreira preparava o barro que ele próprio ia cavar ali para os lados dos Casarões, na estrada para Sousel.
Num tanque raso, por ele construído, fazia passar por várias fases o barro que trazia em bruto dos campos, até o levar à pureza necessária para ser trabalhado.
Opera-se ai o milagre da transformação da massa inerte que é o barro naquilo que hoje é um tesouro da criação humana - os Bonecos de Estremoz.
José Moreira (Fig. 1) e Josefina (Fig. 2) continuaram o trabalho dos artesãos que os antecederam abrindo caminho a outros que mantêm esta tradição que importa não deixar perder.
Recordo com saudade este casal de artistas populares que dedicaram grande parte das suas vidas a trabalhar o barro e a levar mais longe o nome de Estremoz.”
O trabalho de José Moreira e de Josefina está documentado no filme “Bonecos de Estremoz”, que Lauro António realizou em 1976 e que se encontra disponível no YouTube (3).
De José Moreira, disse Joaquim Vermelho (1927-2002) (1): “A renovação por que passou a barrística nos anos trinta encontrou em Zé Moreira um artista sensível para entender os seus valores e um raro criador. O que saía das suas mãos tinha uma marca muito pessoal.” E mais adiante “O Mundo da infância passada em contacto com a vida do campo foi importante escola para a criação das suas obras quer quanto a formas quer quanto a cores. Como a sua escola foi a da vida, que outros saberes não possuía, a sua arte surgiu liberta de influências e modismos’, com a pureza e ingenuidade que são timbre da escola de Estremoz resistindo sempre a uma certa clientela. E acabou por ficar como um exemplo de fidelidade e descomprometimento.“
José Moreira tinha uma maneira peculiar de observar o mundo e de o interpretar, tendo-nos legado traços de identidade pessoal nas peças que manufacturava, as quais são marcas indeléveis que o permitem identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas, é semelhante ao das imagens de Mariano da Conceição, com sobrancelhas e pestanas paralelas, sendo estas últimas tangentes às meninas do olho. Todavia estas são maiores que nos Bonecos de Mariano, o que torna o olhar mais expressivo.
Nas figuras zoomórficas, os cavalos têm uma cabeça maior que as dos cavalos de Mariano da Conceição e de Sabina Santos. Têm um olhar mais vivo, as narinas e a boca estão mais bem definidas e os focinhos dos equídeos estão arrebitados, como que procurando afastar-se do pescoço. A crina do pescoço está não só representada por incisões no mesmo, como através de pintura na fronte e na nuca, pendendo para o lado esquerdo. E, ao contrário do que se passa nos ginetes de Mariano da Conceição e de Sabina Santos, a crina da cauda, pintada de preto, quase que roça o chão e está inclinada para o lado esquerdo, dando uma certa sensação de movimento. Em termos de comportamento animal, isto é sinónimo de insatisfação, tal como as narinas dilatadas são indício de atenção. Por outro lado, nas figuras a cavalo de José Moreira (Amazona, Cavaleiro, Frade a cavalo, Lanceiro, lanceiro com bandeira), a base é verde, enquanto que nas de Mariano e de Sabina e de acordo com a tradição, a base que representa o chão, é verde, pintalgada de branco, amarelo e zarcão, numa alegoria a um chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres. Todavia, quando José Moreira utiliza noutras figuras esta forma de decoração da base, as pintas são maiores e mais próximas que nos Bonecos de Mariano da Conceição e de Sabina Santos.
Nas figuras masculinas, personagens das fainas agro-pastoris, ao contrário do que se passa nos Bonecos de Sabina Santos, o chapéu é sempre um chapéu aguadeiro, tal como nos correspondentes exemplares de Mariano da Conceição, ainda que por vezes de dimensões maiores.
No conjunto dos “Bonecos da Tradição” existem imagens que ilustram o uso do barrete no Alentejo. Caso de espécimens como “Pastor das migas” e “Matança do porco”. Todos os barristas do século XX e XXI cobriram a cabeça desses exemplares com o tradicional barrete. Porém, José Moreira, irreverente e inovador, nelas substituiu o barrete pelo tradicional chapéu aguadeiro, que a seu ver identificava melhor o homem alentejano.
Frequentador dos Salões de Artesanato do Estoril, do Mercado da Primavera em Lisboa e da Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde, por diversas vezes premiado, foi um embaixador da barrística popular estremocense. Os seus Bonecos, muito expressivos e por isso muito apreciados, estão espalhados por todo o país e pelo estrangeiro.
Em Estremoz, José Moreira comercializava os seus Bonecos não só na sua oficina na Rua do Nine, nº 12, como no rés-do-chão da Capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, na Rua da Rainha Santa Isabel, frente à cadeia Quinhentista. O templo, construído nos finais do século XVI ou inícios do século XVII, destinava-se a servir espiritualmente os presos da cadeia. Ali existiu entre 1982 e 1991 uma loja de artesanato pertencente a Domingos Lameiras, funcionário da Pousada da Rainha Santa Isabel. A loja tinha como funcionária a sua sogra, a conhecida poetisa popular Constantina Babau.
Conheci José Moreira (1926-1991) nos finais dos anos cinquenta do século passado, quando comecei a fazer o avio para a casa dos meus pais na Mercearia Luiz Campos, no Largo General Graça, em Estremoz. José Moreira era igualmente cliente, daí que nos encontrássemos com frequência.
Mais tarde, nos anos sessenta, encontrávamo-nos no bar da Mocidade Portuguesa, por ocasião dos santos populares e ali bebíamos uns copos com o António Lapa do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa e com o menino Cigano. José Moreira era um bom conversador e tinha costela de filósofo. Era agradável conviver e falar com ele.
José Marcelino Moreira viria a falecer no dia 20 de Junho de 1991, com 65 anos de idade, no Hospital de Évora, freguesia da Sé (4), (9). Foi uma perda irreparável para a barrística popular estremocense. A sua mulher, Josefina Augusta Ferreira faleceu a 31 de Março de 2019, com 97 anos de idade no Centro Social Paroquial de Santo André - Estremoz (8).

BIBLIOGRAFIA
1 - A Barrística de Estremoz perde um dos seus mais expressivos representantes (José Marcelino Moreira) in Brados do Alentejo nº 285, 19/07/1991. Estremoz, 1991 (pág. 10).
2 - ALVES, Armando José Ruivo. Depoimento sobre José Marcelino Moreira. Porto, 2014. sp.
3 - ANTÓNIO, Lauro. Bonecos de Estremoz (Filme). Estremoz, 1976.
4 - José Marcelino Moreira -  Assento de Óbito nº 444 de 1991, da Conservatória do Registo Civil de Évora.
5 - José Marcelino Moreira - Registo de Nascimento nº 244 de 1926, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
6 - José Marcelino Moreira - Transcrição de Casamento nº 181 de 1956, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
7 - Josefina Augusta Ferreira – Assento de Nascimento nº 783 de 2015, da Conservatória do Registo Civil / Predial / Comercial / Automóvel de Estremoz.
8 - Josefina Augusta Ferreira – Assento de Óbito nº …. de 2019, da Conservatória do Registo Civil / Predial / Comercial / Automóvel de Estremoz.
9 - ÓBITOS – José Marcelino Moreira in Brados do Alentejo nº 284, 05/07/1991. Estremoz, 1991 (pág. 29).

Fig. 2 - Josefina Augusta Ferreira (1922-2019 ), mulher de José Moreira a pintar uma
figura confeccionada pelo seu marido. Fotografia do filme Bonecos de Estremoz”
realizado em 1976 por Lauro António. Cortesia de Lauro António.
Arquivo fotográfico do autor.
Hernâni Matos


[1] - Conheci pessoalmente José Moreira e nunca tive conhecimento que Josefina modelasse. O pintor Armando Alves (2) frequentador da oficina de José Moreira também não. O filme de Lauro António (3) também não fala de Josefina a modelar. Não conheço qualquer evidência física (marca de autor) que confirme que Josefina tenha modelado, ao contrário de Ana Lagartinho (1936- ), mulher de Mário Lagartinho (1935-2016), que assinava os Bonecos que confeccionava. Todavia, o director do Museu Municipal de Estremoz, Hugo Guerreira, afirma que em entrevista que lhe fez já com avançada idade, Josefina lhe disse que também modelava. O mesmo foi dito por Josefina às Irmãs Flores.

4 comentários:

  1. Excelente narrativa.As de Armando e de Vermelho também são óptimas.Hernâni,sua enciclopédia é portentosa!

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  2. Tenho algumas figuras dessas na minha coleção.

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    1. Congratulo-me com isso, pois José Moreira foi um expressivo e vigoroso intérprete da arte bonequeira de Estremoz.

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