quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Acerca de Peraltas


Ana das Peles (1869-1945). Museu Nacional de Etnologia.


Atributos do Peralta
Na barrística popular de Estremoz, a figura conhecida por Peralta, goza desde o séc. XX de atributos que têm sido utilizados pelos diferentes barristas na sua representação. São eles: mãos assentes na parte inferior frontal do casaco, fato cujo casaco tem abotoadura frontal, virados e orla do casaco da mesma cor contrastante com a cor do fato, camisa branca, pescoço geralmente adornado com aquilo que configura ser uma gravata ou um lenço atado em forma de gravata ou com as pontas sobrepostas à frente, chapéu enfeitado com fita e sapatos pretos.
Ao contrário dos atributos que são invariantes, existem pormenores de representação que são variáveis de barrista para barrista.
Variáveis do Peralta
No decurso da modelação do Boneco, é possível conceder volumetria a alguns ou a todos os componentes da sua composição. Deste modo, a gola do casaco, os botões do mesmo, o ornamento em torno do pescoço, a camisa, a fita do chapéu e o cabelo podem ser modelados em barro. Todavia, o barrista pode optar por pintar alguns ou todos os componentes da composição.
A cor do fato pode ser variável, o mesmo se passando com a cor dos virados e da orla do casaco. Igualmente o número de botões da abotoadura frontal é variável.
Se os botões ladeiam as orlas frontais do casaco, são habitualmente da mesma cor destas e dos virados ou então em amarelo.
Se os botões se sobrepõem às orlas frontais do casaco, são geralmente da cor do casaco, da orla ou então em amarelo.
O casaco pode ter ou não orlas nos punhos.
Quando tem orlas, estas são da mesma cor dos virados e das orlas frontais do casaco. Neste caso, as mangas não apresentam geralmente abotoadura.
Se o casaco não tem orlas nos punhos, pode ter ou não abotoadura nas mangas. Os botões das mangas serão da mesma cor dos virados e das orlas frontais do casaco, desde que ladeiem esta. Porém, se os botões se sobrepõem às orlas frontais do casaco, os botões das mangas, tal como os da abotoadura frontal, serão da cor do casaco ou em amarelo.
Quanto à parte detrás do casaco pode ostentar ou não na horizontal, dois botões à altura da cintura. No caso destes botões existirem, serão da mesma cor daqueles que constituem a abotoadura frontal.
As calças poderão ter ou não uma bainha da mesma cor dos virados e da orla do casaco.
A camisa branca pode ser simplesmente pintada ou apresentar volumetria com colarinhos de tipo variável com ou sem abotoadura.
As cores do chapéu e respectiva fita são variáveis, ainda que contrastantes entre si. Algumas vezes o chapéu é da cor do fato ou dos virados. A fita costuma ser da cor do fato, dos virados ou do ornamento do pescoço.
A base em que assenta a figura é quase sempre quadrada com os vértices cortados em bisel.
O topo da base é habitualmente verde-escuro sarapintado ou não com pintas cor de zarcão, amarelo e branco. A orla da base é geralmente pintada a zarcão.
Nota final
Tudo o que se disse é válido para representações de Peraltas na barrística popular de Estremoz, a partir do séc. XX.
No Museu Municipal de Estremoz existem exemplares de Peraltas que remontam ao séc. XIX, mas o presente estudo não se refere a eles.
De salientar que o termo “Peralta” surgiu no séc. XVIII em Portugal, como designação atribuída aos elegantes que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.

Mariano da Conceição (1903-1959). Museu Rural de Estremoz.

Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção Jorge da Conceição.

Sabina da Conceição (1921-2005). Colecção do autor.

Sabina da Conceição (1921-2005). Imagem recolhida "on line".

Maria Luísa da Conceição (1934-2015). Colecção do autor.

Irmãs Flores (1957, 1958 -  ). Colecção do autor.

Luísa Batalha (1959 -  ). Colecção do autor.

Sara Sapateiro (1995-  ). Colecção particular.

Ana Catarina Grilo (1974 -  ). Colecção do autor.

Carlos Alves (1958- ). Colecção do autor.

José Carlos Rodrigues (1970). Colecção do autor.

José Carlos Rodrigues (1970). Colecção do autor.

Joana Oliveira (1978-  ). Colecção do autor.

Luís Parente (1974-  ). Colecção do autor.

domingo, 16 de agosto de 2020

A Senhora de pezinhos de Ana Catarina Grilo


Senhora de pezinhos (2020). Ana Catarina Grilo (1974-  ). Colecção do autor.

Antelóquio
A modelação e decoração da Senhora de pezinhos tem conhecido inúmeras modificações no decurso dos tempos. Nos finais do século XIX, a figura é representada sem brincos e os componentes do vestuário são pintados. Todavia, Ana das Peles (1869-1945) já adorna a imagem com brincos e modela pela primeira vez a gola do vestido. Segue-se Mariano da Conceição (1903-1959) que mantém aquelas inovações e para além disso modela o botão de fecho da gola. Sabina da Conceição (1921-2005) passa a modelar também o cinto do vestido. Liberdade da Conceição (1913-1990) mantém as inovações introduzidas anteriormente, às quais adiciona a modelação de folhos e punhos das mangas dos vestidos. Por sua vez, as Irmãs Flores (1957, 1958 - ) passam também a modelar os botões das suas figuras, introduzem o padrão no vestuário, aperfeiçoam a representação do penteado e aumentam pormenores na decoração, recorrendo a uma riqueza cromática nunca dantes utilizada. Do exposto se infere que a inovação na modelação e na decoração é um caminho que nunca terá fim.
A figura em si
Ana Catarina Grilo apostou fortemente na modelação do presente exemplar de Senhora de pezinhos. Deste modo, conferiu volumetria a todos os componentes do vestido: gola, punhos, orlas, folhos, botões e laço.
O vestido de cor Bordeaux tem punhos, orlas superiores das mangas, superiores e inferior do vestido, em azul-marinho, que é também a cor do chapéu. A gola, os botões, o folho, o laço do vestido e as luvas são de cor cinza.
Uma extensa, sinuosa e requintada gola cobre os ombros do artefacto. A abotoadura do vestido é nas costas e ao fundo dela, ao nível da cintura, o vestido está ornamentado com um vistoso laço com duas pontas suspensas.   
O gracioso chapéu que cobre a cabeça está ornamentado por uma pluma, folhas, flores silvestres e um pássaro que configura ser um rouxinol. O chapéu deixa a descoberto um vistoso penteado de cabelo castanho. Dois pendentes de ouro, um de cada lado do rosto, potenciam a beleza do mesmo.
O peito do vestido encontra-se embelezado por uma flor que configura ser uma gerbera violeta.
Ao fundo do vestido e à frente, é visível um par de sapatos pretos de bico.
Simbolismos implícitos
Em primeiro lugar, o SIMBOLISMO DAS CORES: - Bordeaux, cor quente dominante na figuração, que confere um ar clássico e de requinte, transmitindo ideias de nobreza e riqueza; - Cinza, que como cor neutra está associada à estabilidade, à compostura e à sobriedade, conferindo elegância e sofisticação; - azul-marinho, cor fria que induz relaxamento e calma, associada a valores como a serenidade, a estabilidade e a harmonia.
Em segundo lugar, o SIMBOLISMO DAS LUVAS, que como vestuário das mãos, fornecem protecção e isolamento do exterior, evitando em termos higiénicos o contacto com algo impuro. Para além de toque de elegância, as luvas traduzem a ânsia de pureza por parte da sua portadora.
Em terceiro lugar, o SIMBOLISMO DO ROUXINOL, conhecido pela perfeição do seu canto e que tem um simbolismo vinculado à obra shakespeariana Romeu e Julieta. É um símbolo do amor e dos sentimentos.
Em quarto lugar, o SIMBOLISMO DA GERBERA, que na linguagem das flores traduz pureza, sensibilidade, amor e alegria.
Remate
Ana Catarina Grilo interpretou a clássica Senhora de pezinhos com uma estética muito pessoal. Modelou um exemplar muito elaborado e decorou-o com um cromatismo de forte significação simbólica. A imagem possui um rosto bem projectado, com olhos, nariz, boca e queixo bem definidos, o mesmo acontecendo com o cabelo e com as maçãs do rosto de ténue tonalidade rosa. A representação do olhar é única. Tudo isto configura serem marcas identitárias da barrista, que consolida passo a passo, a caminhada que encetou. 
Nesta sua recriação da Senhora de pezinhos, Ana Catarina Grilo, introduziu duas inovações: o uso de luvas pelo modelo e a decoração fito-zoomórfica do chapéu. O grau de elaboração da modelação foi elevado, o cromatismo do conjunto foi harmonioso e o simbolismo das cores não foi contraditório. Em suma, Ana Catarina Grilo prendou-nos com uma Senhora de pezinhos bela e elegante, vestindo com requinte e harmonia e cuja imagem transmite uma ideia de pureza e sensibilidade. Trata-se de algo diferente de tudo o que vi até agora, pelo que a barrista está de parabéns.

Hernâni Matos

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O Peralta de Luísa Batalha


Peralta (2020). Luísa Batalha (1959-  ). Colecção do autor.

Descrição
Trata-se de uma figura antropomórfica masculina de aspecto citadino trajando um fato e um chapéu vistosos e calçando um par de sapatos com sola. A imagem assenta numa base quadrangular com os vértices cortados em bisel, tem topo verde-escuro e orla cor de zarcão.
Ao modelar o Boneco em epígrafe, Luísa Batalha decidiu conceder volumetria a alguns componentes da sua composição. Deste modo, a gola do casaco, os botões do mesmo, o lenço em torno do pescoço, a camisa, a fita do chapéu e o cabelo ondulado foram modelados em barro. Despertam a atenção os vincos das mangas na região dos cotovelos, os quais reforçam a noção de curvatura.
O chapéu tem aba circular voltada para cima e copa de formato cilíndrico, cortada a meio.
A camisa tem colarinho algo revirado para cima e punhos que se destacam das mangas do casaco. Junto ao pescoço um lenço cujas pontas se cruzam junto ao peito.
O fato, os botões do casaco e a fita do chapéu são cor violeta. A gola, a orla do casaco, assim como o chapéu, são cor azul de petróleo (azul-verde). A camisa é branca. O lenço é vermelho e os sapatos são negros. O cabelo é castanho.
Análise
A representação apresenta um rosto bem gizado, com olhos, nariz, boca, queixo e orelhas bem definidas, o mesmo se passando com o cabelo, a que há que acrescentar maçãs do rosto de ténue tonalidade rosa e uma representação do olhar inconfundível. Tudo isto parece ser marcas identitárias da barrista. Para além disso, o modelo tem um perfil e um aspecto elegante, com mãos bem definidas, que fazem lembrar mãos reais, mãos de pessoas de carne e osso. E essas parecem-me ser outras das marcas distintivas da barrista.
A cor dominante no artefacto é a cor violeta, que historicamente está muito associada ao poder e à nobreza. Nunca é encarada como estando ligada à humildade. Usada no vestuário chama a atenção e é vista como um sinal de extravagância. É considerada a cor da vaidade ou seja do sentimento de grande valorização que alguém tem em relação a si próprio.  A vaidade está associada à soberba, crença de alguém ser superior a todos, o que de acordo com o Cristianismo constitui um dos sete pecados capitais. Tendo em conta o conceito de “Peralta” creio que a cor violeta foi a melhor cor escolhida para o vestuário, visando transmitir a ideia de extravagância associada à figuração.
A excelência do trabalho da barrista é merecedor de toda a minha admiração e por isso lhe dou os meus sinceros parabéns. Formulo ainda votos de que continue a trilhar com êxito a senda recentemente iniciada.


Luísa Batalha pintando o Peralta.

sábado, 8 de agosto de 2020

Isto aqui é o da Joana!


Joana Oliveira (1978- ) a modelar uma Primavera de arco.

Joana:
A força do seus bonecos resulta de procurar ser sempre igual a si própria, na inquietude louvavelmente permanente do seu espírito, que a leva e muito bem a procurar novos caminhos, sem ceder a práticas de modelação e decoração codificadas, que são património de outra época e que uma certa nomenklatura defende e exige para que uma figura possa ser considerada um Boneco de Estremoz.
Dentre os barristas que a precederam, alguns foram capazes de se libertar de uma certa "praxis corporativa", outros não.
Os primeiros libertaram-se e libertaram a Arte Popular de uma condenação à morte por fossilização, ao recusarem-se a produzir figuras que replicassem com maior ou menor fidelidade, o que fizeram os barristas de há 200 ou 300 anos atrás, noutro contexto sociológico.
Os segundos continuaram a produzir à maneira antiga, como se integrassem uma linha de produção que não pode parar e na qual são peças duma engrenagem que há quem defenda que se deve limitar a reproduzir a estética e os modelos que povoam as vitrinas de alguns museus. A meu ver, nada de mais errado.
A Arte e em particular a Arte Popular não são estáticas, reflectem sempre uma época com os seus problemas e os seus anseios. As identidades culturais não pararam no tempo, foram-se modificando e recriaram-se, criando novos paradigmas que persistirão até que as dinâmicas sociais e artísticas gerem novos paradigmas. Haverá sempre Homens e Mulheres cuja inquietude pesa na gestação de novos paradigmas.
Parabéns Joana, por ser uma dessas Mulheres!
Parabéns Joana, por nos deixar felizes com as suas criações! 
Parabéns Joana pelos desafios que lança a si própria e a nós próprios.
Obrigado por nos mostrar que a barrística popular está viva e tem pernas para andar. São novas e importantes passadas a caminho do Futuro.
O Futuro já começou!



Joana Oliveira afina pormenores de uma Primavera de arco.

Com a Guarda de Honra de duas Primaveras de Arco, Joana Oliveira modela
uma Nossa Senhora da Conceição.

Primavera de arco (2020). Joana Oliveira (1978-  ). Colecção do autor.

Passeio de Santo António com o Menino Jesus (2020). Joana Oliveira (1978- ).
Colecção de Alexandre Correia.

Sermão de Santo António aos peixes (2020). Joana Oliveira (1978- ).
Colecção de Alexandre Correia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Bonecos de Estremoz: Ricardo Fonseca (2.ª parte)


Presépio do tipo do séc. XVIII

A extensão do texto e o considerável
número de ilustrações, aconselhou que
fosse dividido em duas partes,
 que foram publicadas sucessivamente.
Esta é a 2.ª parte.

CRÉDITOS
Fotografias de Luís Mendeiros
Cortesia de Ricardo Fonseca

Aconselho vivamente a leitura da biografia deste barrista, estabelecida na 1º parte.

Presépio da capela alentejana

Nossa Senhora da Conceição

Santo António

São João Baptista em criança

 São Francisco de Assis com Presépio

São Miguel

Santa Bárbara

Rainha Santa Isabel

Pastor

Ceifeira

 Aguadeira da ceifa

Pastor do harmónio

Aguadeiro da cidade

Mulher a fazer um bolo

Tapeteira de Arraiolos

Quarto alentejano

Cozinha alentejana

Cavaleiro tauromáquico em pé

Amor é cego

Amor é cego

Bailadeira pequena

Bailadeira grande

 
Primavera de arco

Xéxé

Folião de Carnaval

Barbeiro sangrador

Rei negro

Rei negro

Hernâni Matos