quinta-feira, 25 de junho de 2020

“Emojis”, “gifts” “ou stickers” não, obrigado!



À laia de introito
Existe no Facebook um grupo designado “BONECOS DE ESTREMOZ”, destinado à divulgação dos Bonecos de Estremoz e que apoiou a sua Candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Regras do grupo
O grupo rege-se por um conjunto de regras aprovadas pelos seus cinco administradores, das quais consta:
1 - A publicação de posts no grupo carece de aprovação da Administração;
2 - Não serão editados posts que fujam ao tema;
3 - Os posts terão de incluir necessariamente imagens de Bonecos de Estremoz e/ou Barristas de Estremoz, os quais deverão estar identificados;
4 - Cada membro só pode publicar 2 posts por dia;
5 - Não são permitidas partilhas de outros grupos ou páginas do Facebook;
6 - Não são admitidos comentários com imagens que fujam ao tema ou do tipo “emoji”, “gift” “ou sticker”.
7 - São eliminados os posts que fujam aos critérios anteriores.
Comentário ao ponto 6 do Regulamento
O ponto 6 do Regulamento determina que os comentários não tenham expressão gráfica, para as únicas imagens serem dos Bonecos e/ou dos barristas, já que as imagens dos tipos “emoji”, “gift” “ou sticker”, funcionam como distractores daquelas que são objecto do grupo.
Por outro lado, aquele ponto do Regulamento potencia a seriedade que os Bonecos devem merecer e visa fomentar a utilização de mensagens escritas, o que acaba por ser um reforço da utilização da língua portuguesa.
Opinião pessoal
A nível pessoal, penso que a utilização de imagens dos tipos “emoji”, “gift” “ou sticker”, revela muitas vezes algum infantilismo e é revelador de preguiça mental em construir uma ou mais frases apreciativas e/ou valorativas do que se viu e leu. Basta ir aos menus onde está tal bonecada e escolher. Ora, a página do grupo não é de um grupo de banda desenhada. Os barristas e seus trabalhos merecem palavras amigas com calor humano, o qual é sempre personalizado.
Mesmo que alguém escreva com erros ortográficos ou construa mal uma frase, percebe-se o que lhe vai na alma. E a meu ver é isso que importa e é estimulante.
O calor humano tem matizes que não têm tradução gráfica. Utilizar tais símbolos gráficos condiciona a expressão verbal escrita (com a falada é o mesmo) e restringe a liberdade individual, na medida em que se está condicionado ao que vem no menu. Por outro lado, utilizar tais símbolos gráficos conjuntamente com a linguagem escrita, é subalternizar o papel da língua portuguesa. Esta vale por si e não precisa de qualquer tipo de reforço. Por isso:
- “EMOJIS”, “GIFTS” “OU STICKERS” NÃO, OBRIGADO!


domingo, 21 de junho de 2020

Jorge Carrapiço, um barrista em construção


 O amor é cego (2020). Jorge Carrapiço (1968-  ).

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Falar de Jorge Carrapiço
Hoje é dia de falar de Jorge Carrapiço. Não é a primeira vez que o faço. Já falei dele no meu livro “Bonecos de Estremoz”, assim como no blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, no qual reproduzi imagens de trabalhos seus.
Nunca é demais falar de um barrista, das suas criações e da sua obra. Obra cuja construção só termina com o finamento do autor. Até lá, o seu trabalho é uma procura incessante de caminhos, a proclamação de mensagens e a revelação de marcas identitárias. É o que se passa com o barrista Jorge Carrapiço, que transporta consigo a pesada herança de ser bisneto de Ana das Peles. A carga genética propiciou terreno fértil à aprendizagem da modelação do barro, primeiro com o seu vizinho e pintor de construção civil, Óscar Cavaco e depois com o seu professor de Trabalhos Manuais e artista plástico, Aníbal Falcato Alves. O seu pai, pintor de construção civil, ensinou-o a utilizar as tintas e a misturá-las até àquela cor e não outra, que é capaz de transmitir um determinado estado de alma. É assim que as pinceladas mágicas nascidas da mão do pintor, acabam por falar connosco, como se tivessem vida.
O percurso de Jorge Carrapiço não é como os demais. Não aprendeu em contexto oficinal nem familiar, nem em qualquer acção de formação. Aprendeu nas condições já referidas e o resto depois tem sido com ele.
Uma figura que cega
Hoje é um dia de cegueira. Fiquei cego pela luz que irradia do seu “Amor é cego”. Uma figura luminosa pela predominância de cores quentes e pelo recurso pouco usual ao verniz brilhante, que constitui uma das suas marcas identitárias. Jorge Carrapiço intuiu e bem o calor que deve irradiar desta figura, para traduzir o calor e a cegueira da paixão.   
Os tons ocre usados no calçado e no toucado, tons de pigmentos “terras de Siena” indiciam que o amor aqui abordado alegoricamente é “Eros”, o amor romântico que se vive na Terra.
As flores que ornamentam os braços da figura em tonalidades de vermelho e com corolas amarelas, sugerem gerberas, flores que ao longo da História das Civilizações, de uma forma ou de outra,  têm traduzido a beleza da vida e a energia positiva proveniente da natureza. O simbolismo induzido pela suas cores é variável. As gerberas vermelhas estão associadas à inconsciência e à total imersão no amor (cegueira do amor).
A sensualidade expressa pelos lábios vermelhos da figura é reforçada pelas rosetas avermelhadas nas maçãs do rosto ou não se desse o caso da paixão afoguear as faces.
À espera de mais
Estou a lembrar-me de um poema de Vinicius de Morais intitulado “Operário em Construção”. Parafraseando o título do celebérrimo poeta carioca, sou levado a concluir que Jorge Carrapiço é um “Barrista em Construção”. Surpreende-me em cada trabalho em que recria o que já tinha sido criado e revela muito daquilo que tem para nos dar e nós esperamos vir a receber.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Ana Catarina Grilo, uma barrista que veio para ficar


Fig. 1 - Ana Catarina Grilo (1974-   ), pintando no seu atelier.

À laia de introdução
O gosto pelos Bonecos de Estremoz está-me na massa do sangue. Daí que para além de coleccionador e investigador da História dos mesmos, seja um contador de estórias que procura modelar com palavras o que lhe vai na alma. Tal é fruto de observar e reflectir sobre criações, às quais a magia das mãos dos barristas, conferiram forma, cor, movimento e significado. E porque não vida? Vida que para mim passa também a ter mais sentido, já que os Bonecos me refrescam e revitalizam o ser.
Ana Catarina Grilo (1974-  ) (Fig. 1 e Fig. 5) é uma barrista que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte.
“Senhora de pezinhos” (Fig. 2), São João Baptista menino (Fig. 3) e “Primavera de arco” (Fig. 4) são três figuras tradicionais da barrística popular estremocense, que a nova barrista recriou e a meu ver muito bem. Vou falar de cada uma delas em particular.

Fig. 2 - Senhora de pezinhos (2020). Ana Catarina Grilo.

Senhora de pézinhos
Se eu fosse repórter da moda diria:
Vestido comprido sem mangas, de aspecto sóbrio, em padrão xadrês, branco e negro. Decote generoso, ornamentado por folhos negros, tal como o cinto que apresenta atrás uma atadura em forma de laço.
A ausência de mangas e a generosidade do decote reforçam a sensualidade patente no rosto da figura. Os folhos encobrem os ombros, criando um clima de mistério associado à feminilidade que a figura transmite. O cinto sublinha a cintura fina e reforça a elegância que ressalta do modelo.
As mãos dispostas frontalmente nas pernas e abaixo da anca, conferem um aspecto descontraído e emancipado à figura. O leque em posição de descanso, diz-nos que não está calor, mas que já esteve ou pode vir a estar.
O lindo cabelo castanho, só está parcialmente coberto por um discreto chapéu negro, condizente com os folhos e o cinto do vestido. O chapéu, de aba pequena, apresenta uma chanfradura posterior que deixa o cabelo a descoberto. Está ornamentado com um laçarote azul petróleo do lado direito, o qual transmite à figura, tranquilidade, serenidade e harmonia.
Do lado esquerdo ostenta um feixe de quatro plumas matizadas de verde e amarelo. No seu conjunto, os ornamentos conferem vivacidade ao chapéu e este reforça a elegância de toda a figura.
O rosto, suave e delicado, tem forma oval, apresentando simetria entre a parte superior e inferior da face. Daí que todo o tipo de brincos lhe assente bem. Todavia, os brincos usados, de duplo pendente, aumentam a volumetria do maxilar. O serem de ouro, reforça a perfeição e a nobreza associadas à figura.
Os sapatos negros, de bico, rematam inferiormente toda a elegância do modelo.
PARABÉNS À ESTILISTA!

Fig. 3 - São João Baptista em menino (2020). Ana Catarina Grilo.
São João Baptista menino
Inspira muita ternura e revela as fortes marcas identitárias da barrista. Apesar de muito belo, é uma imagem sóbria, o que estará a meu ver em consonância com aquilo que creio ser a maneira de estar, ser e comunicar da barrista. O facto de se tratar de uma representação que prescindiu do uso da peanha, reforça ainda mais a sobriedade da modelação, retirando austeridade e distanciamento ao Santo, que fica assim mais terra a terra com o observador que o mira e remira para deleite de espírito. É uma figura tão inspiradora de ternura que lhe apetece dar um beijinho.
Parabéns Ana Catarina Grilo, por sabiamente ter sabido comunicar ternura na meninice daquele que tendo sido profeta e mártir, é simultaneamente uma figura inescapável no adagiário e no cancioneiro popular, já que entrou no coração do povo, que o comemora por altura da sua festa litúrgica, em 24 de Junho.

Fig. 4 - Primavera de arco (2020). Ana Catarina Grilo.

Primavera de arco
Dos ombros do vestido amarelo brota um arco no qual se vê pintada uma dupla hélice verde-amarela, configurando os pés verdes das papoilas entrelaçadas num arame pintado de amarelo, como se fossem caules de papoilas emaranhados numa cana arqueada.
O amarelo do vestido evoca uma seara de trigo donde brotam as papoilas que anunciam a Primavera e que são emolduradas superiormente pelo azul do céu, evocado pelo chapéu dessa cor.
As papoilas contribuem para contextualizar no Alentejo, a figura universal da Primavera. Papoilas que integram o molho de espigas que se vão colher aos campos na Quinta-Feira da Ascensão. Lá diz o cancioneiro popular alentejano:

Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão.(2)

O ramo tem um valor simbólico, pois ainda perdura a crença popular de que funciona como um poderoso amuleto que traz diversos benefícios ao lar de quem o colheu e manteve pendurado durante um ano numa das paredes de casa. Nesse ramo, a papoila simboliza a vida e o amor. Amor que é tema do soneto “Mocidade” do livro “Charneca em Flor” de Florbela Espanca, onde esta confessa num terceto:

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir! (1)

A figura emblemática da Primavera é potenciada pela Ana Catarina Grilo, através das cores sabiamente escolhidas e que reforçam o simbolismo da alegoria.
PARABÉNS, ANA CATARINA GRILO!
Epílogo
O trabalho de Ana Catarina Grilo já não me surpreende (Ah! Ah! Ah! – grandessíssima mentira). Como barrista creio que veio para ficar, para deleite de espírito de todos nós.


BIBLIOGRAFIA
(1) - ESPANCA, Florbela. Charneca em flor. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
(2) - SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.


 
Fig. 5 - Ana Catarina Grilo (1974-   ), a modelar no seu atelier.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Ganchos de meia e sua recuperação


Ganchos de meia. Liberdade da Conceição (1913-1990). 

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Qualquer artefacto de Arte Popular suscita uma problemática própria, que lhe é intrínseca. É o que se passa com os Bonecos de Estremoz e muito em particular com essas figurinhas de cerca de 5 cm de altura, conhecidas por “ganchos de meia”, aos quais já me referi, bem como ao respectivo modo de utilização.
Trata-se de objectos funcionais, cuja utilização visa “orientar” e facilitar a utilização de fio no decurso da execução de determinados lavores com aquele material.
Os que apresento na figura, foram modelados pela barrista Liberdade da Conceição (1913-1990). Da esquerda para a direita e de cima para baixo, são sucessivamente: Nossa Senhora, Freira de Malta, Senhora de pezinhos, Peralta e Sargento.
Como exemplares de Arte Popular é possível reconhecer neles um denominador comum: a simplicidade da sua execução. Há dois tipos de figuras: masculinas e femininas. As masculinas, distinguem-se pela pintura, mas em termo de modelação, apenas por aquilo que usam na cabeça. As femininas, em termos de ponto de partida, são modeladas como “Senhora de pezinhos”. Além da pintura, a “Freira de Malta” e a “Senhora de pezinhos”, só se distinguem por aquilo com que protegem a cabeça. Já “Nossa Senhora” distingue-se da “Freira de Malta” pela pintura e porque tem as mãos postas em atitude de oração. Em qualquer das figurinhas, botões, golas e punhos de roupa são pintados e não modelados.
A execução de ganchos de meia é um desafio com que se deparam os barristas que pretendam recuperar artefactos caídos em desuso. Creio que na modelação de qualquer destas figuras ou de outras que venham a criar, deverão resistir a várias tentações: - Não executar ganchos de meia, de maiores dimensões, pois a partir de certo tamanho, se a modelação é facilitada, as dimensões do artefacto carecem de sentido; - Não fazer exemplares com saliências pronunciadas, que retirarão a funcionalidade que deve ser atributo dos ganchos de meia, pelo que passarão a ser meros objectos decorativos.
A Arte Popular tem os seus cânones próprios. No caso dos ganchos de meia, destacam-se dois: simplicidade e funcionalidade. Modelar exemplares muito vistosos, muito rebuscados, com muitos pormenores e desprovidos de funcionalidade, será outra coisa, mas Arte Popular não é concerteza.

sábado, 13 de junho de 2020

Auto do desconfinamento de Santo António


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
- Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?
Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 13 de Junho de 2020

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge


 Fig. 3 – Ricardo Jorge no Laboratório. Ricardo Fonseca (2020).
Fotografia de Luís Mendeiros (2020).
Introdução
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. Por sugestão e com indicações minhas ocorreu em primeiro lugar, a criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de “SÃO ROQUE”, invocado pela comunidade católica como Santo Protector contra as epidemias. Seguiu-se a criação pelas Irmãs Flores das figuras “PERALTA NA PANDEMIA” e “SÉCIA NA PANDEMIA”, retratando em contexto social a resposta possível à pandemia, através do uso de máscaras comunitárias. Finalmente, a criação por Ricardo Fonseca da figura de “RICARDO JORGE”, figura maior da Medicina Social em Portugal, que em 1899 concebeu medidas profiláticas que ainda hoje são usadas no combate às pandemias (Vide Biografia de Ricardo Jorge).
A materialização duma ideia
Contactei o barrista Ricardo Fonseca a quem dei conta da minha intenção de ver modelada a figura de Ricardo Jorge, visando assinalar no barro a figura emblemática máxima do combate às epidemias em Portugal. Lancei-lhe então o repto de ser ele a materializar no barro a ideia que me surgira na mente. Ele foi receptivo e aceitou entusiasticamente a missão que eu lhe atribuíra.
Fontes documentais
Como fontes de inspiração documental, forneci ao barrista duas imagens de Ricardo Jorge em 1899, com a idade de 41 anos. Uma (Fig. 1) da autoria do fotógrafo Guedes de Oliveira, que retrata o médico sentado à sua mesa de trabalho, efectuando uma observação microscópica. Outra (Fig. 2) da autoria do fotógrafo Aurélio Paz dos Reis, que mostra o cientista em pé, frente a uma bancada de laboratório, repleta de utensílios e montagens laboratoriais usadas em Química.
Atributos
Sugeri ao barrista que modelasse a figura de Ricardo Jorge, envergando um traje como o da Fig. 2, mas sentado à mesa de trabalho como na Fig.1. De resto, sublinhei a importância de quatro atributos em Ricardo Jorge. Dois deles de natureza física: uma barba abundante e a utilização de óculos com aros circulares. Os outros dois inerentes à sua actividade profissional: a observação microscópica e o registo de observações. E mais não disse, nem tinha que dizer, pois “Quem sabe da poda é o podador”.
Modelação
No acto da encomenda disse ao barrista que não queria “Obras de Santa Engrácia” e apesar de que “Sem tempo nada se faz”, tinha que ser “Obra começada, obra acabada”. E assim foi. Ricardo Fonseca seguiu “Tintim por tintim” e “Com todos os efes-e-erres”, aquilo que lhe tinha sido sugerido. “Mão vai, mão vem”, a obra lá nasceu, já que “O olho do mestre é régua”. Como é sabido, “As obras mostram quem cada um é”. Neste caso e como sempre, a modelação da figura de Ricardo Jorge pelo barrista Ricardo Fonseca, revelou toda a sua mestria, bom gosto e fidelidade aos cânones da modelação de Bonecos ao modo de Estremoz. A Ricardo Fonseca, o meu muito obrigado pela rápida resposta à chamada e pelo êxito no cumprimento da missão que lhe foi confiada.
Ricardo Jorge por Ricardo Fonseca
Figura antropomórfica masculina, sentada numa cadeira de quatro pés e com costas, tendo as mãos sobre uma mesa de trabalho, também de quatro pés, cujo aspecto castanho-escuro configura madeira, o mesmo se passando com a cadeira. A mão direita empunha aquilo que parece ser uma caneta preta por cima daquilo que figura ser uma folha de papel branco, no qual são visíveis anotações manuscritas. A mão esquerda está apoiada na base daquilo que simula ser um microscópio com componentes cor de latão, à excepção da base circular assente na mesa e que é negra.
Na cabeça, o cabelo é castanho-escuro e a face está coberta por uma barba cerrada. Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, imitando as pestanas e as sobrancelhas. Os olhos estão potenciados por óculos de aros redondos em arame.
Traja um fato castanho-escuro com corte à maneira dos finais do séc. XIX, sendo o casaco do tipo paletó com virados e bolsos de fora, de chapa, do qual não é visível a abotoadura. A parte detrás do casaco ostenta ao fundo uma abertura longitudinal, central. Usa uma camisa branca com colarinhos, cujos punhos saem das mangas do casaco. Sob o colarinho está presa um gravata preta com nó, parcialmente encoberta por um colete cinzento com virados como os do casaco e com uma abotoadura de quatro casas.
A figura usa sapatos negros. Estes, a mesa e a cadeira assentam numa base rectangular cor barro, configurando um chão de tijoleira quadrada.

Biografia de Ricardo Jorge

Nascimento e estudos
Ricardo de Almeida Jorge nasceu na cidade do Porto, a 9 de Maio de 1858, no seio de uma família modesta. Com 16 anos apenas, ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a qual frequentou com brilhantismo, vindo a licenciar-se aos 21 anos com as mais altas classificações.
Vida profissional
Iniciou a sua vida profissional, em 1880, como professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, ocupação que conciliava com a actividade clínica. Em 1883 deslocou-se a Estrasburgo e a Paris em busca de uma aprendizagem impossível de receber em Portugal. Após o regresso a Portugal, iniciou um Curso de Anatomia dos Centros Nervosos e criou o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto.
A Hidroterapia é o interesse que sucedeu à Neurologia, abandonando esta última em 1884, na sequência da epidemia de cólera de 1883. Dedicou-se então à Higiene Social, proferindo conferências que o prestigiaram, o que constituiu um momento chave do sanitarismo em Portugal. Por isso, a Câmara Municipal do Porto convidou-o a associar-se a uma comissão de estudo das condições sanitárias da cidade, no âmbito da qual realizou um inquérito sobre as condições de salubridade urbana. O relatório final (O Saneamento do Porto) foi apresentado em 1888.
Em 1885 elaborou e apresentou no Conselho Superior Público, um relatório sobre o ensino médico em Portugal, que considerava obsoleto face às orientações modernas vigentes noutros países europeus. Este relatório viria depois a servir de base ao Regulamento Geral de Saúde de 1901.
Em 1892 foi convidado para dirigir os Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e chefiar o Laboratório Municipal de Bacteriologia.
Em 1895 foi indigitado professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, o que consolidou o seu prestígio como higienista.
A erradicação da peste bubónica
Entre Junho e Setembro de 1899, o Porto foi assolado pela peste bubónica, a qual diagnosticou, chegando à sua prova clínica e epidemiológica. Visando eliminar a pandemia preconizou a tomada de medidas profiláticas tais como: isolamento de doentes, evacuação de casas, isolamento e desinfecção de locais onde se verificaram ocorrências. Tais medidas conduziram à sua consagração como epidemiologista de renome, mas simultaneamente suscitaram a ira popular, que acicatada por grupos políticos, o forçaram a abandonar a cidade.
A ida para Lisboa
Em Outubro de 1899, já em Lisboa, foi nomeado Inspector-Geral de Saúde e professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Funda em 28 de Dezembro de 1899, o Instituto Central de Higiene, com o intuito de formar sanitaristas e de desenvolver a investigação na área da Saúde Pública. A reforma dos serviços sanitários que promoveu, conduziu à publicação do Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, em 24 de Dezembro de 1901.
Participa em inúmeras iniciativas como a organização da Assistência Nacional Contra a Tuberculose e o Congresso Internacional de Medicina de 1906, no qual presidiu à Secção de Higiene e Epidemiologia. Em 1911 colabora na reforma do ensino médico e em 1912 inicia os seus trabalhos no Office Internacional de Higiene, em Paris, onde se celebrizou. Em 1913 começou a publicar os Arquivos do Instituto Central de Higiene e, em 1914, principiou a edição da série estatística Movimento Fisiológico da População (1914-1925).
Entre 1914 e 1915 preside à Sociedade das Ciências Médicas e nos anos seguintes visita formações sanitárias na zona de guerra em França. Organiza depois a luta contra as epidemias de gripe pneumónica (gripe espanhola), do tifo exantemático e varíola de 1918, consequências das más condições sanitárias do pós-guerra.
Em 1926 foi encarregue de reformar o seu Regulamento de Saúde Pública, de 1901. Por mérito próprio foi escolhido para representar Portugal no Comité de Higiene da Sociedade das Nações. Em 1929 foi nomeado Presidente do Conselho Técnico Superior de Higiene. Mesmo nos últimos anos da sua vida manteve uma intensa actividade.
Médico e Humanista
Os interesses de Ricardo Jorge não se limitaram ao campo da Medicina, da qual foi um ilustre professor e a figura maior da Medicina Social. Foi também um grande humanista cuja vasta obra inclui publicações em âmbitos tão diversos como Arte, Literatura, História e Política. Faleceu em Lisboa, a 29 de Julho de 1939.
Estremoz, Maio de 2020
(Jornal E nº 248, de 11-06-2020)

Fig. 1 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Guedes de Oliveira (1885-1932). Arquivo Municipal do Porto.

Fig. 2 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Aurélio Paz dos Reis (1862-1931). Centro Português de Fotografia, Porto.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Peralta e Sécia (ganchos de meia)


Peralta e Sécia (ganchos de meia). Irmãs Flores.

LER AINDA

Os “ganchos de meia” são Bonecos de Estremoz minúsculos, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.
Trata-se de figuras antropomórficas, modeladas em barro, que depois de cozidas são pintadas e envernizadas.
Em todas elas figuram dois ganchos de arame no tronco. Um à frente, virado para cima, para nele passar o fio, que do novelo pode ser redireccionado para as agulhas. O outro nas costas, virado para baixo, para pregar na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo.
Há vários modelos de gancho de meia, entre os quais o “Peralta” e a “Sécia” Estes foram modelados na actualidade pelas Irmãs Flores e reproduzem modelos do início do séc. XX. Todavia, o “Peralta” e a “Sécia” são figuras mais antigas.
O “Peralta” e a “Sécia” eram as designações atribuídas aos elegantes portugueses desde o sécs. XVIII, que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.