sábado, 13 de junho de 2020

Auto do desconfinamento de Santo António


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
- Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?
Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 13 de Junho de 2020

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