domingo, 30 de outubro de 2022

DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NO LARGO DO OUTEIRO / Decoração apotropaica numa parede



Pormenor da fachada com o que resta da decoração apotropaica do séc. XVII.

Fachada  da casa com os números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz.


Caiar é preciso
No Alentejo existe a tradição ancestral de caiar as casas de branco, o que ocorre durante o Verão. Trata-se de uma tarefa outrora desempenhada essencialmente por mulheres, a quem competia a missão de fazer cumprir o rifão: “Dá-me brancura, dar-te-ei formusura”. O cancioneiro popular alentejano regista que “Nas terras do Alentejo / É tudo tão asseado... / As casas e o coração, / Sempre tudo anda lavado...”. A caiação duma casa podia merecer reparos, desde que não fosse integral: “000
A alvura das paredes é tradicionalmente considerada uma marca identitária do Alentejo, já que o branco maximiza a reflexão da luz solar, conferindo protecção contra a torrina do Sol no Verão.

Da pintura à arqueologia
Pelos mais diferentes motivos, a tradição já não é o que era. A caiação das paredes com recurso a cal branca tem sido substituída pela pintura com tintas de água. É quase regra nas cidades, onde a pintura de paredes exteriores é muitas vezes entregue a pintores profissionais.
Foi o que fez recentemente o meu prezado amigo Nuno Ramalho, face à necessidade de pintura da fachada da casa dos seus pais, sita nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. A fachada encontrava-se com mau aspecto e em determinada zona, a cobertura da mesma encontrava-se mesmo empolada, pelo que antes da aplicação da tinta, os pintores tiverem necessidade de usar jacto de água, para remover as ampolas. De contrário, a pintura não ficaria uniforme.
Qual não foi o espanto, quanto o jacto de água, revela a existência daquilo que configurava ser uma pintura anterior à existência da janela do 1º andar esquerdo e que terá sido sacrificada para rasgar aquela janela. Significa isto que primitivamente a casa só teria a janela do 1º andar direito, a qual seria mais pequena que actualmente, uma vez que as ombreiras foram acrescentadas na parte superior, para a janela ficar com a mesma altura da janela que então foi rasgada no lado esquerdo da fachada.
Qualquer das janelas ostenta sobre as ombreiras, padieiras em alvenaria, características do séc. XVIII, ornamentadas com florões em estuque.
Comparando a tipologia da fachada com a das casas limítrofes, constata-se que falta ali uma chaminé, a qual terá sido sacrificada em benefício da abertura de uma janela, tendo a chaminé sido edificada noutra zona da casa. Trata-se de uma conclusão importante na medida em que a decoração da fachada posta agora a descoberto, era uma decoração da chaminé parcialmente desaparecida para dar lugar a uma nova janela.

O esmiuçar da “pintura”
A análise minuciosa daquilo que parecia ser uma pintura, mostrou que de facto não o era. Na verdade, a técnica usada na decoração da fachada revelou ter sido uma técnica mista, a qual combinou o baixo relevo com o preenchimento do mesmo com uma argamassa colorida com um aditivo castanho avermelhado que poderá ter sido pigmento de óxido de ferro ou tijolo em pó.
O facto de a decoração ter sido efectuada numa chaminé, permite concluir estar-se em presença de uma decoração apotropaica, efectuada com símbolos apotropaicos, isto é, símbolos em relação aos quais existia a crença de possuírem poder para afastar espíritos perversos ou danosos, tais como as bruxas ou o mau olhado. É que existia a crença de que embora as portas e as janelas estivessem bem fechadas, os espíritos malignos poderiam entrar pelas chaminés.
O facto de a parte inferior da decoração ser simétrica em relação ao eixo central e vertical, leva a admitir a forte probabilidade de a composição da decoração ser toda ela simétrica em relação a esse mesmo eixo. A grande incógnita parece ser a parte central da decoração. Todavia são visíveis 3 sectores semicirculares a castanho avermelhado, com um situado num plano superior aos outros dois. Este conjunto parece procurar representar um amontado de pedras, o qual poderá corresponder a uma representação do Calvário, ou seja, da colina onde Jesus terá sido crucificado. A parte desaparecida da representação incluiria assim na sua parte central, uma cruz latina disposta segundo a vertical. A cruz latina é o símbolo principal do cristianismo. Para os cristãos representa não só a crucificação, como evoca a ressurreição e a esperança de vida eterna.
Incluindo a parte desaparecida da decoração apotropaica, o conjunto incluiria 4 símbolos conhecidos por “nove pontos rodeados”, um no centro duma roda e oito distribuídos à volta da mesma. Cada símbolo “9 pontos rodeados” está inscrito noutra roda, a qual reforça o poder do símbolo. A roda é um símbolo de libertação do lugar e do estado espiritual que lhe está associado.
Vejamos qual o simbolismo dos “9 pontos rodeados”. Desses 9 pontos, 1 está no centro da roda central e os outros 8 distribuem-se regularmente ao longo dessa roda. Numa perspectiva cristã, o ponto central corresponde a 1 e representa Deus, o Único, o Princípio de tudo. Os outros 8 pontos correspondem ao oitavo dia, que sucede aos 6 da criação e ao sabat (dia sagrado e de descanso no judaísmo) e é o símbolo da ressurreição, da transfiguração, anúncio da vida eterna. Sintetizando: os “9 pontos rodeados” simbolizam a criação do mundo por Deus, tal como é referida no Genesis e como tal a crença no poder de Deus sobre todas as coisas. A existência de 4 conjuntos de “9 pontos rodeados”, dispostos na decoração atropopaica em quadrangulação em simetria, resulta de o número quatro se comportar na Bíblia Sagrada como aquele que representa a criação de Deus e a totalidade das coisas.
A decoração apotropaica incluiria ainda, aquilo que me parecem ser dois vasos com flores, dispostos de cada um dos lados da cruz latina. Como o simbolismo da decoração apotropaica agora descoberta é de natureza cristã, sou levado a admitir que o vaso com flores possa ser um vaso com açucenas brancas. O vaso é símbolo do princípio feminino e as açucenas simbolizam a pureza, a castidade, a feminilidade e a virgindade da Virgem Maria. Resumindo: o vaso com açucenas é uma representação simbólica da Virgem Maria. A existência de dois vasos com açucenas, um de cada lado da cruz latina, é justificado porque a Virgem Maria como Mãe de Jesus, tem associado a ela o princípio feminino, ao qual era na antiguidade atribuído o número dois.
Na decoração apotropaica objecto do presente estudo, aparecem representados simbolicamente: DEUS (“9 pontos rodeados”), JESUS (Cálvário com cruz latina) e a VIRGEM MARIA (Vaso com açucenas). Significa isto que no seu conjunto, a decoração apotropaica visa invocar a protecção do Poder Divino para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. De salientar que para os cristãos, Jesus e Deus é um só, além que que é ilimitado o poder de intercessão da Virgem Maria junto de Jesus.
A decoração apotropaica está datada com um número que me parece ser 1668, número inscrito numa figura delimitada por quatro chavetas dispostas entre 4 pontos, como se formassem um losango. Tanto quanto me é dado conhecer dos trabalhos de Luís Lobato de Faria (2), esta será a mais antiga decoração apotropaica do Alentejo.

Outeiro, quem te viu
A oficina da velha barrista Gertrudes Rosa Marques (1840-1975) situada no Outeiro, foi visitada em 1913 pelo etnógrafo D. Sebastião Pessanha (1892-1975), que lhe encomendou Bonecos de Estremoz para o Museu Etnológico Português e publicou textos sobre o seu trabalho. O mesmo viria a acontecer em 1916 com o etnólogo Luís Chaves (1888-1975).
Dada a singularidade e beleza do seu casario, o Largo do Outeiro, por muitos considerado uma rua, inspirou artistas plásticos locais que o perpetuaram nos seus trabalhos: Mestre Joaquim Prudêncio (1887-1970) em aguarela de 1936 e Roberto Alcaide (1903-1979) em guache de 1944.
Da Rua do Outeiro, rua de oleiros e bonequeiras, nos fala a “Marcha do Outeiro”, vencedora do concurso de Marchas Populares de Estremoz, em 1948: “O outeiro iluminado / de rubras malvas bordado, / tanta graça Deus lhe pôs!) / que foi berço das primeiras / fantasias das oleiras / nos bonecos de Estremoz!”. A letra da marcha era da autoria de Luís Rui, pseudónimo literário de Joaquim Vermelho (1927-2002), que se tornaria um destacado estudioso da barrística popular estremocense.
No 3º quartel do séc. XX, o Largo do Outeiro revelava ainda enorme beleza, muita dela proveniente da garridice dos alegretes floridos que ladeavam as casas, aos quais as mulheres dedicavam especial atenção, parecendo que competiam umas com as outras. O Largo estava cheio de vida e as crianças tinham o privilégio de brincar à vontade, porque a escadaria só permitia trânsito pedonal.

Outeiro, quem te vê
Segundo Nuno Ramalho, o Largo do Outeiro é constituído por 21 casas, a que correspondem 29 números de polícia. 2 dessas casas têm os telhados abatidos, o que corresponde a 4 números de polícia desabitados. Para além destes, há mais 11 números de polícia desabitados. A percentagem de números de polícia desabitados é assim superior a 50%, o que é revelador da falta de condições de habitabilidade das casas.
A limpeza da calçada do pátio frontal das casas, outrora assegurado pelos moradores, já conheceu melhores dias. Os alegretes outrora repletos de flores estão quase todos vazios e alguns foram mesmo indevidamente cimentados. O aspecto geral do Largo é um aspecto de abandono, que faz lembrar um moribundo à espera que o possam salvar.

Quem acode ao Outeiro?
A decoração apotropaica agora descoberta, que tudo leva a crer seja a mais antiga conhecida no Alentejo, pode-se tornar num pólo de atracção turística, desde que devidamente divulgada.
Que poderá o actual Executivo Municipal fazer pela recuperação do Largo do Outeiro e ruas limítrofes? É que a história da barrística popular estremocense passa por ali e os executivos municipais precedentes, esqueceram-se disso.

Este texto foi publicado no jornal E nº 298, de 27 de Outubro de 2022, numa versão provisória,
existente á hora do fecho da edição, na noite do dia 25. A versão aqui presente é posterior e
ainda não é a versão definitiva. 

BIBLIOGRAFIA
(1) - CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
(2) - LOBATO DE FARIA, Luís. Estudos - Luis Lobato de Faria. [Em linha]. Disponível em: https://alentejoinportugal.blogspot.com/2020/06/alentejo-apotropaico-i-parte.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


















domingo, 23 de outubro de 2022

Imortalidade

 

Luís Brito da Luz. Criação de Ricardo Fonseca (1986-).

Transcrevo com a devida vénia
um excelente texto de Luís Brito da Luz,
onde se fala da imortalidade, da amizade
e dos Bonecos de Estremoz

Objecto de fascínio pela humanidade desde o início dos tempos, a imortalidade sempre moveu o homem na tentativa de viver como uma forma de vida, física ou espiritual, durante um período infinito de tempo. A Epopeia de Gilgamesh, poema épico da Mesopotâmia do século vinte e dois anterior ao nascimento de Cristo, constituído por doze placas de escritas cuneiforme, cada uma com trezentos versos, uma das primeiras obras literárias da humanidade, é essencialmente a procura de um herói pela imortalidade. Agarrou-se o homem, primeiramente à imortalidade espiritual, dado que durante a maior parte do tempo em que vivemos, era a única condição possível de vida eterna. A crença na vida após a morte é um princípio fundamental de muitas religiões (cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, zoroastrismo, etc.) e dos homens que as professam. Durante séculos e séculos este princípio confortava os vivos dotados de alma eterna.
Muito recentemente, cientistas, futurólogos, filósofos e adeptos do transumanismo (transformação da condição humana com o uso de tecnologias emergentes) defendem que a imortalidade é possível em humanos já neste século, alcançável através de engenharia genética e implantes tecnológicos, enquanto outros, através de rejuvenescimento biológico acreditam no sustar do envelhecimento proporcionando aos seres humanos a tão desejada imortalidade biológica, mas não a invulnerabilidade à morte por lesão física (a probabilidade de um individuo morrer desta forma, com base em dados estatísticos de 2002, seria de uma vez em cada mil e setecentos anos). Também a criogenia mantém a esperança de que os mortos possam ser revividos no futuro e a Mind upload (conceito de transferência de um cérebro humano a um meio alternativo que oferece as mesmas funcionalidades) daria a imortalidade da consciência.
Para já, e parafraseando Franz Kafka que diz que “o sentido da vida é que ela termina”, apenas conseguimos aumentar a esperança média de vida, e não estender essa mesma vida (pessoas com mais de cem anos já viviam há séculos) e conhecer a imortalidade biológica, em pelo menos uma espécie de água-viva, a felizarda Turritopsis nutricula.
Também a Fama, para os famosos claro, é um meio de alcançar a imortalidade, mas apenas semanticamente.
No que a mim me diz respeito, até a ciência responder convenientemente a este desígnio, sou imortal espiritualmente pois professo a fé católica e também sou imortal porque me perpetuei ao ser pai, recorrendo à ajuda de Deus que me permita a persistência da minha vida através do tempo, com a minha prole sobrevivente ou material genético que ficar. Mas também sou imortal, semanticamente, pelas obras que fiz e que escrevi, particularmente nos livros que editei, nos vinhos que produzi e nas árvores que plantei. Igualmente, também serei imortal nas memórias dos que me amam, tal como aqueles que eu amei e já partiram, continuam vivos nas minhas.
Agora, o que eu não sabia, é que tinha alcançado a imortalidade de uma outra maneira. Foi preciso fazer cinquenta anos para me tornar novamente imortal. Por ocasião da festa de celebração desta especial e única data, e com muita pena minha por o meu amigo Fernando Aldeagas, o Mac como é tratado, não poder estar fisicamente comigo, por motivos de saúde, pediu-me que fosse a sua casa, uns dias depois, pois ele e a Elsa, sua mulher, tinham uma prenda para me oferecer. Ao abrir uma caixa de cartão, gentilmente entregue pela Elsinha, e pomposamente forrada, encontrei lá dentro um boneco de Estremoz devidamente embrulhado e acondicionado. Ao colocar o boneco nas mãos, facilmente depreendi pela experiência que fui adquirindo ao longo dos anos como colecionador de bonecos de Estremoz, que o mesmo era da produção da famosa oficina das Irmãs Flores, Maria Inácia e Perpétua Fonseca aprendizes, nos primórdios da sua carreira, de Sabina Santos, descendente da famosa Olaria Alfacinha, a qual remonta a finais do seculo dezanove. Ao colocar o boneco de cabeça para baixo apercebi-me que o artista não era uma das irmãs, mas o seu sobrinho Ricardo Fonseca, também ele artista e a trabalhar na oficina com a tias. Estava assinado com o seu nome, datado e com o nome “Estremoz” como é costume na produção desta casa. Restava-me virar a peça de frente para ter uma surpresa inesquecível. Corei a olhar para mim mesmo como se estivesse a olhar para o espelho, no exacto momento em que o Mac me diz “és tu!”. Fiquei estupefacto pois imediatamente realizei a perfeição da obra. Os pormenores são soberbos, com a calvície a emergir num cabelo a pedir para ser cortado, as patilhas exactamente no sítio certo, a barba feita, a camisa da Ralph Lauren eximiamente passada, diria mesmo quase engomada, e aberta até ao sítio certo, as três dobras nas mangas, dois dos meus atributos preferidos, os livros e as uvas a metaforizar o vinho, as calças de gangas passadas mas não vincadas com as bainhas correctas, o cinto a condizer com os sapatos, estes italianos, castanhos e sempre bem engraxados. Um hino à minha pessoa.
Não sei qual foi a foto que o Mac escolheu para o Ricardo se basear (apenas me disse que lhe tinha entregue uma foto minha), contudo afianço sem qualquer hesitação que o trabalho está muito superior à reprodução.
Dado que a Produção de Figurado em Barro de Estremoz integra o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, desde 2014, e é Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO desde 07 de Dezembro de 2017, também eu tinha acabado de me tornar imortal, uma vez mais, tornando-me também Património Cultural Imaterial da Humanidade, ainda por cima certificado (a produção dos bonecos de Estremoz está certificada desde 07 de Dezembro de 2018).
Das muitas prendas que recebi pelo meu aniversário, todas elas excelentes, sem dúvida alguma que esta foi a que mais me tocou no coração.
Bem hajam pela vossa amizade!

Estremoz, 8 de Outubro de 2022
Luís Brito da Luz

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Cerâmica de Redondo – Prato Brasonado


Fig. 1 - Prato brasonado, de barro vermelho, vidrado, de Redondo.
Olaria desconhecida. 3º quartel do séc. XX.

Faça-se luz e a luz fez-se
Adquiri recentemente um pequeno prato brasonado, de barro vermelho, vidrado, de Redondo (Fig. 1). Na origem da aquisição esteve o facto de ser mais um exemplar brasonado a juntar à minha pequena colecção. Ao contrário daqueles que o precederam, adquiri-o sem saber o que representava. Todavia e como é meu timbre, assumi desde logo a missão de suprir esta lacuna, consultando a bibliografia disponível e que cito no final do presente estudo.
A primeira ideia que me surgiu no espírito foi a de o brasão poder corresponder a algum titular de Redondo. Admiti que o tipo de titular pudesse vir a ser identificado pela espécie de coroa que encima o escudo de armas. Foi tiro e queda, uma vez que vim a descobrir que o título era o de Conde e que a lista de condados de Portugal dava conta da existência do título de Conde de Redondo. Faltava conhecer a imagem de tal brasão, o que veio a acontecer. Revelo de seguida todo o percurso do meu estudo.

Uma incursão ao universo heráldico
Os títulos nobiliárquicos eram distinções concedidas pelo Rei aos aristocratas, que permitiam diferenciar o posicionamento hierárquico dos diferentes membros da aristocracia e que tinha em conta as funções desempenhadas pelos respectivos titulares e a sua posição hierárquica em relação ao Rei. Os títulos nobiliárquicos eram vitalícios e hereditários. Os títulos de nobreza, em número de cinco, por ordem hierárquica decrescente eram: Duque, Marquês, Conde, Visconde e Barão.
A cada título corresponde um brasão de armas, encimado por um coronel [1], o qual varia com o tipo de título:

Fig. 2 – Coroneis de títulos nobiliárquicos.

Foquemo-nos apenas nos títulos de Conde. A outorga de títulos condais em terras portuguesas é anterior à Fundação da Nacionalidade e remonta ao tempo dos reis godos. Na Idade Média, um Conde era um senhor feudal, dono de um ou mais castelos e de terras denominadas Condado: Todavia, a partir do século XIV, o título nobiliárquico foi utilizado apenas como grau de nobreza. A atribuição do título pressupunha o reconhecimento da fidelidade ao monarca e o desempenho da função de conselheiro do Rei. No decurso da Monarquia Portuguesa (1143-1910) foram atribuídos 418 títulos condais, que tal como os restantes títulos nobiliárquicos foram extintos com a proclamação da República em 1910.
O título de Conde de Redondo, que foi o título não real que teve mais titulares, foi criado pelo rei D. Manuel I, por carta datada de 2 de Junho de 1500, a favor de D. Vasco Coutinho (c.1450-1522) [2]. No entanto, de acordo com a compilação Resenha das famílias titulares do reino [6], este título foi criado por D. João II de Portugal, em 16 de Março de 1486 e atribuído igualmente a. D. Vasco Coutinho. Na página 378 do referido livro, assim como na página 483 do livro Memorias Historicas e Genealogicas dos Grandes de Portugal [1] (Fig. 3), vem reproduzido o brasão do Conde de Redondo.

Fig. 3 – Armas dos Condes de Redondo.

Até á Implantação da República em 1910 houve 17 portadores do título Conde de Redondo, sendo o 17º, D. Fernando José Luís Burnay de Sousa Coutinho (1883-1945). Após a Implantação da República, foi abolido o sistema nobiliárquico, tendo ficado pretendentes ao título ao título: D. António Luís Carvalho de Sousa Coutinho (1925-2007) e D. Fernando Patrício de Portugal de Sousa Coutinho.

Descrição do Brasão de Armas dos Condes de Redondo
O brasão de armas dos Condes de Redondo (Fig. 3) apresenta uma composição muito simples. O escudo está dividido em quarteis: No 1º e 4º quarteis estão representadas cinco quinas (escudos). No 2º e 3º quarteis está representado um leão.
As 5 quinas simbolizam os 5 reis mouros derrotados por D. Afonso Henriques na batalha de Ourique. Cada quina contém 5 bolinhas brancas que representam as chagas de Jesus Cristo na cruz, o qual teria aparecido a D. Afonso Henriques antes do início daquela Batalha.
O leão, considerado o rei dos animais goza da reputação de força, de bravura e de nobreza. O simbolismo heráldico do leão traduz poder, orgulho, domínio, segurança, sabedoria e justiça. O leão está representado com as garras e a língua expostas, pelo que é habitual dizer que a figura se encontra armada (garras) e lampassada (língua). A posição do leão leva a dizer que ele está numa atitude rampante ou de combate. Na verdade, ele está representado em pé, erecto de perfil, com as patas dianteiras levantadas, assente numa pata traseira e com a outra levantada, pronta para o ataque.
O escudo está encimado por um coronel cujo desenho configura um coronel de Conde.

Descrição do prato
Prato em barro vermelho, vidrado, de Redondo. Covo, brasonado, de pequenas dimensões (18x12x3,5 cm), com superfície interna de cor creme, de aba larga ligeiramente côncava e bordo plano. Decoração esponjada a verde na aba. Decoração esgrafitada e pintada no fundo com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho. O motivo decorativo configura o Brasão de Armas de Conde em representação naif. O escudo, esgrafitado a ocre castanho, encontra-se dividido em quarteis. No 1º e 4º quarteis está representado um leão esgrafitado a ocre castanho em fundo amarelo. No 2º e 3º quarteis estão representadas cinco quinas (escudos), esgrafitadas a ocre castanho e com fundo verde, tudo em fundo creme. O escudo encontra-se rematado por um coronel, esgrafitado a ocre castanho em fundo amarelo e cujo traçado corresponde a um coronel de Conde.
O brasão condal encontra-se ladeado por dois ramos, aparentemente de alecrim, esgrafitados a castanho em fundo verde. De realçar que a flor do alecrim está associada à coragem, à fidelidade e à espiritualidade.

Nota final
Comparando o brasão do prato (Fig. 1) com o brasão dos Condes de Redondo (Fig. 3), concluo que no prato e relativamente ao brasão dos Condes de Redondo, os cavalos trocaram a posição com as quinas e vice-versa. Presumo que o oleiro tenha pretendido perpetuar no barro, o brasão dos Condes de Redondo, mas tenha trocado a posição das figuras heráldicas nos quarteis.

BIBLIOGRAFIA
[1] - CAETANO DE SOUSA, D. António. Memorias Historicas e Genealogicas dos grandes de Portugal. Regia oficina SYLVIANA e, da Academia Real. Lisboa, 1775. [Em linha]. Disponível em: https://books.google.pt/books/about/Memorias_historicas_e_genealogicas_dos_g.html?id=LncOAAAAQAAJ&printsec=frontcover&source=kp_read_button&hl=pt-PT&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[2] - GENEALL. Condes de Redondo. [Em linha]. Disponível em: https://geneall.net/pt/titulo/1057/condes-de-redondo/ . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
3[3] – REI DE ARMAS. Brasão. [Em linha]. Disponível em: https://reidarmas.com/brasao . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[4] – SIGNIFICADOS. Alecrim. [Em linha]. Disponível em: https://www.significados.com.br/alecrim/ . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[5] – SIGNIFICADOS. Títulos de Nobreza. [Em linha]. Disponível em: https://www.significados.com.br/titulos-de-nobreza/ . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[6] - TORRES, João Carlos Feo Cardoso de Castelo Branco e; MESQUITA, Manuel de Castro Pereira de. Resenha das Familias Titulares do Reino de Portugal. Imprensa Nacional. Lisboa, 1838. [Em linha]. Disponível em: https://ia802701.us.archive.org/4/items/resenhadasfamili02silvuoft/resenhadasfamili02silvuoft.pdf . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[7] - WIKIPÉDIA. Conde de Redondo. [Em linha]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Memorias_Historicas_e_Genealogicas_dos_Grandes_de_Portugal_-_Conde_de_Redondo.png . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[8] - WIKIPÉDIA. Conde de Redondo. [Em linha]. Disponível em: https://www.wikiwand.com/pt/Conde_de_Redondo . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].
[9] - WIKIPÉDIA. Lista de condados em Portugal. [Em linha]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_condados_em_Portugal . [Consultado em 11 de Outubro de 2022].

Hernâni Matos



[1] Um coronel é uma pequena coroa com ornamentos fixados num anel de metal. É utilizado por nobres nos seus brasões de armas para mostrar a hierarquia nobiliárquica do detentor.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Centro Histórico de Estremoz: Do autismo à militância ecológica

 


Fotografias de Rui Dias
Muralhas semi-limpas
“Vamos limpar as muralhas da zona histórica!” - assim se designava a acção promovida no passado dia 5 de Outubro pela União de Freguesias de Estremoz - Santa Maria e Santo André, a qual visava sensibilizar para as questões ambientais e contribuir para a limpeza do terreno junto às muralhas.
Face ao convite-apelo-desafio lançado, compareceram 15 valoroso(a)s guerreiro(a)s, os quais como refere o Hino da Intersindical, foram ali lutar com as armas que tinham nas suas próprias mãos e que eram, nem mais nem menos, as luvas protectoras fornecidas pela organização. Entre as dez horas e o meio-dia e meia, conseguiram limpar a zona junto às Portas de Évora, o que deu para encher por duas vezes um atrelado do Município e uma vez a carrinha de caixa aberta da União de Freguesias.
A jornada de trabalho permitiu apenas limpar metade das muralhas junto ao Centro Histórico, pelo que a organização vai oportunamente marcar uma nova data para a recolha do restante lixo.

Às armas! Às armas! Contra o lixo marchar, marchar!
Bem podiam ter sido estas as palavras de incitamento ao combate ecológico do passado de 5 de Outubro, já que os intervenientes na contenda revelaram extremoso pundonor, fruto decerto da sua elevada consciência ecológica, social e política. Entre eles figuravam os membros da Junta da União de Freguesias e o Vereador do Pelouro do Ambiente. Irmanados num mesmo propósito, entre eles existia um elo comum: pertenciam todos às esquerdas locais. Por outras palavras: a direita remeteu-se comodamente a penates. A rapaziada das laranjadas e os furta-cores, entrincheirados nas redes sociais, preferem a partir daí, mandar os seus bitaites doutorais sobre o assunto, pois sempre é mais cómodo perorar que dar o corpo ao manifesto.

Santiago!
Era o grito de guerra lançados pelos cristãos nas batalhas pela reconquista cristã da Península Ibérica. Santiago foi no passado dia 5 de Outubro, o bairro alvo da acção promovida pela União de Freguesias de Estremoz - Santa Maria e Santo André. Para tal, a acção foi antecedida de trabalho da mediadora cultural, houve distribuição de folhetos e o Presidente da União de Freguesias falou com moradores. Todavia, o bairro de Santiago fechou-se em copas, como se aquilo não tivesse nada a ver com eles.

Associações, associações, lixo à parte
As associações culturais e desportivas locais, que habitualmente solicitam apoios de índole diversa, também foram convidadas a associar-se à acção promovida pela União de Freguesias, mas o resultado foi moita-carrasco. Reciprocidade? O que é isso?
Por ali não se viram também escuteiros, ainda que o ideário escutista pressuponha a prática diária de uma boa acção e encare os escuteiros como os principais guardiões da natureza e do meio ambiente.
E as escolas não têm clubes vocacionados para a defesa do ambiente e para o exercício da cidadania? Pois têm.

E os papa-lanches?
Há fregueses que não faltam a uma iniciativa da Junta. Pudera, é que no fim há sempre um lanchezinho para dar ao dente e molhar o bico. Desta vez não foram. Pudera, desta vez a iniciativa era a seco.

Limpar o que está semi-sujo
Fico a guardar com expectativa os resultados e a natureza dos participantes na 2.ª etapa da acção “Vamos limpar as muralhas da zona histórica”. Depois “É preciso dar tempo ao tempo”, já que como nos diz a canção de Fausto, é sabido “que atrás dos tempos vêm tempos / e outros tempos hão-de vir”.

E depois?
O futuro o dirá. Das duas uma: ou a sensibilização do bairro de Santiago para as questões ambientais resulta e deixa de haver prevaricação ou, pelo contrário, há moradores que num total desrespeito pela vida em sociedade, continuam a prevaricar. Neste último caso, o Município de Estremoz terá inescapavelmente de agir. Para tal, dispõe de uma Divisão de Ambiente e Serviços Urbanos com missões perfeitamente definidas, legislação portuguesa actualizada sobre o assunto e fiscais para andar no terreno. Só se torna necessário olear a máquina, no caso de esta se encontrar perra. E depois é aplicar coimas, o que é da mais elementar justiça, de acordo com o princípio do poluidor pagador, conceito através do qual se imputa ao poluidor a responsabilidade de arcar com os custos resultantes da poluição. É uma atitude que terá de ser tomada de olhos vendados e sem pensar em votos.

Publicado no nº 297 do jornal E, em 13-10-2022







quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Estremoz e o 5 de Outubro

 

Proclamação da República Portuguesa. Litografia de autor desconhecido. 1910.

 

A  proclamação da República em Lisboa
O derrube da Monarquia a 5 de Outubro de 1910 foi fruto da acção doutrinária e política do Partido Republicano Português, criado em 1876 e cujo objectivo essencial foi desde o princípio, a substituição do regime.
Com a queda da Monarquia a 5 de Outubro de 1910, há uma mudança de paradigma. Uma Monarquia com oito séculos é substituída por uma República que tomou o poder nas ruas de Lisboa e depois de o proclamar às varandas da Câmara Municipal, o transmitiu para a província à velocidade do telégrafo.
As instituições e símbolos monárquicos (Rei, Cortes, Bandeira Monárquica e Hino da Carta) são proscritos e substituídos pelas instituições e símbolos republicanos (Presidente da República, Congresso da República, Bandeira Republicana e A Portuguesa), o mesmo se passando com a moeda e as fórmulas de franquia postais.

A proclamação da República em Estremoz
Desde 1891-92, que existia o Centro Republicano de Estremoz, fundado por Júlio Augusto Martins (1866-1936) no 1º andar do edifício da antiga Misericórdia, situado no chamado Largo da Porta Nova. No rés-do chão funcionava a Sociedade Recreativa Popular Estremocense (Porta Nova), também fundada nessa época. A semelhança dos congéneres espalhados pelo país, o Centro Republicano de Estremoz desenvolvia actividades que incluíam não só a militância política e a formação ideológica, mas também a acção cultural e pedagógica.
Em Estremoz quem recebeu o telegrama do Ministro do Interior António José de Almeida anunciando a proclamação da República em Lisboa, foi o empresário João Francisco Carreço Simões (1893-1954) seu amigo pessoal e igualmente membro do Partido Republicano. Seria ele a proclamar a República no dia 6 de Outubro de uma sacada da Câmara Municipal de Estremoz, da qual viria a ser Vice-Presidente, durante a presidência de Júlio António Martins (1910-1911). Após a proclamação decorreu um cortejo pelas ruas da cidade, no decurso do qual foi entoada “A Portuguesa” e gritados “Viva a República!”

Antes do 25 de Abril
“Antes do 25 de Abril, comemorava-se o 5 de Outubro com uma romagem ao cemitério de Estremoz, que reunia velhos republicanos como o Cândido ferrador, o Saturnino Martins, o Abílio Maleitas e o Francisco Joaquim Baptista, mais conhecido por Chico das Metralhadoras. Iam com uma bandeira nacional à frente, já que não podiam levar outra e a bandeira nacional era e é, a bandeira da República. Nesse dia, o Chico das Metralhadoras tinha a bandeira da República hasteada numa janela da sua casa, sita na rua das freiras. Era a sua maneira de ilustrar a “Trova do vento que passa” de Manuel Alegre:

“Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.”

Houve muitos homens que contribuíram para a formação da minha personalidade e para além do meu pai, um dos mais importantes foi, sem dúvida, o Chico das Metralhadoras, permanentemente envolvido em angariação de fundos para a rotativa do jornal República e para os bombeiros locais e que, por mesquinhez de alguns e por memória curta de outros, foi injustamente esquecido.
No 5 de Outubro íamos almoçar uma bacalhauzada à do Xico das Metralhadoras. Eu, o meu pai e outros amigos para ali convidados: O Pelágio do notariado, o Francisco Ramos do Mendes Meira e Niza, o Fernando Gomes mecânico, o Vicente Rosado da Sagres, o Sargento Luís do Tabaquinho e Gonçalves e o Zé Luna da Câmara e do Estremoz.” (1)

O Centenário da República
Em 5 de Outubro de 2010, a Câmara Municipal de Estremoz, em parceria com entidades militares e civis, assinalou o Centenário da República, visando comemorar o evento e recuperar a memória e homenagear aqueles que de entre nós, participaram na sua Proclamação.
As comemorações tiveram início de manhã, com lançamento de foguetes, a que se seguiu o desfile das bandas filarmónicas do concelho. Seguidamente, teve lugar a Cerimónia Oficial em frente aos Paços do Concelho. Esta iniciou-se com o içar da Bandeira Nacional, seguindo-se a execução sucessiva dos Hino Nacional, da Cidade de Estremoz e Maria da Fonte pelas bandas filarmónicas do concelho. Terminada esta, tiveram lugar intervenções do Vice-Presidente da Câmara e do Presidente da Assembleia Municipal.
Seguiu-se o descerramento de uma placa na parede do edifício dos Paços do Concelho, em homenagem a João Francisco Carreço Simões, que ali proclamou a República em 6 de Outubro de 1910. As comemorações terminaram na parte da manhã com a inauguração sucessiva de duas exposições: "República - Letras e Cores, Ideias e Autores" no claustro do edifício dos Paços do Concelho e "A República para além de Lisboa 1908-1912" no antigo Centro Republicano. Da parte da tarde, teve lugar uma romagem ao cemitério de Estremoz, visando homenagear João Francisco Carreço Simões, cuja figura foi exaltada através da intervenção de um familiar.

5 de Outubro de 2022
“Vamos limpar as muralhas da zona histórica!” – Assim se designa a acção a promover no próximo dia 5 de Outubro pela União de Freguesias de Estremoz – Santa Maria e Santo André, com o apoio da Câmara Municipal de Estremoz. De acordo com a Junta de Freguesia, a iniciativa tem um duplo objectivo: sensibilizar para as questões ambientais e contribuir para a limpeza do terreno junto às muralhas. De acordo com a entidade organizadora trata-se de uma oportunidade única para mudar comportamentos de cidadãos, que dispondo de contentores em número suficiente no local, deliberadamente despejam lixos doméstico naquela zona, o que dá uma má imagem da cidade.
Não é a primeira vez que uma actividade deste tipo é promovida no local, saldando-se por uma reincidência de incivilidade comportamental dos moradores da zona. Daí que não seja de admirar a existência de algumas atitudes de pessimismo face à eficácia da acção a promover pela Junta. Por outras palavras, há quem pense que a zona vai ficar limpa, mas depois vai voltar tudo ao mesmo. Há ainda quem teça outros comentários, que pelo seu teor e índole discriminatória, me recuso a veicular aqui.
Pela minha parte, aplaudo a iniciativa da Junta e faço votos para que seja bem-sucedida, o que não é um dado adquirido e que só o futuro confirmará. Além disso, permito-me produzir uma reflexão sobre o assunto.

Educar é preciso!
A zona onde a Junta de Freguesia vai desenvolver a iniciativa a que se propôs, corresponde ao Bairro de Santiago, o qual é desde sempre a zona mais pobre, desfavorecida e degradada da cidade, eufemisticamente conhecida por “ilha brava” nos anos 60 do séc. XX. A condição social do Bairro reflectiu-se sempre numa baixa escolaridade que o tornou parcialmente impermeável a conceitos de cidadania transmitidos através da instrução e educação escolar. É uma situação que ainda perdura e que urge ultrapassar, usando mediadores sociais que sejam aceites pela comunidade e que lhes façam sentir como eles são importantes na resolução de um problema que acaba por os afectar a eles próprios.
Sobre o descarte de lixos torna-se necessário fazer compreender que ele deve ser feito nos contentores ou ilhas ecológicas, para permitir a respectiva gestão através da reciclagem, compostagem, aterro sanitário ou incineração. É preciso também fazer compreender que o descarte inadequado dos lixos fora dos contentores ou ilhas ecológicas, tem impactos ambientais que se traduzem na contaminação do solo, da água e do ar, que podem estar na origem de doenças diversas e conduzir à degradação ambiental e ter reflexos no turismo, o que se traduz em custos sociais e económicos.
Seguidamente é preciso fazer compreender que na compra de artigos de consumo, se não pudermos comprar certos produtos a granel, há que optar por embalagens recicláveis, visando diminuir o consumo de recursos não renováveis, como petróleo e minerais, bem como o consumo de energia que a maioria das vezes não provém de energias renováveis.
Creio que tudo isto é necessário, porque a educação e a cultura são vectores de transformação da mente humana, que tornam as pessoas mais livres de preconceitos e condicionantes, tornando-as mais responsáveis e sociáveis.

(1) - MATOS, Hernâni. FRANCO-ATIRADOR, TEXTOS DE CIDADANIA DE UM ALENTEJANO DE ESTREMOZ. Edições Colibri. Lisboa, 2017.

Publicado no jornal E nº 296 de 29 de Setembro de 2022 

Romagem de republicanos ao cemitério de Estremoz no dia 5 de Outubro de 1962.
aqui estão parados na Avenida de Santo António. Presentes entre outros, António
Vão (estafeta), Xarepe (Máquinas Oliva), Saturnino Martins (Casa Verde), António
Parelho (Brados do Alentejo), António Cândido (ferrador), Furtado da Loja, Francisco
Gonçalves (Farmácia Godinho), Artur Assunção (Farmácia Costa), Abel Violante
Augusto (moldurador) com a bandeira, Francisco Baptista (ferroviário), Machadinho
(enfermeiro),  Eduardo Movilha (carpinteiro) e Carmem Movilha (neta) – Cortesia de
Carmem Movilha.

Placa descerrada em 5 de Outubro de 2010 na parede do edifício dos
Paços do Concelho de Estremoz.

Cartaz anunciador da iniciativa da União das Freguesias de Estremoz
no dia 5 de Outubro de 2022.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Esta é a estória de ser coleccionador






Ando sempre à "coca" de coisas que povoam o meu imaginário. Nessas andanças descubro também, coisas que nunca me passou pela cabeça que pudessem existir e outras que jamais pensei que pudessem vir até mim. Sim, porque por vezes, as coisas vêm até mim, sem as procurar. É como se eu as atraísse e há coisas a que de modo algum consigo resistir..
Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra. Bom e há ainda também as estórias que eu invento, que me nascem, florescem e frutificam na cabeça. São estórias e mais estórias...
Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 27 de Setembro de 2022