domingo, 30 de outubro de 2022

DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NO LARGO DO OUTEIRO / Decoração apotropaica numa parede



Pormenor da fachada com o que resta da decoração apotropaica do séc. XVII.

Fachada  da casa com os números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz.


Caiar é preciso
No Alentejo existe a tradição ancestral de caiar as casas de branco, o que ocorre durante o Verão. Trata-se de uma tarefa outrora desempenhada essencialmente por mulheres, a quem competia a missão de fazer cumprir o rifão: “Dá-me brancura, dar-te-ei formusura”. O cancioneiro popular alentejano regista que “Nas terras do Alentejo / É tudo tão asseado... / As casas e o coração, / Sempre tudo anda lavado...”. A caiação duma casa podia merecer reparos, desde que não fosse integral: “000
A alvura das paredes é tradicionalmente considerada uma marca identitária do Alentejo, já que o branco maximiza a reflexão da luz solar, conferindo protecção contra a torrina do Sol no Verão.

Da pintura à arqueologia
Pelos mais diferentes motivos, a tradição já não é o que era. A caiação das paredes com recurso a cal branca tem sido substituída pela pintura com tintas de água. É quase regra nas cidades, onde a pintura de paredes exteriores é muitas vezes entregue a pintores profissionais.
Foi o que fez recentemente o meu prezado amigo Nuno Ramalho, face à necessidade de pintura da fachada da casa dos seus pais, sita nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. A fachada encontrava-se com mau aspecto e em determinada zona, a cobertura da mesma encontrava-se mesmo empolada, pelo que antes da aplicação da tinta, os pintores tiverem necessidade de usar jacto de água, para remover as ampolas. De contrário, a pintura não ficaria uniforme.
Qual não foi o espanto, quanto o jacto de água, revela a existência daquilo que configurava ser uma pintura anterior à existência da janela do 1º andar esquerdo e que terá sido sacrificada para rasgar aquela janela. Significa isto que primitivamente a casa só teria a janela do 1º andar direito, a qual seria mais pequena que actualmente, uma vez que as ombreiras foram acrescentadas na parte superior, para a janela ficar com a mesma altura da janela que então foi rasgada no lado esquerdo da fachada.
Qualquer das janelas ostenta sobre as ombreiras, padieiras em alvenaria, características do séc. XVIII, ornamentadas com florões em estuque.
Comparando a tipologia da fachada com a das casas limítrofes, constata-se que falta ali uma chaminé, a qual terá sido sacrificada em benefício da abertura de uma janela, tendo a chaminé sido edificada noutra zona da casa. Trata-se de uma conclusão importante na medida em que a decoração da fachada posta agora a descoberto, era uma decoração da chaminé parcialmente desaparecida para dar lugar a uma nova janela.

O esmiuçar da “pintura”
A análise minuciosa daquilo que parecia ser uma pintura, mostrou que de facto não o era. Na verdade, a técnica usada na decoração da fachada revelou ter sido uma técnica mista, a qual combinou o baixo relevo com o preenchimento do mesmo com uma argamassa colorida com um aditivo castanho avermelhado que poderá ter sido pigmento de óxido de ferro ou tijolo em pó.
O facto de a decoração ter sido efectuada numa chaminé, permite concluir estar-se em presença de uma decoração apotropaica, efectuada com símbolos apotropaicos, isto é, símbolos em relação aos quais existia a crença de possuírem poder para afastar espíritos perversos ou danosos, tais como as bruxas ou o mau olhado. É que existia a crença de que embora as portas e as janelas estivessem bem fechadas, os espíritos malignos poderiam entrar pelas chaminés.
O facto de a parte inferior da decoração ser simétrica em relação ao eixo central e vertical, leva a admitir a forte probabilidade de a composição da decoração ser toda ela simétrica em relação a esse mesmo eixo. A grande incógnita parece ser a parte central da decoração. Todavia são visíveis 3 sectores semicirculares a castanho avermelhado, com um situado num plano superior aos outros dois. Este conjunto parece procurar representar um amontado de pedras, o qual poderá corresponder a uma representação do Calvário, ou seja, da colina onde Jesus terá sido crucificado. A parte desaparecida da representação incluiria assim na sua parte central, uma cruz latina disposta segundo a vertical. A cruz latina é o símbolo principal do cristianismo. Para os cristãos representa não só a crucificação, como evoca a ressurreição e a esperança de vida eterna.
Incluindo a parte desaparecida da decoração apotropaica, o conjunto incluiria 4 símbolos conhecidos por “nove pontos rodeados”, um no centro duma roda e oito distribuídos à volta da mesma. Cada símbolo “9 pontos rodeados” está inscrito noutra roda, a qual reforça o poder do símbolo. A roda é um símbolo de libertação do lugar e do estado espiritual que lhe está associado.
Vejamos qual o simbolismo dos “9 pontos rodeados”. Desses 9 pontos, 1 está no centro da roda central e os outros 8 distribuem-se regularmente ao longo dessa roda. Numa perspectiva cristã, o ponto central corresponde a 1 e representa Deus, o Único, o Princípio de tudo. Os outros 8 pontos correspondem ao oitavo dia, que sucede aos 6 da criação e ao sabat (dia sagrado e de descanso no judaísmo) e é o símbolo da ressurreição, da transfiguração, anúncio da vida eterna. Sintetizando: os “9 pontos rodeados” simbolizam a criação do mundo por Deus, tal como é referida no Genesis e como tal a crença no poder de Deus sobre todas as coisas. A existência de 4 conjuntos de “9 pontos rodeados”, dispostos na decoração atropopaica em quadrangulação em simetria, resulta de o número quatro se comportar na Bíblia Sagrada como aquele que representa a criação de Deus e a totalidade das coisas.
A decoração apotropaica incluiria ainda, aquilo que me parecem ser dois vasos com flores, dispostos de cada um dos lados da cruz latina. Como o simbolismo da decoração apotropaica agora descoberta é de natureza cristã, sou levado a admitir que o vaso com flores possa ser um vaso com açucenas brancas. O vaso é símbolo do princípio feminino e as açucenas simbolizam a pureza, a castidade, a feminilidade e a virgindade da Virgem Maria. Resumindo: o vaso com açucenas é uma representação simbólica da Virgem Maria. A existência de dois vasos com açucenas, um de cada lado da cruz latina, é justificado porque a Virgem Maria como Mãe de Jesus, tem associado a ela o princípio feminino, ao qual era na antiguidade atribuído o número dois.
Na decoração apotropaica objecto do presente estudo, aparecem representados simbolicamente: DEUS (“9 pontos rodeados”), JESUS (Cálvário com cruz latina) e a VIRGEM MARIA (Vaso com açucenas). Significa isto que no seu conjunto, a decoração apotropaica visa invocar a protecção do Poder Divino para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. De salientar que para os cristãos, Jesus e Deus é um só, além que que é ilimitado o poder de intercessão da Virgem Maria junto de Jesus.
A decoração apotropaica está datada com um número que me parece ser 1668, número inscrito numa figura delimitada por quatro chavetas dispostas entre 4 pontos, como se formassem um losango. Tanto quanto me é dado conhecer dos trabalhos de Luís Lobato de Faria (2), esta será a mais antiga decoração apotropaica do Alentejo.

Outeiro, quem te viu
A oficina da velha barrista Gertrudes Rosa Marques (1840-1975) situada no Outeiro, foi visitada em 1913 pelo etnógrafo D. Sebastião Pessanha (1892-1975), que lhe encomendou Bonecos de Estremoz para o Museu Etnológico Português e publicou textos sobre o seu trabalho. O mesmo viria a acontecer em 1916 com o etnólogo Luís Chaves (1888-1975).
Dada a singularidade e beleza do seu casario, o Largo do Outeiro, por muitos considerado uma rua, inspirou artistas plásticos locais que o perpetuaram nos seus trabalhos: Mestre Joaquim Prudêncio (1887-1970) em aguarela de 1936 e Roberto Alcaide (1903-1979) em guache de 1944.
Da Rua do Outeiro, rua de oleiros e bonequeiras, nos fala a “Marcha do Outeiro”, vencedora do concurso de Marchas Populares de Estremoz, em 1948: “O outeiro iluminado / de rubras malvas bordado, / tanta graça Deus lhe pôs!) / que foi berço das primeiras / fantasias das oleiras / nos bonecos de Estremoz!”. A letra da marcha era da autoria de Luís Rui, pseudónimo literário de Joaquim Vermelho (1927-2002), que se tornaria um destacado estudioso da barrística popular estremocense.
No 3º quartel do séc. XX, o Largo do Outeiro revelava ainda enorme beleza, muita dela proveniente da garridice dos alegretes floridos que ladeavam as casas, aos quais as mulheres dedicavam especial atenção, parecendo que competiam umas com as outras. O Largo estava cheio de vida e as crianças tinham o privilégio de brincar à vontade, porque a escadaria só permitia trânsito pedonal.

Outeiro, quem te vê
Segundo Nuno Ramalho, o Largo do Outeiro é constituído por 21 casas, a que correspondem 29 números de polícia. 2 dessas casas têm os telhados abatidos, o que corresponde a 4 números de polícia desabitados. Para além destes, há mais 11 números de polícia desabitados. A percentagem de números de polícia desabitados é assim superior a 50%, o que é revelador da falta de condições de habitabilidade das casas.
A limpeza da calçada do pátio frontal das casas, outrora assegurado pelos moradores, já conheceu melhores dias. Os alegretes outrora repletos de flores estão quase todos vazios e alguns foram mesmo indevidamente cimentados. O aspecto geral do Largo é um aspecto de abandono, que faz lembrar um moribundo à espera que o possam salvar.

Quem acode ao Outeiro?
A decoração apotropaica agora descoberta, que tudo leva a crer seja a mais antiga conhecida no Alentejo, pode-se tornar num pólo de atracção turística, desde que devidamente divulgada.
Que poderá o actual Executivo Municipal fazer pela recuperação do Largo do Outeiro e ruas limítrofes? É que a história da barrística popular estremocense passa por ali e os executivos municipais precedentes, esqueceram-se disso.

Este texto foi publicado no jornal E nº 298, de 27 de Outubro de 2022, numa versão provisória,
existente á hora do fecho da edição, na noite do dia 25. A versão aqui presente é posterior e
ainda não é a versão definitiva. 

BIBLIOGRAFIA
(1) - CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
(2) - LOBATO DE FARIA, Luís. Estudos - Luis Lobato de Faria. [Em linha]. Disponível em: https://alentejoinportugal.blogspot.com/2020/06/alentejo-apotropaico-i-parte.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].

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