Luís Brito da Luz. Criação de Ricardo Fonseca (1986-).
Transcrevo com a devida vénia
um excelente texto de Luís Brito da Luz,
onde se fala da imortalidade, da amizade
e dos Bonecos de Estremoz
Objecto de fascínio pela humanidade desde o início dos tempos, a imortalidade sempre moveu o homem na tentativa de viver como uma forma de vida, física ou espiritual, durante um período infinito de tempo. A Epopeia de Gilgamesh, poema épico da Mesopotâmia do século vinte e dois anterior ao nascimento de Cristo, constituído por doze placas de escritas cuneiforme, cada uma com trezentos versos, uma das primeiras obras literárias da humanidade, é essencialmente a procura de um herói pela imortalidade. Agarrou-se o homem, primeiramente à imortalidade espiritual, dado que durante a maior parte do tempo em que vivemos, era a única condição possível de vida eterna. A crença na vida após a morte é um princípio fundamental de muitas religiões (cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, zoroastrismo, etc.) e dos homens que as professam. Durante séculos e séculos este princípio confortava os vivos dotados de alma eterna.
Muito recentemente, cientistas, futurólogos, filósofos e adeptos do transumanismo (transformação da condição humana com o uso de tecnologias emergentes) defendem que a imortalidade é possível em humanos já neste século, alcançável através de engenharia genética e implantes tecnológicos, enquanto outros, através de rejuvenescimento biológico acreditam no sustar do envelhecimento proporcionando aos seres humanos a tão desejada imortalidade biológica, mas não a invulnerabilidade à morte por lesão física (a probabilidade de um individuo morrer desta forma, com base em dados estatísticos de 2002, seria de uma vez em cada mil e setecentos anos). Também a criogenia mantém a esperança de que os mortos possam ser revividos no futuro e a Mind upload (conceito de transferência de um cérebro humano a um meio alternativo que oferece as mesmas funcionalidades) daria a imortalidade da consciência.
Para já, e parafraseando Franz Kafka que diz que “o sentido da vida é que ela termina”, apenas conseguimos aumentar a esperança média de vida, e não estender essa mesma vida (pessoas com mais de cem anos já viviam há séculos) e conhecer a imortalidade biológica, em pelo menos uma espécie de água-viva, a felizarda Turritopsis nutricula.
Também a Fama, para os famosos claro, é um meio de alcançar a imortalidade, mas apenas semanticamente.
No que a mim me diz respeito, até a ciência responder convenientemente a este desígnio, sou imortal espiritualmente pois professo a fé católica e também sou imortal porque me perpetuei ao ser pai, recorrendo à ajuda de Deus que me permita a persistência da minha vida através do tempo, com a minha prole sobrevivente ou material genético que ficar. Mas também sou imortal, semanticamente, pelas obras que fiz e que escrevi, particularmente nos livros que editei, nos vinhos que produzi e nas árvores que plantei. Igualmente, também serei imortal nas memórias dos que me amam, tal como aqueles que eu amei e já partiram, continuam vivos nas minhas.
Agora, o que eu não sabia, é que tinha alcançado a imortalidade de uma outra maneira. Foi preciso fazer cinquenta anos para me tornar novamente imortal. Por ocasião da festa de celebração desta especial e única data, e com muita pena minha por o meu amigo Fernando Aldeagas, o Mac como é tratado, não poder estar fisicamente comigo, por motivos de saúde, pediu-me que fosse a sua casa, uns dias depois, pois ele e a Elsa, sua mulher, tinham uma prenda para me oferecer. Ao abrir uma caixa de cartão, gentilmente entregue pela Elsinha, e pomposamente forrada, encontrei lá dentro um boneco de Estremoz devidamente embrulhado e acondicionado. Ao colocar o boneco nas mãos, facilmente depreendi pela experiência que fui adquirindo ao longo dos anos como colecionador de bonecos de Estremoz, que o mesmo era da produção da famosa oficina das Irmãs Flores, Maria Inácia e Perpétua Fonseca aprendizes, nos primórdios da sua carreira, de Sabina Santos, descendente da famosa Olaria Alfacinha, a qual remonta a finais do seculo dezanove. Ao colocar o boneco de cabeça para baixo apercebi-me que o artista não era uma das irmãs, mas o seu sobrinho Ricardo Fonseca, também ele artista e a trabalhar na oficina com a tias. Estava assinado com o seu nome, datado e com o nome “Estremoz” como é costume na produção desta casa. Restava-me virar a peça de frente para ter uma surpresa inesquecível. Corei a olhar para mim mesmo como se estivesse a olhar para o espelho, no exacto momento em que o Mac me diz “és tu!”. Fiquei estupefacto pois imediatamente realizei a perfeição da obra. Os pormenores são soberbos, com a calvície a emergir num cabelo a pedir para ser cortado, as patilhas exactamente no sítio certo, a barba feita, a camisa da Ralph Lauren eximiamente passada, diria mesmo quase engomada, e aberta até ao sítio certo, as três dobras nas mangas, dois dos meus atributos preferidos, os livros e as uvas a metaforizar o vinho, as calças de gangas passadas mas não vincadas com as bainhas correctas, o cinto a condizer com os sapatos, estes italianos, castanhos e sempre bem engraxados. Um hino à minha pessoa.
Não sei qual foi a foto que o Mac escolheu para o Ricardo se basear (apenas me disse que lhe tinha entregue uma foto minha), contudo afianço sem qualquer hesitação que o trabalho está muito superior à reprodução.
Dado que a Produção de Figurado em Barro de Estremoz integra o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, desde 2014, e é Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO desde 07 de Dezembro de 2017, também eu tinha acabado de me tornar imortal, uma vez mais, tornando-me também Património Cultural Imaterial da Humanidade, ainda por cima certificado (a produção dos bonecos de Estremoz está certificada desde 07 de Dezembro de 2018).
Das muitas prendas que recebi pelo meu aniversário, todas elas excelentes, sem dúvida alguma que esta foi a que mais me tocou no coração.
Bem hajam pela vossa amizade!
Estremoz, 8 de Outubro de 2022
Luís Brito da Luz
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