terça-feira, 26 de maio de 2020

Santo António e COVID-19


Santo António (2020). José Carlos Rodrigues. Colecção Alexandre Correia.

Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente a trajar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura. O hábito castanho simboliza os princípios franciscanos: humildade, simplicidade e justiça. O terço traduz que é um homem de oração. O cordão apresenta três nós que expressam: obediência, pobreza e castidade.
A iconografia figura-o ainda com um livro nas mãos, o que tem um triplo significado: representa os Evangelhos, a sabedoria de Santo António e o facto de ser Doutor da Igreja.
A iconografia caracteriza-o também através da presença do Menino Jesus, o que expressa a sua intimidade com Jesus Cristo. O Menino Jesus é apresentado em cima do livro, a Bíblia, o que significa que Santo António anunciava Jesus Cristo. Por vezes, o Menino Jesus aparece ao colo de Santo António, o que reforça a singular intimidade do Santo com Jesus.
A iconografia associa igualmente ao Santo, um lírio como símbolo de pureza e castidade, esta última reforçada pela sua representação com uma tonsura na cabeça.

Santo António e Bonecos de Estremoz
Recentemente tomei conhecimento de duas representações de Santo António da autoria do barrista José Carlos Rodrigues (Fig. 1 e Fig. 2), sobre cuja execução técnica nada tenho a observar, o que já não acontece em termos iconográficos.
A imagem da Fig. 1 enquadra-se na iconografia tradicional e nada tenho a notar sobre a mesma. Já a representação da Fig. 2, ainda que alegórica e despoletada pela actual pandemia de COVID-1 19, merece-me reparos muito sérios:
1 - Santo António usa luvas e máscara comunitária e tem a seu lado um frasco de gel desinfectante. É posta em causa a santidade e pureza do taumaturgo que o deveriam manter imune ao vírus e de o transmitir ao Menino Jesus, o qual pela sua santidade também estaria imune.
2 - Santo António está refastelado num sofá que configura ser de couro, ao que parece a usar um “tablet”. Será adequada tal representação a um franciscano que fez juramento de humildade e simplicidade?
3 - Santo António trocou a Bíblia pelo “tablet” e os Evangelhos passaram a ser sustentados pelo Menino Jesus. Será que este adquiriu a sabedoria de Santo António e passou a ser Doutor da Igreja? 
4 - O lírio está numa jarra de flores. Será para sugerir que o Santo trocou há já algum templo a Bíblia pelo “tablet” e pôs o lírio na jarra para não murchar? Será que isso não sugere que a pureza e castidade do Santo correm riscos ao usar o “Tablet”, relegando a Bíblia?
Como cidadão creio que as questões de religião devem ser abordadas com pinças e nunca tratadas com ligeireza, já que isso pode entrar em confronto com as crenças mais profundas da comunidade católica, as quais devem ser merecedoras do maior respeito.
Como investigador responsável da barrística popular de Estremoz sou uma pessoa de espírito aberto, receptiva a criações de novas figuras para além do âmbito restrito dos chamados Bonecos da Tradição. Todavia, tenho sempre presente que a nossa barrística teve origem nas imagens devocionais e nos presépios, que continuam a ser modelados desde setecentos. Desde então que os nossos Bonecos nunca se desviaram das características e do rumo identitário cimentados por séculos de modelação. As figuras humorísticas e satíricas são próprias de latitudes como Barcelos, mas não o são de Estremoz. Tal é válido não só para imagens laicas mas também e sobretudo para imagens devocionais.
Do exposto e pelo exposto creio ser legítimo concluir que a imagem da Fig. 2, não possa ser considerada aquilo que se convencionou chamar um Boneco de Estremoz. Isto não põe em causa a liberdade de criação do barrista. Acautela apenas a designação “Bonecos de Estremoz”, que tal como estes deve ser salvaguardada.

Santo António (2020). José Carlos Rodrigues. Imagem recolhida com a devida
vénia do grupo do Facebook "Olaria e Figurado Português".

terça-feira, 19 de maio de 2020

Adagiário de São Roque


São Roque (c. 1516). Iluminura do Missal de Joanna de Ghistelles, c. 1516:
Egerton MS 2125, f. 209 v.

Propus-me estudar o adagiário português dos Santos e dei conta desse estudo em três textos publicados sucessivamente:
Adagiário dos Santos - 3                 
Apesar da expressividade do culto a São Roque em Portugal, não conheço nenhum adágio português que faça referência ao dia de São Roque (16 de Agosto). Todavia, na tradição oral francesa, existem adágios que têm a ver com o calendário agrícola do mês de Agosto:
- À la Saint-Roch, grande chaleur prépare vin de couleur (Por São Roque, muito calor origina vinho de cor);
- À la Saint-Roch, les noisettes on croquet (Por São Roque comemos avelãs);
- Après la Saint-Roch, aiguise ton soc et chausse tes sabots (Depois de São Roque, afia a tua relha e calça os teus tamancos) - Diz-se aos lavradores, porque é chegado o momento de fazer os preparativos para as sementeiras de Outono;
- C'est saint Roch et son chien (É São Roque e o seu cão) – Diz-se de duas pessoas inseparáveis;
- La Saint-Roch annonce le temps d'automne (São Roque anuncia o Outono);
- Oncques pluye ne fict tord à la grand saint Roch en Retord (Nunca a chuva prejudicou o grande São Roque em Retord);
- Peigné comme saint Roch  (Pentado como São Roque) – Diz-se de alguém mal penteado;
- Qui aime saint Roch, aime son chien (Quem gosta de São Roque, gosta do seu cão) – Idem;
- Qui voit saint Roch, voit bientôt son chien (Quem vê São Roque, vê logo o seu cão) – Diz-se de duas pessoas que se seguem uma à outra;
-S'il pleu t à la Saint-Roch les truffes pousseront sur le roc (Se chover em São Roque, as trufas crescerão na rocha);
Não há adágios portugueses sobre São Roque, mas há adágios franceses. É caso para dizer:
- Quem não tem cão, caça com gato.



São Roque (1508). Iluminura do “Livre de prières de Madeleine d'Azay”, folha 27 r,
Manuscrito 355, Biblioteca- Mediateca de Nancy.

Cura de São Roque (15..). Iluminura do “ Livre d'heures à l'usage de Chalon”,
folha 108 v, manuscrito 6881, Biblioteca Municipal de Lyon.

domingo, 17 de maio de 2020

COVID - 19




Textos publicados no contexto da pandemia de COVID-19


Coronavírus COVID-19 (Blogue: 15 de Março de 2020)
Aos devotos de São Roque (Blogue: 19 de Março de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque (Blogue: 13 de Maio de 2020)
São Roque em Portugal (Blogue: 16 de Maio de 2020)
Adagiário de São Roque (Blogue: 19 de Maio de 2020)
Santo António e COVID-19 (Blogue: 26 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e Pandemia: Peralta e Sécia (Blogue: 28 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge (Blogue: 11 de Junho de 2020)
Auto do desconfinamento de Santo António (Blogue: 13 de Junho de 2020) 
-  Bonecos de Estremoz e pandemia (Blogue: 30 de Janeiro de 2021)


Hernâni Matos


sábado, 16 de maio de 2020

São Roque em Portugal


São Roque (séc. XVII). Escultura em madeira policromada. Igreja de São Roque, Lisboa.

Início do culto a São Roque em Portugal
As primeiras notícias sobre os milagres de Santo Roque chegadas a Portugal remontam ao final do reinado de D. João II e ao início do de D. Manuel I. A devoção a São Roque expandiu-se através da fundação duma confraria que contava com a família real e a nobreza entre os seus membros. Desde então que a Irmandade de São Roque de Lisboa tem mantido vivo o culto a São Roque.
Em 1506 teve início a construção da Ermida de São Roque no exterior da Cerca Fernandina, perto do adro onde se sepultavam as vítimas da peste. A ermida foi consagrada pelo bispo em 1515 e nela se depositaram as Relíquias de São Roque cedidas ao rei D. Manuel I pelas autoridades venezianas. O adro foi consagrado em 1527. A ermida transformou-se num importante local de peregrinação, aonde acorriam peregrinos para cumprir as suas promessas.
Em 1553 a Companhia de Jesus tomou posse da Ermida e em 1556 decidiu avançar com a construção da Igreja de São Roque no local da Ermida.
A Irmandade de São Roque conseguiu subsistir à expulsão da Companhia de Jesus em 1759. Em 1990 transformou-se em Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa e em 2011 fundiu-se com a Real Irmandade do Glorioso São Roque dos Carpinteiros de Machado.
Padroeiro de localidades
- VILAS: São Roque do Pico (Pico – Açores); - ALDEIAS: Gens – Foz do Sousa (Gondomar), Vilarinho de São Roque (Albergaria a Velha); - FREGUESIAS: Abrigada (Alenquer), Altares (Angra do Heroísmo), Cortes do Meio (Covilhã), Romarigães (Paredes de Coura), São Roque (Funchal), São Roque (Oliveira de Azeméis), São Roque (Ponta Delgada – Açores), São Roque do Faial (Santana – Madeira).
Padroeiro de profissões
São Roque é padroeiro de cirurgiões e deficientes, dermatólogos, padeiros, tratadores e treinadores de cães, curtidores de peles, cardadores, agricultores, viticultores e trabalhadores da pedra (canteiros, calceteiros e carreiros).
Protector
São Roque é invocado como protector: - Contra epidemias de peste, cólera, tifo, gripe espanhola, sida, etc. - Contra a silicose de canteiros, calceteiros e carreiros. - Contra doenças de animais (febre aftosa) e da videira (filoxera). – De cães.
Arquitectura
São Roque é um nome muito usado na designação de construções pertencentes aos vários tipos de arquitectura: - ARQUITECTURA CIVIL – Existem três Pontes ditas de São Roque: a que atravessa a Ribeira de Ovar, a que une as margens do rio Coa entre as freguesias de Castelo Bom e Mido e a que liga as duas margens do rio Tâmega em Chaves; - ARQUITECTURA MILITAR – Existe Forte de São Roque em Castelo de Vide e em Lagos (Meia Praia); - ARQUITECTURA RELIGIOSA – Tendo por orago São Roque existem: Ermidas (1), Capelas (59) e Igrejas (4). Destas últimas a mais importante é, sem dúvida, a Igreja de São Roque, em Lisboa.
Arte
São Roque tem conhecido entre nós e através dos séculos, múltiplas representações iconográficas: escultura em pedra ou madeira policromada, pintura, azulejaria e gravura.
Festas em Honra de São Roque
Têm lugar em 71 locais diferentes do país, com datas de realização e componentes profanas e religiosas igualmente variáveis de local para local. Pela importância de que se revestem são de referir aqui os festejos realizados em Lisboa.
Actualmente, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa celebra o seu Orago no primeiro Domingo de Outubro. As Festas em Honra de São Roque compreendem dois períodos: um de natureza cultural que ocorre no sábado e outro, de natureza espiritual, que sucede no Domingo.
Os festejos de Domingo iniciam-se com a Eucaristia na Igreja de São Roque, no decurso da qual está exposta a Relíquia do Santo Patrono. Durante a Missa são entoados os cânticos e o Hino de São Roque, e lido o texto do nono e último dia da Novena de São Roque.
A Eucaristia termina com a Bênção com a Relíquia, a distribuição do Pão de São Roque “que simboliza o alimento e o amparo da comunidade humana” e a entrega da Pagela, que todos os anos é editada para esta celebração e que, de forma iconográfica, recorda a figura do Santo e os seus atributos.
Ainda no primeiro domingo de Outubro, tem lugar a Procissão solene com a Relíquia de São Roque e a imagem do Santo Patrono, a qual sai da Igreja de São Roque, caminha pelas ruas do Chiado e dirige-se à Capela da Irmandade do Glorioso São Roque dos Carpinteiros de Machado, no Arsenal da Marinha. De acordo com a Irmandade promotora, trata-se de “um acto de manifestação pública de fé, de peregrinação e de testemunho, mantendo vivo o culto a São Roque e divulgando as singulares obras de caridade e de misericórdia…”
Divisão Administrativa
O nome de São Roque figura na designação de concelhos, vilas, aldeias e freguesias: - CONCELHOS (1): São Roque do Pico (Pico); - VILAS (1): São Roque do Pico (Pico). – ALDEIAS (1): Vilarinho de São Roque (Albergaria a Velha); - Freguesias (4): São Roque (Funchal), São Roque do Faial (Santana), São Roque (Oliveira de Azeméis), São Roque (Ponta Delgada).
Toponímia
O nome de São Roque marca presença na toponímia portuguesa tanto a nível urbano como a nível rural: - A NÍVEL URBANO: altos (1), arraiais (1), avenidas (3), bairros (4), calçadas (2), caminhos (5), casais (1), corredouras (1), estradas (1), ilhéus (1), largos (14), loteamentos (1), miradouros (1) pracetas (1), quelhos (1), quintas (1), rampas (2), rotundas (1), ruas (70), terreiros (1), travessas (35), urbanizações (1) e vielas (1). - A NÍVEL RURAL: lugares (18).
Hidrografia
O nome de São Roque surge no âmbito da hidrografia para designar ribeiras e canais: - RIBEIRAS (3): Ribeira de São Roque (Angra do Heroísmo, Loures e São Roque do Pico). - CANAIS (1): Canal de São Roque (Aveiro).
Heráldica
A imagem de São Roque acompanhado pelo cão integra o brasão de armas das freguesias de São Roque do Faial (Santana) e Vila Chã de São Roque (Oliveira de Azeméis). O bordão de peregrino de São Roque com uma cabaça atada faz parte do brasão da freguesia de São Roque (Funchal).

São Roque (1517-1551)]. António de Holanda. Iluminura. Pintura a têmpera e ouro
sobre pergaminho (14,2x10,8 cm). Fólio 274. Livro de Horas de D. Manuel I.
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Aparição do anjo São Roque (1584). Gaspar Dias. Pintura a óleo sobre madeira
(350x300 cm). Igreja de São Roque, Lisboa.

Milagre de São Roque (1584). Francisco de Matos. Painel de azulejos (Fragmento).
Igreja de São Roque, Lisboa.

Gravura de São Roque datada de 1800, executada por Frei Mattheus da Assumpção
Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que ilustra a
Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus no anno
de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa,
sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I”.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque


Fig. 1 - São Roque (Março de 2020). Ricardo Fonseca (1986- ).

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. A sua passagem ficou assinalada por marcas profundas, tanto na malha urbana como no mundo rural.
A necessidade de contenção sanitária da pandemia obrigou ao confinamento social, alterou as relações interpessoais e a vida comunitária, o que teve reflexo no estado psicológico, no comportamento social, no trabalho, no culto religioso, nas actividades lúdicas, culturais e desportivas, nos transportes, no turismo, no rendimento de cada um e na economia em geral. De futuro, nada será como dantes e nós próprios não seremos os mesmos. A tragédia colectiva que temos vivido, constituirá assim um marco de referência na História da Humanidade.
Os barristas de Estremoz têm as suas oficinas fechadas e sem escoamento de produção. Porém, continuam a modelar o barro, com esperança no amanhã que tarda, mas que crêem que há de vir.
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderia e deveria ser modelado um Boneco que perpetuasse no barro, a pandemia que atravessamos. Pensei imediatamente na figura de São Roque, invocado pela comunidade católica, como Santo Protector contra as epidemias e que não figurava ainda na galeria das imagens devocionais produzidas pelos barristas de Estremoz.
Telefonicamente, lancei ao barrista Ricardo Fonseca o repto de modelar a figura daquele Santo, o que ele aceitou sem hesitações, como é seu timbre. Dado que eu já investigara os atributos iconográficos a que deve obedecer uma representação de São Roque, enumerei-lhe esses atributos, indiquei-lhe as dimensões pretendidas e discutimos pormenores e cores. Foi uma discussão importante, já que eu era conhecedor da humildade e da simplicidade que são apresentados como apanágio de vida do Santo, o que excluía à partida uma representação barroca do mesmo, a qual seria ostensiva, desajustada e como tal desaconselhada. 
Como fonte de inspiração documental, enviei por email ao barrista a imagem de uma gravura de São Roque datada de 1800 (Fig. 1), executada por Frei Mattheus da Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.”
Como é habitual no Ricardo, levou o seu tempo para satisfazer a encomenda. Lá diz o rifão: “Sem tempo nada se faz”. O resultado está à vista (Fig. 2). É caso para dizer: Missão cumprida!
Biografia
Roque terá nascido cerca de 1350 na cidade francesa de Montpellier. De acordo com a lenda, a pele do peito ostentava um sinal cruciforme avermelhado que era presságio de que viria a ser Santo.
Originário de uma família nobre, o seu pai, Jean Roch de la Croix era senhor de vastos domínios e desempenhava funções governativas na cidade. Sua mãe, Libéria, era natural da Lombardia.
Baptizado no santuário de Notre Dame des Tables, a sua infância decorreu num ambiente profundamente cristão.
Órfão de pai e mãe muito jovem, a sua educação foi confiada a um tio. Provavelmente terá estudado com padres dominicanos antes de cursar medicina na universidade local, ainda que não concluísse os estudos.
Desde muito cedo levou uma vida ascética e praticou a caridade. Ao atingir a maioridade por volta dos 20 anos, repartiu os seus bens entre os pobres e confiou uma pequena parte ao tio. Ter-se-á juntado à Ordem Terceira de São Francisco, envergado o traje de peregrino e partido em direcção a Roma.
Provavelmente terá tomado a rota francesa em direcção a Roma e ao chegar à comuna de Acquapendente, próxima de Viterbo, encontrou-a minada pela peste. Ofereceu-se de imediato como voluntário na assistência aos doentes, pondo em prática a formação médica que recebera. Usando o bisturi associado ao sinal da cruz, terá operado curas milagrosas. Por lá terá permanecido três meses, visitando depois Cesena, Mântua, Modena, Parma e muitas outras cidades e aldeias, nas quais ajudou e curou os doentes.
Terá permanecido vários anos em Roma, onde terá rezado diariamente sobre o túmulo de São Pedro e curado vítimas da peste no Hospital do Espírito Santo, o que levou o Papa Urbano V a conceder-lhe a indulgência plenária.
No regresso a Montpellier e quando prosseguia a sua obra de assistência em Piacenza, foi ele próprio atingido pela praga. Para não contagiar ninguém, isolou-se numa floresta próxima, onde de acordo com a lenda, teria morrido de fome se um cão não lhe trouxesse diariamente um pão retirado da mesa do dono e se da terra não tivesse brotado uma fonte de água para saciar a sede.
Miraculosamente curado, regressou a Montpellier que na época se encontrava em guerra. Tomado por espião, foi detido e levado para a prisão, onde passou 5 anos até morrer a 16 de Agosto de 1379, ainda jovem, abandonado e esquecido por todos. De acordo com a lenda, só revelou a sua identidade a um padre, um dia antes da sua morte.
O primeiro milagre póstumo que lhe é outorgado foi a cura do seu carcereiro, o qual coxeava e cuja perna foi milagrosamente curada ao tocar com ela no corpo de Roque, para averiguar se estaria realmente morto.
Só após a morte foi reconhecido pela cruz marcada no peito e piedosamente sepultado por um tio, embora os seus restos mortais tenham sido transladados para Veneza em 1483. Devido à fama dos inúmeros milagres que operara durante a sua permanência em Itália, as suas relíquias foram distribuídas pelas cidades de Antuérpia, Arles e Lisboa.
Canonização de São Roque
Entre 1414 e 1418 decorreu em Constança, o 16.º Concílio Ecuménico da Igreja Católica, que tinha como principal objectivo acabar com o cisma papel, já que havia três papas rivais, clamando legitimidade (Bento XIII, João XXIII e Gregório XII). A peste ameaçava então a Europa, pelo que os bispos conciliares autorizaram preces e orações populares em honra de São Roque. Consta-se que terão sido atendidos e o contágio pelo flagelo cessou. São Roque passou a ser objecto de intensa devoção popular que conduziu à sua canonização, sem ocorrer decisão eclesiástica nesse sentido.
Festa litúrgica
Os católicos crêem que todos aqueles que recorrem com fervor à intercessão de São Roque, são atendidos nas suas súplicas, daí que seja considerado um Santo Protector contra as epidemias. A sua memória litúrgica é celebrada a 16 de Agosto, dia da sua morte. Os ofícios eclesiásticos a serem recitados nesse dia, foram aprovados pelo papa Urbano VIII.
Expansão do culto de São Roque
O culto de São Roque inicia-se em Itália e dali estende-se à França e conquista a Europa através da Bélgica e dos Países Baixos. Atravessa o Oceano Atlântico e alcança as colónias portuguesas e espanholas na América do Sul, prolonga-se a África e propala-se aos EUA e ao Canadá.
O seu nome passa a integrar a divisão administrativa, a toponímia, a orografia, a hidrografia e a heráldica. É dado o seu nome a igrejas, capelas, ermidas e nichos. A sua memória é perpetuada em esculturas de pedra, madeira e outros materiais, pinturas, painéis de azulejos e vitrais. Através dos séculos é referido ou é objecto de inúmeras obras literárias. No romance “A peste” (1947), Albert Camus conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade no meio da peste que assolava a cidade de Oran na Argélia. Aí, as autoridades eclesiásticas decidiram lutar contra a epidemia, organizando uma semana de preces colectivas a terminar num domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque.
O culto de São Roque está ligado às suas virtudes miraculosas e exalta o Santo como figura carismática que transmite na actualidade uma mensagem universal de generosidade e de paz. O seu culto tem assim uma dimensão internacional e intercontinental.
Atributos iconográficos
Habitualmente é representado como jovem, envergando o traje característico dos peregrinos de Santiago, constituído por uma túnica e capa, ambas de cor castanhas. Na aba da capa ostenta uma ou mais vieiras. Usa um chapéu de abas largas. É portador de um bordão, do qual pende uma cabaça. Uma das pernas está desnudada para serem visíveis os ferimentos da peste. É acompanhado por um cão, muitas vezes com um pão na boca.
Simbolismo dos atributos
Para a comunidade católica, os atributos iconográficos de São Roque encerram em si um profundo simbolismo: - O TRAJE CASTANHO – É a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza de São Roque, ao optar por distribuir os seus bens aos pobres e tornar-se peregrino e missionário. - O BORDÃO – Serve de apoio e dá segurança nas caminhadas. São Roque foi peregrino e missionário, pelo que é portador de um bordão que simboliza ainda a palavra e a presença de Deus, nas quais se apoiava. - A CABAÇA – Serve para transportar água numa caminhada e evoca a fonte e a água que São Roque bebeu até ficar curado. Simboliza também o dom de cura concedido pelo Espírito Santo que agia através de São Roque. - A FERIDA NA PERNA – Simboliza o sofrimento de São Roque no decurso da sua doença. Simboliza igualmente a doença, a dor e o sofrimento humano. - O CÃO AO LADO DE SÃO ROQUE - Lembra o cão usado por Deus para socorrer São Roque no decurso da doença. Expressa ainda a providência divina que pelos mais diferentes meios, concede o que é preciso. É igualmente um incentivo para que se confie na providência divina, que não abandona ninguém e está atenta às suas necessidades.

Estremoz, Março de 2020
(Jornal E nº 246, de 14-05-2020)

Fig. 2 - Gravura de São Roque datada de 1800, executada por Frei Mattheus da
Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que
ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus
no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa
sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.” Imagem
recolhida com a devida vénia na Irmandade da Misericórdia e de São Roque, de Lisboa.

domingo, 10 de maio de 2020

Poesia Portuguesa - 098




Rosas de Santa Isabel
João de Lemos (1819-1890)

Onde ides, correndo asinha,
Onde ides, bela Rainha,
Onde ides, correndo assim?
Porque andais fora dos Paços?
Que peso levais nos braços?
Oh! Dizei-mo agora a mim?...

A Santa, regalos novos,
Frutas, pão, e carne, e ovos,
No regaço e braços seus,
Sem cuidar ser surpreendida,
Ia levar farta vida
Aos pobrezinhos de Deus.

Coram-lhe as faces formosas,
E responde: - "Levo rosas..."
Dom Dinis deitou-lhe a mão,
Ao regaço, de repente;
Mas de rubra cor vivente
Só rosas lá viu então!...

Como o tempo era passado,
Nos jardins, no monte e prado,
De rosas e toda a flor,
El-rei, cheio de piedade,
Nas rosas da caridade
Viu a bênção do Senhor!

E daquele rosal dela
Tirando uma rosa bela,
Que guardou no peito seu,
Disse-lhe:- "Em paz ide agora,
Que eu me encomendo, Senhora,
À Santa, ao Anjo do Céu."

João de Lemos (1819-1890)

Hernâni Matos  


O Milagre das Rosas (c. 1735-40). André Gonçalves (1685-1762).
Óleo sobre tela. Igreja do Menino Deus, Lisboa.

domingo, 26 de abril de 2020

Bonecos de Estremoz: Mário Lagartinho


FIg. 1 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016), decano da olaria e o último oleiro de
Estremoz. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz / BMETZ –
Colecção  Joaquim Vermelho.

Nasceu a 22 de Junho de 1935 na Rua Magalhães de Lima, nº 15, freguesia de Santo André, concelho de Estremoz. Filho legítimo de Marcolino Augusto Lagartinho, de 26 anos, natural da mesma freguesia, e de Leonilde da Conceição Raleiro, de 30 anos, natural da freguesia de Alcáçova, concelho de Elvas (2). Começou a modelar o barro aos 12 anos de idade, na Olaria Regional, situada na Rua do Afã, em Estremoz e que era propriedade de Mestre José António Ourelo – Zé Russo (1916-1980), formado na Olaria Alfacinha e que adquirira a oficina a Mestre Cassiano, fundador da Regional, já avançado na idade. A 2 de Maio de 1958, com 23 anos de idade, casou catolicamente na Igreja Paroquial de Santa Maria com Ana Pascoal Ourelo, de 22 anos, doméstica, natural da freguesia de Santo André, concelho de Estremoz, onde nasceu a 11 de Janeiro de 1936, filha de César Augusto Pascoal e de Albertina de Jesus Carrapiço, moradores na Rua dos Carvoeiros nº 6, da mesma freguesia. Pelo casamento, a noiva adoptou o apelido Lagartinho de seu marido (1). A Olaria Regional viria a passar das mãos de José Ourelo para Mário Lagartinho, que nunca deixou os seus créditos em mãos alheias e foi um oleiro de nomeada.
A necessidade de aumentar os seus rendimentos levou Mestre Lagartinho (Figs. 1 e 2), nos anos 70-90 do século passado, a confeccionar Bonecos de Estremoz, o que fez por auto-aprendizagem a partir de exemplares que lhe foram emprestados por José Marcelino Moreira. Tenho, na minha colecção, alguns desses exemplares que me foram cedidos pela sua esposa, Ana Pascoal Ourelo Lagartinho. Mestre Lagartinho reproduziu então os exemplares do conjunto dos “Bonecos da Tradição”. Foi bonequeiro, mas era sobretudo oleiro e era ele que cavava o barro dos barreiros e o preparava, até este estar capaz de ser afeiçoado pela suas mãos. Os Bonecos eram também cozidos em forno de lenha, prática que foi abandonada. Sua mulher (Fig. 2), além de pintar a produção do marido, também confeccionava os seus próprios Bonecos. Uns e outros eram comercializados no stand da Olaria Regional, no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. Para além da mulher, Ana Pascoal Ourelo Lagartinho (1936- ), Mestre Lagartinho transmitiu os seus saberes a Arlindo Ginja (1938-2018), que viria a ser seu discípulo. Em termos pessoais, Mário Lagartinho nunca conseguiu recuperar do abalo causado em 2011 pela morte do filho, também ele Mário Lagartinho, ex-jogador de hóquei do Clube de Futebol de Estremoz, do qual foi treinador, assim como do Hóquei Clube Vasco da Gama, de Sines, cidade onde foi o grande impulsionador daquela modalidade. Foi assim que, a 4 de Setembro de 2016, na sua casa da Rua João de Sousa Carvalho, lote 25, 1º esqdº, em Estremoz, se regista o falecimento com a idade de 81 anos, de Mestre Mário Lagartinho, decano da olaria e o último oleiro de Estremoz, o que constituiu uma tragédia cultural, numa cidade que já foi um dos maiores centros oleiros do Alto Alentejo. Estremoz ficou luto e, com a cidade, a Cultura Popular Alentejana, da qual o Mestre foi um ícone (3), (5). Mestre Mário Lagartinho partiu, mas deixou connosco as suas criações: bilhas, moringues, garrafas de água, barris e púcaros que, entre outros, saíram das suas mãos mágicas de oleiro. Os seus Bonecos estão dispersos por colecções particulares, como é o caso da minha. Também o Museu Municipal de Estremoz conta no seu acervo com exemplares, tanto de olaria como de Bonecos de Estremoz, afeiçoados pelas suas mãos. Por iniciativa daquele Museu, a sua obra foi objecto de destaque recente nas exposições: “Mário Lagartinho - Olaria de Estremoz” (2004) e “Motivos decorativos na olaria de Estremoz do século XX” (2013), às quais há que acrescentar  “O vasilhame de barro  de Estremoz” (2012), graças à iniciativa da Associação Filatélica Alentejana. Pessoalmente, Mário Lagartinho, a quem conhecia desde os anos 70 do século passado, concedeu-me o privilégio da sua amizade, o que permitiu organizar, em 1999, uma jornada de divulgação da olaria de Estremoz na Escola Secundária, quando era director do seu Centro de Recursos. Foi um evento que nos marcou a todos, Mestre Mário, professores e alunos, já que as raízes da Escola entroncam na antiga Escola Industrial de António Augusto Gonçalves, por onde paira a memória do Curso de Olaria e de Mestre Mariano da Conceição (o Alfacinha) que, conjuntamente com ti Ana das Peles e sob a acção do Director Sá Lemos, fizeram com que os Bonecos de Estremoz, em processo de extinção, se tornassem numa Fénix renascida das cinzas. Morreu Mário Lagartinho, o último oleiro de Estremoz. Pessoalmente, como não tenho espírito sebastianista, não estou à espera de um novo Sá Lemos, que venha a reactivar a extinta olaria de Estremoz. Apenas me resta o registo da sua Memória, que me leva a proclamar, alto e bom som:
- MÁRIO LAGARTINHO, PRESENTE!

BIBLIOGRAFIA
(1) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Casamento Informatizado nº 633 de 2015, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(2) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Nascimento Informatizado nº 351 de 2014, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(3) - Mário Augusto Raleira Lagartinho - Assento de Óbito nº 487 de 2016, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(4) - MATOS, Hernâni. Mário Lagartinho, bonequeiro de Estremoz in Brados do Alentejo nº 890, 29/09/2016. Estremoz, 2016 (pág. 15).
(5) - MATOS, Hernâni. Mário Lagartinho, o último oleiro de Estremoz in Brados do Alentejo nº 889, 15/09/2016. Estremoz, 2016 (pág. 1 e 6).

Fig. 2 - Mestre Mário Lagartinho (1935-2016) e sua mulher Ana Lagartinho (1936- ),
bonequeiros. Fotografia do Arquivo Fotográfico Municipal de Estremoz /
BMETZ – Colecção Joaquim Vermelho.

Nossa Senhora ajoelhada.

Presépio de trono ou altar (Montagem incorrecta).

Mulher a lavar a roupa.

Pastor com tarro.

Pastor com dois borregos

Pastor das migas.

Pastor do harmónio.

Mulher dos perús.

Matança do porco.

Mulher a vender chouriços.

Amazona.