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sexta-feira, 17 de maio de 2024

Ser ou não ser, eis a questão


Fig. 1 - Senhora de pezinhos. Ana das Peles (1869-1945). Colecção do autor.

Preâmbulo
A inventariação e catalogação de Bonecos de Estremoz são uma tarefa com que se confronta o investigador, a qual exige precisão e rigor, para que a figuras morfologicamente distintas não corresponda uma mesma designação, o que constituiria um erro crasso.
Uma nomenclatura precisa e rigorosa
A barrística popular de Estremoz é diversificada sob múltiplos aspectos e integra um número considerável de figuras.
A cada uma delas foi atribuído um nome, consagrado pelo uso e transmitido pela tradição. O conjunto dessas denominações constitui aquilo que é designado por “Nomenclatura dos Bonecos de Estremoz”.
Como qualquer outra nomenclatura é indispensável que seja precisa e rigorosa. Deste modo, não é aceitável que a mesma designação possa ser atribuída a figuras com morfologias distintas, cujas diferenças pouco acentuadas ainda que significativas, podem escapar à simples observação de um observador menos atento.
Mudança de paradigma
No decurso da modelação é legítimo que cada barrista interprete uma dada figura à sua maneira, introduzindo-lhe marcas identitárias próprias, reveladoras de que aquela peça é obra sua e de mais ninguém.
A diferença nas marcas identitárias de dois exemplares da mesma figura, confeccionados por barristas diferentes, não implica que esses dois exemplares tenham designações distintas, já que a figura é a mesma, os intérpretes é que foram diferentes.
Todavia, a diferença nas marcas identitárias de dois exemplares da mesma figura pode ser mais profunda. Acontece que cada figura tem atributos que devem estar sempre presentes e não podem ser suprimidos ou modificados. Quando tal acontece, estamos perante uma mudança de paradigma e deixamos de estar em presença de uma figura para estarmos em presença de outra. Ora, o rigor da nomenclatura exige que a correspondência entre figuras e suas designações seja biunívoca. Daí que se torne imperativo arranjar designações distintas para duas figuras que difiram pelo menos num atributo.

Fig. 2 - Senhora de sapatinhos. Sabina da Conceição (1921-2005). Colecção do autor.

Caso em estudo: a Senhora de pezinhos
Existe na barrística popular de Estremoz, uma figura singular conhecida por “Senhora de pezinhos” (Fig. 1) que goza de dois atributos:
1.º - Ter ambas as mãos assente frontalmente nas pernas e abaixo da anca;
2.º - Prescindir de base, dado o seu assentamento ser feito por apoio nos pezinhos (que espreitam por detrás da orla inferior frontal do vestido/saia) e na orla inferior posterior daquela peça de vestuário.
A forma de assentamento é conseguida, modelando a saia/vestido mais curta(o) à frente que atrás. Seguidamente, os “pezinhos” são modelados a partir de um pequeno rolo cilíndrico de barro, que é tornado pontiagudo numa extremidade e espalmado na outra. Esta última extremidade é então colada no interior da orla inferior frontal do vestido, de modo que o assentamento à frente se verifique apenas na ponta dos “pezinhos”, simulando um sapato de bico como se usava na época. Tal assentamento nos “pezinhos” confere elegância ao modelo.
As origens históricas da Senhora de pezinhos remontam aos finais do séc. XIX – princípios do séc. XX. Conheço exemplares das oficinas de Estremoz dessa época, bem como aqueles que foram modelados sucessivamente por Ana da Peles (1869-1945), Mariano da Conceição (1903-1959), Liberdade da Conceição (1913-1990), José Moreira (1926-1991), Maria Luísa da Conceição (1934-2015) e Irmãs Flores (1957,1958 -  ).
Conheço dois exemplares de figuras de Sabina da Conceição (1921-2005), uma das quais é a da Fig.2, nas quais o modo de assentamento viola o segundo dos atributos referidos, já que o assentamento frontal não se verifica na parte posterior dos “pezinhos”, mas sim numa certa porção de “sapatinhos”, pelo que nesse aspecto, esta última figura é morfologicamente diferente da apresentada na Fig.1. Em termos de nomenclatura é incorrecto atribuir-lhe a mesma designação.
Conheço ainda um exemplar de Mário Lagartinho (1935-2016) (Fig.3), na qual a figura assenta numa certa porção de “sapatinhos” e por sua vez, está assente numa base. Também esta figura é morfologicamente diferente da mostrada na Fig.1, pelo que em termos de nomenclatura não é igualmente correcto atribuir-lhe a mesma designação.


Fig. 3 - Senhora de sapatinhos com base. Mário Lagartinho (1935-2016).
Museu Municipal de Estremoz.
Que fazer?
Face ao exposto há que arranjar designações diferentes para cada uma das peças. A minha proposta é serem utilizadas as designações seguintes:
Fig. 1 – Senhora de pezinhos
Fig. 2 – Senhora de sapatinhos (Dama)
Fig. 3 – Senhora de sapatinhos com base (Dama com base)
Nas designações anteriores, as que figuram entre parêntesis são designações alternativas.
Julgo que com a minha proposta fica resolvido um problema que seguramente, tem mais de 50 anos. Parafraseando Hamlet, personagem de Shakespeare, sou levado a dizer:
- “Ser ou não ser, eis a questão.”
Publicado inicialmente em 9 de Setembro de 2020

sábado, 11 de maio de 2024

Atributos, pormenores, estilo e liberdade cromática



Mariano da Conceição (1903-1959)

Prólogo
O presento texto visa clarificar e consolidar conceitos inerentes à Barrística Popular de Estremoz. Tem, pois uma função pedagógica. É ilustrado com imagens de 14 ceifeiras produzidas por 12 barristas, desde os anos 30 do séc. XX, até à actualidade.
A ausência de exemplares de alguns barristas, apenas é devida ao facto de até ao presente não me ter sido possível inclui-los na minha colecção. As aquisições têm ocorrido ao acaso, fruto de circunstâncias e oportunidades. A ausência de exemplares de alguns barristas não significa, de modo algum, um juízo de valor sobre o trabalho dos “ausentes”. É sabido que como coleccionador e investigador da Barrística Popular de Estremoz, tenho dado provas de apreciar o trabalho e a matriz identitária do trabalho de cada um e assim continuará a ser.
Atributos
Na Barrística Popular de Estremoz, cada um dos chamados “Bonecos da Tradição”, goza de determinados atributos. Estes não são mais que as particularidades invariantes que um barrista deve ter em conta na produção de cada uma dessas figuras. Essas particularidades estão associadas a cada uma dessas figuras e ajudam a identificá-las.
Pormenores
Para além das particularidades invariantes atrás referidas, existem outras particularidades variáveis (pormenores) cuja inclusão na manufactura de uma figura, depende do livro arbítrio do barrista.
Estilo
O estilo é a maneira como cada barrista se exprime, fruto do seu modo próprio de observar e interpretar o mundo que o cerca, revelando a sua individualidade através de marcas identitárias que lhe são próprias e que se repetem ao longo da sua produção. Depende de múltiplos factores, entre eles: o talento, a cultura artística, a criatividade e o brio profissional. Deste modo, como resultado da produção, podem resultar figuras mais simples (populares) ou mais elaboradas (eruditas).
A pluralidade de resultados distintos possíveis de obter na produção de uma figura, mesmo dos chamados “Bonecos da tradição”, é reveladora da riqueza da Barrística Popular de Estremoz.
Liberdade cromática
No século XXI surgiram barristas que não trilharam os caminhos habituais de aprendizagem: contexto oficinal e contexto familiar, que condicionam sempre a concepção, a modelação e a decoração. À semelhança do que já se passara com outros, como foi o caso de Sabina da Conceição Santos (1921-2005) e de Mário Lagartinho (1935-2016) que aprenderam por autoformação, o mesmo se veio a verificar com outros como: João Fortio (1951- ), Rui Barradas (1953- ), Carlos Alves (1958- ) e Jorge Carrapiço (1968- ). Por outro lado, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte em Estremoz, teve lugar em 2019 um Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, orientado tecnicamente pelo barrista Jorge da Conceição (1963- ). Aqui os formandos aprenderam e aplicaram os fundamentos da modelação e da decoração para virem a aplicar na sua actividade como barristas, sem a preocupação da obrigatoriedade de ter que seguir os traços identitários do formador ou de qualquer outro barrista, nomeadamente no que respeita a cores. Pelo contrário, ficaram com a consciência de que deviam procurar duma forma incessante o seu próprio caminho e a sua própria matriz identitária.
Epílogo
A Barrística Popular de Estremoz quer-se viva, pelo que deve reflectir os anseios e a sensibilidade dos seus criadores, para além dos contextos de produção ou inerentes ao tema abordado, mas sempre com integral respeito pelo modo de produção e pela estética dos Bonecos de Estremoz.
A Barrística Popular de Estremoz não se pode limitar a ser uma linha de montagem e de reprodução dos modelos criados pelos mestres e pelas mestras. Se o fosse, estaria embalsamada no tempo e seria merecedora de um funeral condigno.
É preciso perceber de vez que a Barrística Popular de Estremoz não é como o Pai-nosso que só pode ser dito de uma maneira.



Sabina da Conceição Santos (1921-2005)


Sabina da Conceição Santos (1921-2005)

Liberdade da Conceição (1913-1990)

José Moreira (1926-1991)

José Moreira (1926-1991)

Fátima Estróia (1948-   )


Irmãs Flores (1957, 1958 -    )

Quirina Marmelo (1922-2009)

Isabel Catarrilhas Pires (1955 -  )

Carlos Alberto Alves (1958 - )

Inocência Lopes (1973 -    )

Ana Catarina Grilo (1974 -   )

Joana Santos (1978 - )

domingo, 5 de maio de 2024

Dia da Mãe e Bonecos de Estremoz

 

Fig. 1 - Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Ana Catarina Grilo (n. 1974).
Colecção do autor.

O Dia da Mãe é uma data comemorativa que visa homenagear anualmente a maternidade e as mães pelo amor, carinho e dedicação que têm com os seus filhos, servindo igualmente para reforçar e demonstrar o amor dos filhos pelas suas mães. Em Portugal, é comemorado no primeiro domingo de Maio, mês conhecido entre os católicos como o mês de Maria, Mãe de Jesus (em particular Nossa Senhora de Fátima), o que acontece desde a década de 70 do século passado. Até então e desde 1950 que a comemoração do Dia da Mãe, instituído pela Mocidade Portuguesa Feminina, organização juvenil do Estado Novo, ocorria a 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição.
Deste modo, no conjunto dos Bonecos de Estremoz, os exemplares que numa perspectiva católica e sob um ponto de vista temático, estão associadas ao Dia da Mãe são:
1 - NOSSA SENHORA DA IMACULADA CONCEIÇÃO – Representação da Virgem Maria concebida sem pecado original, através de dogma pelo Papa Pio IX (1792-1878) na sua bula “Ineffabilis Deus” em 8 de Dezembro de 1854. Tem sete atributos: a meia-lua e a serpente sob os pés, os anjos e a nuvem nos pés, as mãos postas ao nível do coração, o manto azul e a coroa com cruz.
2 - NOSSA SENHORA DE FÁTIMA – Representação de uma das invocações atribuídas à Virgem Maria e que teve a sua origem nas aparições recebidas por três pastorinhos no lugar da Cova da Iria (Fátima), a primeira das quais ocorreu no dia 13 de Maio de 1917 ao meio-dia. Tem como principais atributos: o manto e a túnica claros, as mãos postas ao nível do coração, coroa com cruz e a seus pés, três crianças de joelhos, de mãos postas e de cabeça levantada para a Virgem.
3 - SAGRADA FAMÍLIA – Representação da família de Jesus de Nazaré, composta de acordo com a Bíblia por José, Maria e Jesus.
4 - NOSSA SENHORA A CAVALO (FUGA PARA O EGIPTO) - Representação dum evento relatado no Evangelho de São Mateus (Mateus 2:13-25), no qual após a Adoração dos Magos, José foge para o Egipto com Maria sua esposa e seu filho recém-nascido Jesus, após ter sido avisado por um Anjo do Senhor, do massacre de crianças com menos de dois anos, que ia ser perpetrado por ordem de Herodes I, o Grande, receoso que a criança que os Magos proclamavam como novo rei, lhe tomasse o trono e o poder.
5 - PIEDADE – Representação de Jesus morto nos braços de sua mãe.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 7 de Maio de 2023

Fig. 2 - Nossa Senhora de Fátima (com os pastorinhos). Ricado Fonseca (n. 1986).
Colecção particular.

fig. 3 - Sagrada Família (1938). Ana das Peles (1869-1945). Colecção do autor.

Fig. 4 - Nossa Senhora a cavalo (Fuga para o Egipto). Finais do séc. XIX. Anterior
a Ana das Peles (1869-1945) e a Gertrudes Rosa Marques (1840-1921).
Colecção do autor.

Fig. 5 - Pietá. Jorge da Conceição (n. 1963). Colecção Jorge da Conceição.

domingo, 28 de abril de 2024

Pastoras ofertantes de pezinhos

 

Fig. 1 - Pastoras ofertantes de pezinhos. Oficinas de Estremoz do último quartel do séc. XIX.


Na barrística popular de Estremoz existe uma figura cuja origem remonta, pelo menos, ao último quartel do séc. XIX e que é conhecida por “Senhora de pezinhos”. Trata-se de uma figura que tem como atributos, prescindir de base (ser assente nos pezinhos e no vestido/saia) e ter ambas as mãos assentes frontalmente nas pernas e abaixo da anca (Fig. 2).

O presente escrito tem por finalidade chamar a atenção para o facto de a “Senhora de pezinhos” não ser o único espécime da nossa barrística cujo assentamento se efectua nos pezinhos e no vestido/saia. Com efeito, existem também figuras de pastoras ofertantes do último quartel do séc. XIX, cujo assentamento é do mesmo tipo (Fig. 1). Trata-se de “Pastoras ofertantes de pezinhos”, que nos exemplares desta figura transportam um borrego ao colo e um cesto com queijos na cabeça. Outros exemplares haverá, segundo creio, que transportem aves ao colo e ovos na cabeça.

Hernâni Matos


Fig. 2 - Senhora de pezinhos. Ana das Peles (1869-1945). 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Repórter de concertos de violino


Moringue antropomórfico. Fabrico da Olaria Alfacinha. Estremoz, anos 40 do séc. XX.

De vez em quando vislumbro objectos que tangem as tensas cordas de violino da minha alma. Então, olho-os melhor, miro-os e remiro-os, trespasso-os com o meu olhar e eles revelam-se em toda a sua plenitude, para além daquilo que é óbvio. Digo-lhes: Olá! Então e só então, eles me recebem de braços abertos, como se um deles se tratasse. Contam-me então as suas estórias, às quais outras estórias se seguirão. É então que eu, repórter de concertos de violino, escrevo na pauta de papel, tudo aquilo que tocaram e eu consegui entender.

Publicado inicialmente em 15 de Abril de 2021

domingo, 7 de abril de 2024

Lembrança da Olaria


Moringue com decoração fitomórfica. Manufactura da Olaria Alfacinha, Estremoz.
 Colecção do autor.
   
A Memória do Passado
A actividade de um coleccionador não se desenrola na maioria das vezes num mar de rosas. O coleccionador navega por entre escolhos, os quais terá de ser capaz de ultrapassar, a fim de poder levar a bom porto, a missão que a si próprio atribuiu. É o que se passa comigo, enquanto coleccionador de louça de barro vermelho de Estremoz. É que a olaria local extinguiu-se há algum tempo. Foi o fecho da crónica de uma morte prevista. Todavia, ela permanece bem viva no registo quântico da minha memória.
Vale-me ser um respigador nato e usufruir da capacidade de fazer um rápido reconhecimento da infinidade de objectos que aos sábados povoam o Mercado das Velharias, em Estremoz. Valem-me ainda os vendedores que sabendo dos meus gostos, me arranjam peças sem o compromisso de eu ter de ficar com elas. Valem-me também os “olheiros” amigos, que me dão conhecimento onde é que determinada peça que me possa interessar, se encontra à venda. Por vezes, a meu pedido e como meus mandatários, compram aquilo que me interessa. E tudo isto parece muito e de facto é, mas não é tudo.
A Lei de Lavoisier
Hoje existe um vasta profusão de vendas “on line”, nas quais se podem comprar objectos, não só a vendedores profissionais, mas também a quem, por um motivo ou por outro, os pôs à venda. Algumas vezes, por necessidade de fazer dinheiro, outras para reciclar coisas que já não lhes interessam e que ao transformarem em dinheiro, lhes permitem adquirir bens ou serviços nos quais de momento estão interessados. É uma aplicação prática da Lei de Lavoisier: “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo ser transforma“. Trata-se de um enunciado que trocado por miúdos e em português corrente, pode ser expresso assim: “O que não te interessa a ti, pode-me interessar a mim e vice-versa. Por isso, toma lá e dá cá”. Daí que os eco-militantes que negam a existência de um plano B, proclamem “Desperdício zero, já!”.
A viagem
Não estranhem pois que um exemplar da Olaria de Estremoz, residente em Beja, tenha mudado de ares e vindo até Estremoz, onde se instalou na minha casa, com direito a todas as mordomias. Bastou-lhe viajar através do serviço dos Correios, depois de eu ter ressarcido o anterior proprietário no acto de se ver livre do espécime. Tratou-se de uma viagem que não foi isenta de riscos, pois por vezes ocorrem descuidos por parte dos transportadores. Daí a necessidade de uma embalagem meticulosa e paciente, realizada com o jeito de carinhosos cuidados maternais. Foi o que aconteceu desta vez, pelo que ao abrir a embalagem normalizei a respiração, os batimentos cardíacos e a tensão arterial. O recipiente de barro estava bem de saúde e recomendava-se como vão ver.
O moringue
O viajante foi um moringue, recipiente para água com uma asa na parte superior e um gargalo em cada extremidade desta. O gargalo da extremidade mais larga destina-se a introduzir água e o da extremidade afunilada destina-se à saída da mesma. Para a beber, vira-se esta última extremidade para a boca e dá-se ao recipiente a inclinação adequada, de modo a que o esguicho que dela brota vá cair na boca do bebedor. A direcção de alinhamento dos gargalos é perpendicular à direcção de implantação da asa.
O moringue é em barro vermelho, fabrico de Estremoz, firmado pela marca incisa linear “OLARIA ALFACINHA ESTREMOZ” na superfície exterior, junto à base.
A decoração com motivos fitomórficos em alto-relevo, configura ramos de sobreiro, povoados de folhas serradas e de glandes. Trata-se de elementos decorativos, obtidos por moldagem, a que se segue uma colagem na superfície, recorrendo a barbutina.
A superfície do moringue onde assenta a decoração em relevo é lisa e nela se destacam, igualmente espaçadas, quatro faixas polidas, entre a base e o topo do bojo. Os gargalos são igualmente lisos e ostentam faixas polidas.
A asa configura um galho de sobreiro bifurcado nas duas extremidades. As bifurcações assentam no topo convexo do moringue, onde também se inserem os gargalos.
No bojo, a legenda “LEMBRANÇA / DE / ESTREMOZ “, distribuída por três filas paralelas com texto centralizado.
Significados da legenda
Trata-se de uma legenda que encerra em si múltiplos significados:  
- Em primeiro lugar que o moringue é um artefacto de barro, manufacturado em Estremoz.
- Em segundo lugar que tanto pode ter sido comprado por um forasteiro como por um autóctone para uso próprio ou para oferecer a alguém, com a mensagem expressa que é uma lembrança de Estremoz e de nenhum outro local.
- Em terceiro lugar e para além de lembrança de Estremoz é, sobretudo, uma lembrança da Olaria de Estremoz.
- Em quarto lugar, atesta a magia das mãos do oleiro que lhe deu forma, repetindo gestos ancestrais, herdados de Mestre ou de familiares ascendentes.
- Em quinto lugar, a Memória das mãos pacientes e hábeis das “polideiras” que ao decorarem a superfície, reforçaram toda a beleza que na morfologia, na volumetria e nas proporções, o moringue já ostentava em si.
- Em sexto lugar, a mensagem de que a Olaria de Estremoz é “sui generis” e por isso mesmo inconfundível.
- Em sétimo lugar, a afirmação orgulhosa de uma identidade cultural popular, local e regional, que encerra em si e é deveras notória.
- Em oitavo lugar, a lembrança de que Estremoz já foi terra de olarias, que por fatalidade ou talvez não, se extinguiram.
- Em nono lugar, a mensagem de que parafraseando o poeta João Apolinário, cantado por Luís Cília, “É preciso, imperioso e urgente” recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz, como modo de produção artesanal que integra o nosso património cultural imaterial.
- Em décimo lugar, a chamada de atenção àqueles que detendo as rédeas do poder local, andam embriagados pela inclusão da manufactura dos Bonecos de Estremoz na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Tornaram-se autistas em relação à Olaria de Estremoz e não revelam quaisquer sinais de estar interessados na sua recuperação. Onde é que já se viu isto? Só nesta terra. E depois ainda proclamam que “Estremoz tem mais encanto!”.
Acordai!
Nada mais adequado que evocar aqui um excerto do poema “Acordai” de José Gomes Ferreira, que musicado por Fernando Lopes Graça, constituiu, porventura, uma das mais apelativas “Canções Heróicas”, que serve para despertar consciências: “Acordai, / homens que dormis / a embalar a dor / dos silêncios vis!”.
Fala o Passado
A referência mais antiga aos barros e à Olaria de Estremoz remonta ao foral de D. Afonso III, datado de 1258, seguindo-se o foral de D. Manuel I, de 1512. Daqui para diante as referências histórico - literárias aos barros de Estremoz são múltiplas: António Caetano de Sousa (1543), Giovanni Battista Venturini (1571), Francisco de Morais (1572), Inventário de D. Joana (irmã de Filipe II), correspondência de Filipe II, Padre Carvalho (1708), Francisco da Fonseca Henriques (1726), João Baptista de Castro (1745), Duarte Nunes de Leão (1785), D. Francisco Manuel de Melo, Alexandre Brongniart (1854), Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1925).
Os barros de Estremoz têm sido cantados por poetas como: António Sardinha, Celestino David, Maria de Santa Isabel, Guilhermina Avelar, Maria Antónia Martinez, Joaquim Vermelho, António Simões, Mateus Maçaneiro e Georgina Ferro. Mas não só os poetas eruditos têm tomado a Olaria como tema de composições. Também ao longo dos anos, os nossos poetas populares têm feito quadras e décimas que integram o valioso Cancioneiro Popular Alentejano. Não resistimos a divulgar aqui duas dessas quadras, recolhidas no início do século passado por António Tomaz Pires, de Elvas, nos seus Cantos Populares Portugueses. São quadras com um conteúdo algo jocoso. Eis uma: “Minha mãe não quer que eu case / Com homem que seja oleiro; / Mas eu faço nisso gosto, / Pois tudo é ganhar dinheiro.”. Eis a outra: “Se tens pele grossa, / Põe-lhe pós de arroz. / Que eu vou ser oleiro / Para Estremoz”.
A herança do Passado
De acordo com a Mitologia Grega, Atlas foi um dos Titãs condenado por Zeus a sustentar os céus eternamente, após o assalto gorado ao Olimpo com a finalidade de alcançar o poder supremo do Mundo. Pela nossa parte, herdámos do Passado tradições que não se podem perder, porque integram o conjunto das marcas da nossa identidade cultural popular, local e regional. Por isso, tal como Atlas, transportamos sobre os ombros uma pesada responsabilidade: a de recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz. É claro que pelo cargo que ocupam, a responsabilidade de uns é maior que a de outros.

Estremoz, 18 de Outubro de 2019
(Jornal E nº 231, de 31-10-2019)

O oleiro Jerónimo Augusto da Conceição, membro do clã Alfacinha, a modelar uma
bilha. Fotografia de Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.

Amélia, mulher de Jerónimo, a efectuar a decoração fitomórfica dum jarro.
Fotografia de Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir

 

O testemunho da Primavera. A Boniqueira - Joana Santos Ceramista


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Fascínio é o natural e intenso sentimento despertado pela imagem aqui apresentada. Lado a lado, duas Primaveras com os mesmos atributos, a mesma estética e o mesmo cromatismo, diferentes apenas no tamanho. Uma é Primavera adulta e a outra uma Primavera menina.
É notória uma forte ligação entre elas, patente na mão da mãe que segura a mão da filha, a quem comunica confiança e também ternura, igualmente transmitida pelo olhar que a Primavera menina absorve, encantada. É a partilha de saberes, de luz e de claridades, de cores e de tons, de perfumes e sons. É o legado de marcas identitárias ciclicamente propaladas à natureza e que assinalam a sua renovação. É uma mensagem de esperança nos dias da amanhã. É o revelar de um paradigma: Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir.
O Testemunho da Primavera de Joana Santos é simultaneamente o testemunho do génio criativo e da mente brilhante de uma mulher ceramista, que há muito pôs a magia das suas mãos tecnicamente dotadas, em sincronia harmónica com os impulsos de alma. É um deleite de espírito a visualização e a contemplação das suas criações. É, de resto, um privilégio e isso para mim é muito importante, usufruir do privilégio da sua amizade.

Publicado em 18 de Abril de 2023

domingo, 24 de março de 2024

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Inauguração da Exposição "PARAÍSO" de Joana Santos na @arquivolivraria, em Leiria, no sábado, dia 2 de Março

 


Transcrito com a devida vénia da
de 28 de Fevereiro de 2024.


"O paraíso não é um lugar, é uma condição da alma." - Simone Weil

O que é o Paraíso? Onde é o Paraíso? O Paraíso existe?

O Paraíso pode ser um destino final. Um lugar celestial ao qual se chega no final dos dias corpóreos, como uma recompensa. Pode ser um espaço tangível, exótico, perfeito onde a natureza abundante é habitada por seres que vivem em uníssono e onde a felicidade é eterna.

O Paraíso pode ser um espaço que nos habita, que nasce e cresce dentro de nós.

Este é o Paraíso que nasceu das minhas mãos, materializado na delicadeza do grés branco, nos tons azuis e verdes dos cabelos livres das figuras que o habitam, no amarelo ocre das folhas de ginkgo biloba ou no vermelho coração. Uma reflexão sobre o amor, em particular o amor-próprio, vivido no feminino. Uma Ode ao Paraíso como corpo e à sua relação com o mundo físico que o encapsula. Ode também ao mundo interior que se preenche de sentimentos, ideias e tempo.

O Paraíso encontrado no ato da criação, da ideia ao desafio de lhe dar forma usando o barro, tornando físico o meu Paraíso particular e pessoal.

Convido-vos a virem descobrir o meu "Paraíso".

De 2 a 31 de março, na @arquivolivraria, em Leiria. Inauguração, dia 2 de Março, pelas 18h30!

Conto convosco?

Joana Santos


REPORTAGEM FOTOGRÁFICA DA EXPOSIÇÃO













 Hernâni Matos


domingo, 18 de fevereiro de 2024

Cristo na coluna


Cristo na coluna. José Moreira (1926-1991). Colecção particular.


A imagem devocional da figura, da autoria do barrista estremocense José Moreira (1926-1991), representa um episódio da Paixão de Cristo conhecido por flagelação de Jesus, também designado por Cristo na coluna. Trata-se de um episódio recorrente na arte cristã, sobretudo em ciclos da Paixão ou como parte dos ciclos da Vida de Cristo. O evento da flagelação[i] é mencionado em três dos quatro evangelhos canónicos: João 19:1, Marcos 14:65 e Mateus 27:26. A flagelação constituía um prelúdio comum à condenação pela crucificação sob o direito romano.
Jesus, de barba e cabelo compridos, com os pés assentes num chão pedregoso e as mãos atadas por uma corda, encontra-se amarrado a uma coluna[ii] e com o corpo vergado para a frente.
Enverga apenas uma protecção genital e ostenta por todo o corpo as marcas vermelhas da flagelação, fruto dos golpes infligidos pelos soldados romanos.
A exiguidade do vestuário de Jesus durante a flagelação e o martírio na coluna, traduz a humilhação a que os romanos o pretenderam submeter. Por sua vez, as marcas de flagelação simbolizam a humildade, o sofrimento e o sacrifício de Jesus em nome da humanidade.

BIBLIOGRAFIA
VATICAN NEWS. Os Santuários da Flagelação e da Condenação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:
https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-04/santuarios-flagelacao-condenacao-jesus.html . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIPÉDIA. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIWAND. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:  https://www.wikiwand.com/pt/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].

 Hernâni Matos



[i] A flagelação era uma forma de suplício infringido pelos romanos, visando castigar crimes, obter confissões ou preparar execuções capitais. Para esse efeito, recorriam ao “flagelo”, chicote constituído por tiras de cabedal ou corda com pedaços de ferro nas pontas, com o qual açoitavam as vítimas.

[ii] No contexto do simbolismo e arte cristãos, a coluna é um dos “instrumentos maiores” da Paixão de Cristo. Outros são: a cruz, a coroa de espinhos, o chicote, a esponja, a lança, os pregos e o véu de Verónica. Para além destes, existem ainda outros que são considerados “instrumentos menores”. Uns e outro são vistos como armas que Jesus utilizou para derrotar Satã e são tratados como símbolos heráldicos.