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sexta-feira, 1 de abril de 2022

Cerâmica redondense personalizada

 

Fig. 6 - Amália. Bacia de grandes dimensões. Ti Rita (1891-1974).

Preâmbulo
A clareza e o rigor na transmissão do presente texto, exige que precise a etimologia e a semântica de um vocábulo nele usado. A palavra “personalizar”, provém do étimo latino “personãle”, de “persona“ (pessoa). Trata-se de um verbo transitivo que sob o ponto de vista semântico pode ter vários significados: 1 - Tornar pessoal; 2 - Designar pelo nome; 3 - Dar carácter original a um objecto fabricado em série; 4 - Adaptar às preferências ou necessidades do utilizador. No âmbito do presente texto, o termo “personalizar“ deve ser entendido como sendo possuidor dos dois últimos significados.

Personalizar para relevar
As diversas tipologias oláricas redondenses encontram-se muitas vezes personalizadas, o que tanto pode ter acontecido, quer a pedido de clientes quer por iniciativa dos oleiros. Uma tal personalização manifesta-se na decoração da peça cerâmica sob a forma de antropónimos ou figuras antropomórficas que representavam ou supostamente pretendiam representar alguém, tanto da comunidade local como figura pública de âmbito histórico ou do panorama artístico nacional.
A personalização era esgrafitada e pintada, o que podia ser feito de duas maneiras: 1 – Sem recurso a figuras antropomórficas (bustos ou figuras de corpo inteiro), mas utilizando nomes próprios simples (Fig. 1), nomes próprios compostos (Fig. 2), nome e sobrenome (Fig. 3) e nome completo, ainda que abreviado (Fig. 4). 2 – Com recurso a figuras antropomórficas, as quais podem (Fig. 5) ou não (Fig. 6), ser acompanhadas do nome ou nomes (Fig. 7) das personagens perpetuadas no barro.
A personalização da cerâmica redondense é relativamente vulgar em pratos, alguidares, bacias, tigelas, saladeiras e também aparece em barris e cantarinhas, aparentemente com menor frequência.

Consequências da personalização
A personalização “sui generis” da cerâmica redondense é uma das muitas características que a valorizam em relação a outras cerâmicas de índole popular. Na verdade, uma tal personalização faz com que as peças deixem de ser anónimas por um dos seguintes motivos:
1 - Revelam-nos quem é o(a) utilizador(a) / proprietário(a), o(a) qual poderá afirmar coisas do género: “Este prato é meu” ou “Esta tigela é minha”. Neste sentido, a personalização de uma peça olárica transformou-se numa marca de posse, equiparável a um ex-líbris aposto por um bibliófilo num livro da sua biblioteca. 2 - Ao exaltar uma figura pública que anda na berlinda ou está na ribalta e tem admiradores, a personalização potencia o interesse que desperta junto do público, já que adquire ela mesmo uma notoriedade própria, corolário natural da notoriedade da figura pública que ela imortaliza no barro.

Eu e a personalização
Sou apreciador de exemplares oláricos redondenses antigos, os quais na época cumpriram a sua missão: associar-se de uma maneira bijectiva aos seus utilizadores / proprietários ou então imortalizar no barro, figuras gratas à comunidade e nas quais esta se revê. Por um motivo ou pelo outro, são merecedores te todo o meu apreço, pelo que ocupam um lugar de destaque na minha colecção.

BIBLIOGRAFIA
- HOUAISS, António e al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 6 vol. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.
- MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (5ªedição). 5 vol. Livros Horizonte. Lisboa, 1989.
PERSONALIZAR, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021. Disponível em https://dicionario.priberam.org/personalizar [consultado em 01-04-2022].

Fig. 1 - Inscrição "JACINTO". Prato covo de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 2 - Inscrição "Maria Izabel". Saladeira de médias dimensões.
Olaria desconhecida. Data desconhecida.

Fig. 3 - Inscrição "viulante ventura". Bacia de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 4 - Inscrição “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Borracha.
Olaria F. R. Cte, 1941.

Fig. 5 - Inscrição "MANUEL DOS SANTOS". Bacia de grandes dimensões.
Mestre Álvaro Chalana (1916-1983). 

Fig. 7 - Inscrições "BENFICA", "CARLOS MANUEL" e "RUI AGUAS".
Olaria desconhecida. Data desconhecida.

terça-feira, 29 de março de 2022

A vida eterna das cousas


Bacia com ilustração de desconhecido, da autoria de oleiro desconhecido, em data
desconhecido. Algures na Vila de Redondo.


Descrição de uma bacia
Bacia circular, de grandes dimensões, rodada, de covo acentuado, de bordo liso, esponjado a verde, sem interrupções.
Engobe amarelo palha.
Covo da bacia ornamentado por duas cercaduras, esgrafitadas e pintadas em ocre castanho, uma no topo e outra no fundo da caldeira, qualquer delas constituída pela repetição do símbolo gráfico da vírgula, ao longo de toda a extensão horizontal do covo. As vírgulas encontram-se dispostas segundo um alinhamento paralelo à abertura da bacia, com a componente pontual assente numa circunferência imaginária e a parte curvilínea apontada para o fundo da bacia e orientada no sentido horário.
Fundo com decoração esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, com contornos a ocre castanho.
Ilustração constituída por figura antropomórfica masculina, com ar sorridente e cabelo verde ondulado, com risca ao meio. O homem enverga um casaco amarelo tipo paletó, com virados verdes e uma camisa castanha, enfeitada com uma gravata às riscas verdes e castanhas, inclinadas do lado esquerdo para o lado direito da figura.

As marcas do tempo
Estamos em presença de uma bacia esbeiçada, estalada, com falhas no engobe e no vidrado, o qual se encontra picado e manchado no fundo. Trata-se de um exemplar com claras marcas de uso e de acidentes no decurso da sua utilização.
Esta bacia encerra em si, os segredos da sua estória de vida: tanto pode ter sido utilizada num lavatório para lavar rostos e mãos, como pode ter sido usada como recipiente para conter matérias-primas culinárias ou o resultado final de requintadas artes de Pantagruel, que encheram as medidas a alguém, que é o mesmo que dizer lhe fizeram arregalar a vista, criar água na boca, estimular o palato e confortar o estômago. Não sabemos.
Espécimes deste jaez, são como as árvores: morrem de pé. Na verdade, de acordo com a lei de Lavoisier, “Na Natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Por isso, esta bacia cuja funcionalidade era o serviço caseiro diário, ao ser abatida ao seu uso inicial, transformou-se num objecto decorativo, cuja exposição numa parede, valoriza e qualifica a casa onde se encontra.
Para além de nos contar a sua estória de vida, a bacia fala-nos ainda e muito sobre a magia das mãos do mesteiral que lhe conferiu forma, luz e cor. Nesse sentido, ela é também um monumental registo identitário.

Monumento ao oleiro desconhecido
A bacia cuja decoração ilustra alguém desconhecido, ilustre ou não e que patenteia em si um monumental registo identitário, revela-se por fim como um monumento ao oleiro desconhecido. Quem foi ele? Quando é que amassou e coloriu o barro para erigir assim um monumento à sua própria Memória? Não sabemos. Apenas sabemos que foi um mesteiral de antanho, de “Redondo, terra de oleiros e cardadores” que lhe deu vida, a qual para nosso conforto espiritual, a lei de Lavoisier assegura ser eterna.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Bonecos de Redondo?

 


Fig. 1 - Bonecos de Redondo?

Em 2010 comprei a um vendedor local no Mercado das Velharias em Estremoz, um boneco habitualmente designado por DANÇARINO (Fig. 2) e que se enquadra na categoria das marionetas ou fantoches. Trate-se de um exemplar de arte pastoril alentejana, bem antigo e de autor desconhecido, sobre o qual escrevi então o texto O DANÇARINO
onde expliquei como é que o mesmo era manipulado, recorrendo a um varão que era introduzido na abertura do peito.
Há duas semanas e no mesmo local, comprei a um vendedor de fora, 2 bonecos que se enquadram na categoria anterior, ainda que não apresentem o orifício atrás referido. Todavia, apresentam como que um gancho implantado na cabeça, o qual decerto servirá para a sua manipulação. Só diferem dos Bonecos de Santo Amaro, dos Bonecos de São Bento do Cortiço e dos Bonecos de Santo Aleixo, porque estes apresentam uma argola implantada na cabeça, sendo a partir daí, manipulados com um cabo.
Segundo o vendedor, estes bonecos foram por eles comprados há já algum tempo, a um artesão de Redondo, entretanto falecido e cujo nome desconhece.
Pergunto ao leitor:
- Conhecem algum artesão de Redondo que possa ter produzido estas marionetas?
- Sabem como é que elas eram manipuladas?
- Será legítimo chamar-lhe Bonecos de Redondo?
Todas as respostas serão bem-vindas e por elas vos estou antecipadamente grato.

Fig. 2 - Bailarino.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Adriano Martelo e a influência de ti Rita Mestre

 

Fig. 1

Coisas que me acontecem

Colecciono “Cerâmica de Redondo” há mais de 40 anos e a publicação do livro homónimo da autoria do meu estimado amigo, Dr. Carmelo Aires (1), em Julho do ano transacto, foi o rastilho que fez deflagrar o barril de pólvora que há em mim. Sabem porquê? A obra daquele coleccionador/investigador revelou-se uma fonte preciosa de ensinamentos, que me têm aberto os olhos para ver com olhos de ver, a cerâmica daquela “Terra de oleiros e cardadores”, a qual povoa parte da minha casa. De então para cá, dei à luz uma série de textos, que rondam a vintena, nos quais me debruço sobre a cerâmica de Redondo, em termos de tipologia, morfologia, funcionalidade, tecnologia de fabrico, decoração e suas temáticas, cromatismo, História e Etnografia. De certo, que é uma ousadia fazê-lo, mas outra coisa não poderia fazer, já que sou um incorrigível contador de estórias. Estas têm sido publicadas no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora” e na minha página do Facebook, onde tenho amigos e seguidores, os quais têm a gentiliza de ler o que me vem à cabeça. Um deles, o Eng. Mário Tavares, contactou-me dizendo que tinha uns pratos (Fig. 1 a Fig. 6) que comprara em Redondo há uns largos anos e dos quais gostava muito. Facultou-me também as respectivas imagens, que acabaram por constituir o ingrediente indispensável para confeccionar este escrito. Bem-haja por isso.

Descrição dos pratos
Trata-se de pratos circulares, rodados, de covo pouco acentuado, de médias dimensões, de aba lisa, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme. Toda a pintura tem contornos a ocre castanho.
A decoração das abas tem por base a repetição de um motivo decorativo ao longo de uma circunferência imaginária situada sobre a aba. Há dois tipos de motivos: geométricos variados, mais ou menos complexos (predominantes) e fitomórficos (mais raros).
Se uma aba é decorada por um determinado motivo geométrico, este repete-se ao longo da extensão de toda a aba, encadeando-se nos seus congéneres e ficando a cadeia encerrada (Fig. 1 a Fig. 4 e Fig. 6).
Se uma aba é decorada por um determinado motivo fitomórfico, este repete-se ao longo da extensão de toda a aba, mas afastado dos seus congéneres (Fig. 5).
A decoração da aba é completada por dois filetes em ocre castanho, um junto ao bordo e o outro junto à caldeira.
Os temas utilizados na decoração do fundo do prato são: um ramo de flores (Fig. 1), um ramo de flores num cesto (Fig. 2), passarinhos pousados em ramos de árvores (Fig. 3 e Fig. 4), uma casa (Fig. 5) e ave a pescar peixes do rio (Fig. 6).
Na parte inferior da caldeira e junto ao filete, ostenta a marca manuscrita “Martelo” [i]. No tardoz, após a aplicação do engobe foi esgrafitada a marca “REDONDO PORTUGAL / A Martelo 25-5-86”, distribuída por duas linhas.

Comentários
Sem sombra de dúvida, que tanto a decoração das abas, como os temas do fundo, de cunho verdadeiramente “naif”, foram inspirados em ti Rita Mestre (1891-1974), mas não há risco de confusão entre a produção de um e do outro, já que a perfeição dos desenhos é maior em Ti Rita, que de resto utiliza a tricromia verde-amarelo-ocre castanho em tons mais fortes que Adriano Martelo. Para além disso, este último pinta filetes nos extremos da aba, o que não acontece com ti Rita.
Mais tarde, Adriano Martelo vem a abandonar a tricromia verde-amarelo-ocre castanho e procura outros caminhos na decoração, tanto temáticos como cromáticos. É desse período, um prato pertencente à colecção do autor (Fig. 7) e cuja decoração assenta numa quadricromia, que relativamente à tricromia precedente, apresenta um amarelo ainda mais forte que o usado por ti Rita, ao qual foi ainda acrescentada uma tonalidade de azul claro.

Ponto final
Este texto, tudo o que está à vista, bem como o que está por detrás, são uma demonstração cabal de que é possível utilizar as redes sociais de uma forma positiva, o que me apraz registar aqui.

BIBLIOGRAFIA
(1) - CARMELO AIRES, António. Cerâmica de Redondo – Um Outro Olhar. Câmara Municipal de Redondo. Redondo, 1921.
(2) - CATKERO. Adriano Martelo, o fundador da Casa Martelo. [Em linha]. Disponível em http://catekero.blogspot.com/2008/08/adriano-martelo-o-fundador-da-casa.html [Consultado em 21 de Março de 2022].


[i] Segundo o Dr. Carmelo Aires (1), Adriano Martelo (1916-2002) era em 1959, aferidor da Câmara Municipal de Redondo, altura em que arrendou a antiga oficina de José Hermínio Zorrinho, contratou como mestres oleiros, os irmãos Cabeça e, como decoradora, Ti Isabel Branco, tornando-se ele próprio decorador.
De acordo com o CATEKERO - Blog do Centro de Artes Tradicionais / Antigo Museu do Artesanato - Celeiro Comum (2) , em 1982, quando se reformou da profissão de aferidor, passou a dedicar-se exclusivamente à decoração de peças oláricas de Redondo, as quais eram adquiridas à Olaria do Poço Velho e depois de decoradas eram por si comercializadas.
Adriano Martelo foi o primeiro a marcar as peças por si decoradas, no que viria a ser seguido pelos oleiros da Vila.

Hernâni Matos

Fig. 2

Fig. 3

Fig. 4

Fig. 5

Fig. 6

Fig. 7

domingo, 20 de março de 2022

É tão linda a Primavera…


Prato covo, de grandes dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração
esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho,
sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.

Sábado é dia de Mercado
Sábado é o dia em que Estremoz mostra que é uma grande cidade, maior que todas as outras do país. Sábado é o dia em que Estremoz desperta para receber os forasteiros de braços abertos, para depois os apertar num demorado e fraternal abraço. Sábado é o dia em que Estremoz mostra que é maior que si própria. Sábado é o dia em que um movimento desusado faz convergir os forasteiros para a sala de visitas do Rossio. Sábado é para os nativos, a pressa de se levantar da cama e confluir também para o Rossio. É que o Rossio alberga o Mercado de Sábado, um farol que ilumina a cidade, um íman que nos magnetiza a todos, que acelera os nossos corações e torna mais rápidos os nossos passos, para podermos comprar o que por ali há de melhor e nas melhores condições.
Sábado é um balão de oxigénio na economia citadina, que alcança nesse dia uma outra dimensão.

O sábado mantem-nos vivos
Há pessoas que como eu, não saberiam viver sem o sábado. É como se o sábado nos mantivesse vivos. No meu caso, recolector enérgico de testemunhos identitários de tempos idos, quase que não durmo na véspera do grande dia. Sou como um caçador que vai à caça. Por ali deambulo pé ante pé, à coca de memórias materiais que me povoam a mente e aquecem a alma. Vou de manhã cedo e por ali fico a pé firme, até a barriga dar horas. Eu e os vendedores somos duas faces da mesma moeda, que se conhecem e respeitam nos negócios. Por ali tenho amizades, algumas das quais perduram há quase quarenta anos. Mas também surge quem não me conheça e seja tentado a meter o pé na argola, pedindo preços que não têm pés nem cabeça, que me fazem ficar de pé atrás e aos quais tenho que bater o pé. Nos negócios não se pode meter os pés pelas mãos e eu que não gosto de meter o pé em ramo verde, procuro também não perder o pé, dispondo-me a pagar determinados preços do pé para a mão. E é sempre assim.

Um prenúncio de Primavera
Este sábado, dia 19 de Março de 1922, esteve um dia agradável e luminoso, que nos compensou dos dias precedentes, nos quais poeiras vindas do norte de África nos ensombraram os dias. Foi um bom prenúncio da Primavera que de acordo com o calendário começa a 20 de Março e no decurso da qual brotam e florescem plantas. É tão linda a Primavera…e volta sempre! De acordo com o cancioneiro popular: “Primavera, linda flor, / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”

Um prato que é um jardim
O prenúncio de Primavera seria enfatizado pela caça a um prato antigo de louça de Redondo, o qual eu sabia que ia por ali aparecer, embora não soubesse bem o que era, mas que passou por três mãos, antes de chegar às minhas. Todavia, eu que sou cão pisteiro, com faro apurado para testemunhos identitários de tempos idos, dali não arredei pé, até dar com ele e ser eu o fim da cadeia de uma sucessão de compras e vendas no espaço de poucos minutos. Fui mais além do que previa, sem todavia perder o pé.
Trata-se de um prato covo, de grandes dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo amarelo palha.
A aba encontra-se decorada com sucessivos pedúnculos num total de nove, com geometria sinusoidal achatada, ladeados de folhas verdes e que culminam em botões a ocre castanho, orientados no sentido anti-horário.
O fundo está ornamentado com um cachepot amarelo com asas verde e castanho, o qual alberga três pedúnculos encurvados, ladeados de folhas verdes e encimados por flores de corola castanho ocre, pétalas amarelas e sépalas verdes. No cachepot, a palavra "AMOR", esgrafitada a ocre castanho na direcção vertical e o topo das letras dirigido para Leste. 
O covo do prato acha-se enfeitado por sucessivos pedúnculos num total de cinco, com geometria sinusoidal achatada, ladeados de folhas verdes e que culminam em flores de corola castanho ocre, pétalas amarelas e sépalas verdes, orientados no sentido anti-horário.
Diga-me lá o leitor, se o prato é ou não é um jardim?
É tão linda a Primavera…

sábado, 19 de março de 2022

Varre, varre, vassourinha

 


Um prato de truz
Recentemente comprei um prato no Mercado das Velharias de Estremoz, prato esse que me encheu as medidas. Sabem porquê? Porque quando o vi, me apercebi que ele tinha muito para me contar. É o que passo a explicar.

Estudo do prato
É um prato raso, de médias dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.
Aba decorada com sucessivos arcos pintados de castanho, com a concavidade dirigida para a parte superior da aba. Nas concavidades assentam porções daquilo que configuram ser girassóis, em verde, amarelo e ocre castanho. Dos pontos de encontro dos arcos partem aquilo que conformam ser porções de folhas, igualmente naquelas três cores.
O fundo está decorado com uma vassoura em ocre castanho, centrada e na posição vertical.
A vassoura encontra-se encimada pela inscrição “ARPI / MONT-O-NOVO / 14-4-97, distribuída por 3 linhas. Por debaixo da vassoura a inscrição “LIMPEZA”. Qualquer das inscrições é em ocre castanho.
Gravado no tardoz, a marca manuscrita “XT REDONDO”, que me revela ser o prato uma criação de Mestre Xico Tarefa (1951 - ).
Colado no tardoz, um autocolante aqui reproduzido, que me revelou o conteúdo parcial da inscrição superior: ASSOCIAÇÃO DE REFORMADOS, PENSIONISTAS E IDOSOS DE MONTEMOR-O-NOVO. A consulta do sítio daquela associação, revelou-me que a mesma foi fundada em Abril de 1979, pelo que a data que integra a inscrição superior, é a data do 18º aniversário daquela Associação.
Restava investigar o porquê da vassoura a decorar o fundo do prato, encimando a inscrição “LIMPEZA”. Para o efeito, contactei aquela associação via email, tendo recebido do seu Presidente de Direcção, José Vicente Grulha, o seguinte esclarecimento, o qual muito agradeço: “Em 1997 foram mandados fazer cerca de 60 pratos para oferecer ao pessoal do trabalho voluntário, cada um deles com o desenho da tarefa que executavam. Entre os quais foram mandados fazer cerca de 15 pratos com o desenho da vassoura, para oferecer às pessoas que faziam a “'Limpeza” das instalações.”

Simbolismo da vassoura
O motivo central de decoração do prato é a vassoura, pelo que creio ser do maior interesse passar aqui em revista, alguns dos simbolismos que lhe estão associados.
A VASSOURA É UM SÍMBOLO DO PODER SAGRADO: Nos templos e santuários de outrora, a varredura era um serviço de culto, através do qual eram eliminados do chão, todos os elementos provenientes do exterior e que vieram conspurcá-lo. Uma tal tarefa só podia ser desempenhada por mãos puras.
A VASSOURA É UM INSTRUMENTO DE MALEFÍCIO: Invertendo-se o papel protector da vassoura, esta transforma-se num instrumento de malefício, símbolo das forças que a vassoura devia ter vencido, mas que se apoderaram dela e pelas quais ela se deixa conduzir. É montadas em cabos de vassoura, que as bruxas se dirigem para o Sabath, reunião de todos aqueles que praticam bruxaria.

Literatura de Tradição Oral
Será interessante destacar aqui a presença da vassoura nos múltiplos domínios da literatura de tradição oral: superstições, provérbios, gíria popular, alcunhas alentejanas, adivinhas, lengalengas e cancioneiro. É o que passo de imediato a fazer:
- SUPERSTIÇÕES: Varrer os pés de uma pessoa faz com ela nunca se case. Varrer a casa ao meio-dia e deitar cisco fora é muito mau, porque se deita fora a fortuna. É mau ter em casa uma vassoura voltada para cima, porque é sinal de bulhas. Colocar uma vassoura ao contrário atrás da porta faz com que uma visita chata vá embora.
- PROVÉRBIOS: A eira grande é que tem que varrer. Quem se esconde pelos cantos é vassoura. Vassoura de casa varre a toda a hora; vassoura de fora, varre e vai-se embora. Vassoura nova sempre varre bem.
- GÍRIA POPULAR: - VARRER A FEIRA (Armar uma grande desordem), - VARRER A TESTADA (Afastar de si toda a culpa), - VARRER DA MEMÓRIA (Esquecer-se completamente), - VARRER DO MAPA (Destruir sem deixar vestígios).
- ALCUNHAS ALENTEJANAS: - VASSOURA DOS PENICOS – A visada tem este nome porque é muito vaidosa (Redondo); - VASSOURINHA – A receptora adquiriu esta alcunha do seu avô, por em criança ser muito irrequieta (Arraiolos); - VASSOURINHA ELÉCTRICA – Epíteto atribuído a mulher muito dinâmica (Portel).
- ADIVINHAS: Destaco duas, cuja solução é “vassoura”. Primeira: “O que é que corre pela casa toda e depois dorme num canto?” Segunda: Uma senhora delicada, / Com a saia rodadinha, / Ao dançar numa casa / Deixa-a muito asseadinha.”
- LENGALENGAS: É bem conhecida a lengalenga intitulada “VASSOURINHA”: "Varre, varre, vassourinha / Varre bem esta casinha / Se varreres bem / Dou-te um vintém / Se varreres mal / Dou-te um rei .” [i]
- CANCIONEIRO: Do cancioneiro poveiro, destaco uma quadra que refere a igualdade perante a morte: “Ai! a morte quando vem, / Com a vassoura, varre a eito;/ Varre pobre, varre rico, / A ninguém guarda respeito.” 
Do Cancioneiro da Serra de Arga, destaco uma quadra de cunho religioso: “Igreja de Arga de Baixo, / Hei-de mandar-te varrer / Com uma vassoura de prata, / Que de ouro não pode ser.” Separo ainda uma de índole brejeira: “O meu amor de brioso / Foi à romaria a Coura; / Lá não havia giestas, / Fizeram dele vassoura.”
É muito popular a “BALADA DAS 7 SAIAS” que integra o reportório da banda de rock portuguesa “Trovante”. Nela há uma estrofe que proclama: “Sete bruxas se encontraram / No monte das sete olaias / Sete vassouras montaram / Menina das sete saias.”

Um prato de se lhe tirar o chapéu
Que dizer do prato que foi objecto do presente texto? Em primeiro lugar, a perfeição na modelação e na decoração, que são timbre de Mestre Xico Tarefa.
Em segundo lugar, que é um prato falante, ilustrado, datado, com marca de oleiro, comemorativo de uma efeméride e oferecido como reconhecimento ao mérito do voluntariado. Por outras palavras: é um prato de se lhe tirar o chapéu.

BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
CONSIGLIERI PEDROSO. “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
COUTINHO, Artur. Cancioneiro da Serra d'Arga.4ª ed. Artur Coutinho. Viana do Castelo, 2007.
MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O livro dos provérbios portugueses. 1ª ed. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. 2º ed. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
SANTOS GRAÇA, A. O Poveiro – Usos, Costumes, Tradições, Lendas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2005.



[i]  “Rei” da moeda da altura.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Adriano Martelo e as aves pousadas em ramo de cerejeira


Prato raso, de médias dimensões, com superfície interna de cor creme, de aba larga,
ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em monocromia de
tons de azul cobalto sobre fundo creme. Aba decorada com o motivo “três pés de cereja”,
que ali aparece quatro vezes. No fundo e ao centro, uma ave indeterminada, pousada
num ramo de cerejeira e com pés de cereja presos no bico. Adriano Martelo (1916-2002)

Radiografia de um prato
A avi-fauna é gulosa por cerejas e a decoração dos pratos de Adriano Martelo (1916-2002) dá conta disso. Para tal recorre a ilustrações, em que a figura central é constituída por uma ou mais aves pousadas num ramo de cerejeira e com pés de cereja presos no bico. A decoração das abas dos pratos e o cromatismo global de toda a decoração, são muito variáveis. Tais factos são atestados por pratos da minha colecção e por pratos pertencentes a colecções alheias. O cromatismo baseia-se em geral numa tricromia e a decoração das abas ostenta correntemente decorações florais ou geométricas. No caso presente, a composição central integra uma ave indeterminada, pousada num ramo de cerejeira e com pés de cereja presos no bico. A decoração da aba utiliza a lei da repetição, sendo o motivo repetido, um conjunto com três pés de cereja, que ali figura em quatro posições, que pretendem ser equidistantes entre si. O cromatismo da figura resume-se a uma monocromia em tons de azul cobalto sobre engobe creme, esgrafitado antes da pintura a azul.

A pintura a azul cobalto
De salientar que a decoração a azul cobalto é característica dos azulejos portugueses do séc. XVII, bem como dos chamados pratos de “aranhões” desse período, confeccionados em faiança em Portugal, a imitar os pratos de porcelana chinesa que então chegavam em abundância à Europa.
Foi Adriano Martelo quem introduziu na cerâmica redondense a decoração tipo “aranhões”, tendo sido incompreendido e muito contestado pela sua iniciativa pioneira. Através dela, o decorador revogava a “norma” vigente de os pratos patentearem uma decoração de cunho popular, assente numa tricromia verde – amarelo – ocre castanho. Todavia, acabou por ser seguido por outros decoradores da vila de Redondo. Os pratos de ”aranhões” desta vila, imitam os pratos de faiança portuguesa de “aranhões” do séc. XVIII e remotamente os pratos de porcelana chinesa desse período.

Simbologia
Na cultura japonesa tradicional, a cerejeira foi associada ao samurai cuja vida era tão efémera quanto a da flor que se desprendia da árvore. Já o fruto estava associado à sensualidade dos lábios de mulher, pelo que ao ser mordido era como se estivesse a sangrar. A associação de cerejas aos lábios de mulher é igualmente perfilhada por António Pinto Basto numa estrofe do fado “Dia de Espiga”: “Maria, são teus olhos azeitonas! / Cachopa, são teus lábios qual cereja! / E os teus seios, cachos d'uvas que abandonas / À vindima desta boca que os deseja!”.
Este texto já vai longo, pelo que o seu terminar será “a cereja em cima do bolo”, já que "As palavras são como as cerejas: vão umas atrás das outras".

quarta-feira, 9 de março de 2022

Inocência Lopes e a mulatitude de “O Amor é cego”

 


LER AINDA

Estado da arte
No conjunto dos Bonecos de Estremoz destaca-se pela sua garridice e simbolismo, “O Amor é Cego”, considerado uma figura de Entrudo e que constitui uma alegoria ao “Cupido de olhos vendados”. Trata-se de uma figura [i] que recomeçou a ser produzida por Sabina Santos (1921-2005), a qual se inspirou em exemplar criado por Oficinas de Estremoz do séc. XIX e que pertence ao acervo do Museu Municipal de Estremoz.

Atributos
“Quem conta um ponto aumenta um ponto”, sentença que se aplica aos Bonecos de Estremoz. Daí que depois de Sabina, o modo como é abordada a representação de “0 Amor é Cego”, nem sempre seja convergente e antes pelo contrário, seja maioritariamente divergente. Apesar de tudo, existem invariantes nas representações dos diferentes barristas. Eles constituem os atributos de “O Amor é Cego” e são: olhos vendados, toucado enfeitado com plumas e decoração frontal com um coração, flores numa mão, coração(ões) trespassado(s) por seta(s) na outra, vestido com saia curta e calçado com fitas atadas às pernas.

Mulatitude
A universalidade do amor, arrasta consigo a cegueira desse mesmo amor, independentemente da cor da pele. Daí que Inocência Lopes, que já revogara o imperativo da pele ser branca e proclamara a eventualidade da sua negritude, anuncia agora a possibilidade da sua mulatitude.

Cromatismo
Sob o ponto de vista cromático, a decoração da figura é uma hexacromia, integrada pelas seguintes cores: ZARCÃO (vestido, toucado, botas, flores do bouquet), VERMELHO (corações, seta, asas, meias, plumas, lábios), CASTANHO (cor da pele), VERDE (folhos e barra do vestido, cordões das botas, toucado, folhas do bouquet), PRETO (cabelo), BRANCO (venda dos olhos). As cores quentes (zarcão, vermelho, castanho) predominam sobre a única cor fria (verde) e as cores neutras (branco e preto). Deste modo e globalmente, a figura vê associada a ela a quentura da paixão do amor carnal. Os dois corações trespassados pela seta, sugerem que a figura já foi atingida duas vezes pela cegueira do amor, o qual terá dado mau resultado, uma vez que o coração verde da parte frontal do toucado, sugere a esperança num amor tranquilo e duradouro.

Requebros
A mulatitude da figura leva-me a associar-lhe requebros: uma voz quente com uma sonoridade sensual e o movimento lascivo do corpo. Só não é visível a expressão amorosa do olhar, pois a venda que o cobre, não deixa. Já os lábios carnudos e húmidos parecem convidar a beijar.
Olhando para esta figura, ecoam na minha cabeça os acordes do samba “Mulata assanhada” do compositor e cantor Ataulfo Alves (1909-1969)

Ô, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente!

Gratidão
Obrigado Inocência, pela quentura e sensualidade da figura com que nos estimulou os sentidos. Bem haja.



[i] Há quem associe androginismo à figura, associando-lhe ambiguidade sexual. A meu ver, trata-se de uma leitura bastante aceitável de uma figura de Entrudo do séc. XIX, época cujos costumes não permitiam que uma mulher se mascarasse com roupa tão reduzida, pelo que seriam homens a envergar roupa de mulher.









domingo, 27 de fevereiro de 2022

O fascínio da cerâmica de Redondo

 

Bacia. Oleiro desconhecido. 1910-1911.


Pontapé de saída
A cerâmica de Redondo exerce há muito sobre mim, um enorme e justificado fascínio: pela diversidade da sua tipologia, pela riqueza e variedade da sua morfologia, pela tecnologia de fabrico, pela sua decoração, pelos processos pelos quais é concretizada, pelas temáticas da decoração, pelo cromatismo, pela funcionalidade dos seus modelos e, finalmente, pela sua História e Etnografia.

O jogo em si
Ao longo dos anos fui reunindo exemplares que fui adquirindo, sobretudo no Mercado das Velharias em Estremoz e mais recentemente através de compras “on line”.
Ultimamente cheguei à conclusão que era imperioso inventariar os espécimes da minha colecção, pelo que se tornava necessário estudá-los, o que tenho vindo a fazer, recorrendo à bibliografia existente e que disponho ao meu alcance. Não tem sido tarefa fácil, a começar pela datação das peças, as quais não estando datadas, é sempre aproximada. A maioria das peças não estão assinadas, pois isso era pratica corrente. Deste modo, há um número considerável delas, para os quais não consegui identificar nem o oleiro, nem o(a) decorador(a). A tarefa a que me propus é uma tarefa hercúlea, daquelas que vulgarmente são designadas por “bico de obra”. Para ser mais preciso: a inventariação sem mácula de uma peça olárica de Redondo, é humanamente impossível, tal como o é a quadratura do círculo. Todavia, tal impossibilidade não me tem impedido de procurar inventariar os meus exemplares, tendo em conta os itens em relação aos quais é possível fazê-lo.
Uma tal inventariação tem sido acompanhada de uma leitura antropológica, que delas vou fazendo e na sequência das qual acabo por contruir uma estória, já que as peças falam comigo e eu sou um contador de estórias. As mesmas têm sido divulgadas no meu blogue "Do Tempo da Outra Senhora"  e posteriormente na minha página do Facebook.

Remate final
Recentemente e na sequência da divulgação da mais invulgar peça da minha colecção, recebi do historiador, Dr. José Calado, um comentário que muito me congratulou:
- Fantástica. Muito obrigado por mais esta extraordinária partilha...
A minha resposta célere foi a que reproduzo de seguida:
- É com todo o gosto que o faço. Como coleccionador sinto necessidade de estudar as peças que me tocam a alma e a divulgação dos resultados da minha pesquisa é um corolário natural que culmina todo o processo. Todavia, este não fica fechado. É um processo sempre em aberto, permeável a todas as descobertas e/ou reflexões que eu próprio ou alguém possa produzir. Nesse sentido, a representação que faço da peça é uma representação dinâmica, já que se encontra em permanente reconstrução.
É isso que prometo continuar a fazer, já que sou resiliente e costumo reincidir. Podem ter a certeza.

BIBLIOGRAFIA
MADUREIRA, João. Memórias da Olaria de Redondo. Centro de Documentação do Pão. Terena, 2015
CALADO, José. Redondo Terra de Oleiros. Santa Casa da Misericórdia de Redondo. Redondo, 2013.
CARMELO AIRES, António. Cerâmica de Redondo – Um Outro Olhar. Câmara Municipal de Redondo. Redondo, 1921.
Hernâni Matos

Bacia. Oleiro desconhecido.

Alguidar. Oleiro desconhecido.

Prato covo. Ti Rita (1891-1974).

Prato covo. Ti Rita (1891-1974).

Bacia. Álvaro Chalana (1916-1983).


Prato covo.  Álvaro Chalana (1916-1983).

Prato covo.  Álvaro Chalana (1916-1983).


Bacia. Ti Rita (1891-1974).


Bacia. Oleiro desconhecido.

Prato covo. Olaria Beira.

Prato peixeiro.  Álvaro Chalana (1916-1983).

Barril.  Álvaro Chalana (1916-1983).

Borracha. F. R. Cte, oleiro. 1941

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Estória da amizade entre um oleiro e o seu barbeiro, na Vila de Redondo, no ano de 1941


Borracha. F.R.C., oleiro. Redondo, 1941.

Ao meu amigo Dr. António Carmelo Aires,
seguramente o maior coleccionador
e investigador da cerâmica de Redondo


Antelóquio
Recentemente, ao fim da tarde, localizei à venda na Internet, uma peça olárica de Redondo, a qual já lá estava há quatro horas. O meu interesse por ela foi “tiro e queda”, que é como quem diz “amor à primeira vista”. Instantes depois estava comprada e paga, “não fosse o diabo tecê-las”, o que a acontecer não seria a primeira vez e decerto também não seria a última. É que o tempo é uma variável muito importante a ter em conta, já que outros se podem antecipar. Vários foram os factores que contribuíram para a minha forte motivação em a comprar. O leitor irá perceber porquê.

Leitura da peça
O exemplar olárico de Redondo que é objecto do presente estudo, configura uma “borracha”, recipiente em couro para transporte de líquidos, em particular de vinho. O mesmo dispõe de uma abertura para entrada e saída de líquido, a qual pode ser vedada com uma rolha. Dispõe ainda de duas alças, uma, próximo da embocadura e outra, do lado oposto, junto ao fundo. Estas alças visam permitir prender a elas um cordão ou tira de couro, permitindo transportar a borracha a tiracolo. A borracha funciona assim como cantil.
O engobe exterior e interior da peça é numa tonalidade creme, a qual pretende imitar a cor do couro. A superfície da “borracha” foi esgrafitada e pintada em tricromia com as cores tradicionais da cerâmica de Redondo: verde, amarelo e ocre castanho.
A peça, de morfologia periforme, encontra-se decorada em cada uma das duas faces, por um grupo de ilustrações legendadas, que nos relatam uma estória.
Numa das faces, encontram-se ilustrados e identificados por um número, dez utensílios de barbeiro, de meados do séc. XX: 1 – taça da espuma, 2 – pincel da barba, 3 – cabaça do pó de talco, 4 – navalha da barba, 5 – assentador de navalhas, 6 – pente, 7 – tesoura, 8 – máquina de cortar cabelo, 9 – frasco de perfume, 10 – escova de tirar os cabelos. Por debaixo deste conjunto de ilustrações, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Desconheço o significado da sigla SM na última linha. Todavia, é possível concluir que estamos em presença de uma “borracha” em barro vidrado, oferecida e dedicada por um oleiro de Redondo (F. R. Cte) a um barbeiro (J. Falé), decerto o seu barbeiro, residente naquela Vila.
Na outra face da “borracha” encontram-se três ilustrações. Na parte de cima, um cacho de uvas com duas parras. Na parte debaixo e à direita, um homem (supostamente o barbeiro) de boné na cabeça e sentado numa cadeira, não se sabe se por já não ser capaz de se ter em pé. Com a mão direita leva um copo de vinho à boca, enquanto que com a mão esquerda segura uma garrafa de vinho parcialmente cheia, assente na sua perna esquerda. Esta ilustração tem à sua esquerda, logo abaixo do cacho de uvas com parras, uma outra ilustração. Trata-se de uma tripeça na qual assenta um barril, de cuja torneira escorre vinho que está a encher uma garrafa. A mensagem parece óbvia: O barbeiro é um grande bebedor, de tal modo que ainda não tendo despejado uma garrafa, já se encontra outra a encher, para não haver perda de tempo. Na parte debaixo e à esquerda, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “VIVA / A PARÓDIA / VIVA / 9-5-1941”. As quatro linhas desta inscrição estão cobertas de ocre castanho, como que simulando que o oleiro tivesse entornado vinho quando confeccionava a peça. Nesse sentido, a peça materializa a auto-crítica do oleiro, que se assume igualmente como grande bebedor e amante da “paródia”, tal como o seu amigo barbeiro.

Epítome
Do exposto se conclui que a peça em estudo constitui aquilo que se pode considerar uma ”Jóia da Coroa”. Com efeito, é de uma tipologia pouco vulgar, está datada, tem oitenta anos, é uma peça com dedicatória, falante e ilustrada, que conta com humor a estória de amizade entre um oleiro e o seu barbeiro na Vila de Redondo. Em suma: é uma peça única, pela qual fiquei desde logo apaixonado e mais confortado desde que a paguei. É com peças destas que vão crescendo e se vão edificando a pulso, passo a passo, colecções modestas como a minha e que assim se vão consolidando.

Hernâni Matos