Um prato de truz
Recentemente comprei um prato no Mercado das Velharias de Estremoz, prato esse que me encheu as medidas. Sabem porquê? Porque quando o vi, me apercebi que ele tinha muito para me contar. É o que passo a explicar.
Estudo do prato
É um prato raso, de médias dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.
Aba decorada com sucessivos arcos pintados de castanho, com a concavidade dirigida para a parte superior da aba. Nas concavidades assentam porções daquilo que configuram ser girassóis, em verde, amarelo e ocre castanho. Dos pontos de encontro dos arcos partem aquilo que conformam ser porções de folhas, igualmente naquelas três cores.
O fundo está decorado com uma vassoura em ocre castanho, centrada e na posição vertical.
A vassoura encontra-se encimada pela inscrição “ARPI / MONT-O-NOVO / 14-4-97, distribuída por 3 linhas. Por debaixo da vassoura a inscrição “LIMPEZA”. Qualquer das inscrições é em ocre castanho.
Gravado no tardoz, a marca manuscrita “XT REDONDO”, que me revela ser o prato uma criação de Mestre Xico Tarefa (1951 - ).
Colado no tardoz, um autocolante aqui reproduzido, que me revelou o conteúdo parcial da inscrição superior: ASSOCIAÇÃO DE REFORMADOS, PENSIONISTAS E IDOSOS DE MONTEMOR-O-NOVO. A consulta do sítio daquela associação, revelou-me que a mesma foi fundada em Abril de 1979, pelo que a data que integra a inscrição superior, é a data do 18º aniversário daquela Associação.
Restava investigar o porquê da vassoura a decorar o fundo do prato, encimando a inscrição “LIMPEZA”. Para o efeito, contactei aquela associação via email, tendo recebido do seu Presidente de Direcção, José Vicente Grulha, o seguinte esclarecimento, o qual muito agradeço: “Em 1997 foram mandados fazer cerca de 60 pratos para oferecer ao pessoal do trabalho voluntário, cada um deles com o desenho da tarefa que executavam. Entre os quais foram mandados fazer cerca de 15 pratos com o desenho da vassoura, para oferecer às pessoas que faziam a “'Limpeza” das instalações.”
Simbolismo da vassoura
O motivo central de decoração do prato é a vassoura, pelo que creio ser do maior interesse passar aqui em revista, alguns dos simbolismos que lhe estão associados.
A VASSOURA É UM SÍMBOLO DO PODER SAGRADO: Nos templos e santuários de outrora, a varredura era um serviço de culto, através do qual eram eliminados do chão, todos os elementos provenientes do exterior e que vieram conspurcá-lo. Uma tal tarefa só podia ser desempenhada por mãos puras.
A VASSOURA É UM INSTRUMENTO DE MALEFÍCIO: Invertendo-se o papel protector da vassoura, esta transforma-se num instrumento de malefício, símbolo das forças que a vassoura devia ter vencido, mas que se apoderaram dela e pelas quais ela se deixa conduzir. É montadas em cabos de vassoura, que as bruxas se dirigem para o Sabath, reunião de todos aqueles que praticam bruxaria.
Literatura de Tradição Oral
Será interessante destacar aqui a presença da vassoura nos múltiplos domínios da literatura de tradição oral: superstições, provérbios, gíria popular, alcunhas alentejanas, adivinhas, lengalengas e cancioneiro. É o que passo de imediato a fazer:
- SUPERSTIÇÕES: Varrer os pés de uma pessoa faz com ela nunca se case. Varrer a casa ao meio-dia e deitar cisco fora é muito mau, porque se deita fora a fortuna. É mau ter em casa uma vassoura voltada para cima, porque é sinal de bulhas. Colocar uma vassoura ao contrário atrás da porta faz com que uma visita chata vá embora.
- PROVÉRBIOS: A eira grande é que tem que varrer. Quem se esconde pelos cantos é vassoura. Vassoura de casa varre a toda a hora; vassoura de fora, varre e vai-se embora. Vassoura nova sempre varre bem.
- GÍRIA POPULAR: - VARRER A FEIRA (Armar uma grande desordem), - VARRER A TESTADA (Afastar de si toda a culpa), - VARRER DA MEMÓRIA (Esquecer-se completamente), - VARRER DO MAPA (Destruir sem deixar vestígios).
- ALCUNHAS ALENTEJANAS: - VASSOURA DOS PENICOS – A visada tem este nome porque é muito vaidosa (Redondo); - VASSOURINHA – A receptora adquiriu esta alcunha do seu avô, por em criança ser muito irrequieta (Arraiolos); - VASSOURINHA ELÉCTRICA – Epíteto atribuído a mulher muito dinâmica (Portel).
- ADIVINHAS: Destaco duas, cuja solução é “vassoura”. Primeira: “O que é que corre pela casa toda e depois dorme num canto?” Segunda: Uma senhora delicada, / Com a saia rodadinha, / Ao dançar numa casa / Deixa-a muito asseadinha.”
- LENGALENGAS: É bem conhecida a lengalenga intitulada “VASSOURINHA”: "Varre, varre, vassourinha / Varre bem esta casinha / Se varreres bem / Dou-te um vintém / Se varreres mal / Dou-te um rei .” [i]
- CANCIONEIRO: Do cancioneiro poveiro, destaco uma quadra que refere a igualdade perante a morte: “Ai! a morte quando vem, / Com a vassoura, varre a eito;/ Varre pobre, varre rico, / A ninguém guarda respeito.”
Do Cancioneiro da Serra de Arga, destaco uma quadra de cunho religioso: “Igreja de Arga de Baixo, / Hei-de mandar-te varrer / Com uma vassoura de prata, / Que de ouro não pode ser.” Separo ainda uma de índole brejeira: “O meu amor de brioso / Foi à romaria a Coura; / Lá não havia giestas, / Fizeram dele vassoura.”
É muito popular a “BALADA DAS 7 SAIAS” que integra o reportório da banda de rock portuguesa “Trovante”. Nela há uma estrofe que proclama: “Sete bruxas se encontraram / No monte das sete olaias / Sete vassouras montaram / Menina das sete saias.”
Um prato de se lhe tirar o chapéu
Que dizer do prato que foi objecto do presente texto? Em primeiro lugar, a perfeição na modelação e na decoração, que são timbre de Mestre Xico Tarefa.
Em segundo lugar, que é um prato falante, ilustrado, datado, com marca de oleiro, comemorativo de uma efeméride e oferecido como reconhecimento ao mérito do voluntariado. Por outras palavras: é um prato de se lhe tirar o chapéu.
BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
CONSIGLIERI PEDROSO. “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
COUTINHO, Artur. Cancioneiro da Serra d'Arga.4ª ed. Artur Coutinho. Viana do Castelo, 2007.
MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O livro dos provérbios portugueses. 1ª ed. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. 2º ed. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
SANTOS GRAÇA, A. O Poveiro – Usos, Costumes, Tradições, Lendas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2005.
[i] “Rei” da moeda da altura.
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